A Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal promoveu, nesta quarta-feira (16), a segunda de seis audiências públicas para discutir a possibilidade da legalização do homeschooling (educação domiciliar) no Brasil. Além disso, no debate, conduzido pelo senador Flávio Arns de forma remota, representantes de organizações não governamentais, conselhos e associações educacionais discutiram o impacto da regulamentação da medida no ensino público.
Na abertura da audiência, a coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, afirmou que regulamentar a educação domiciliar não é prioridade e que a medida infringe os pilares básicos da constituição, uma vez que o dever de educação da criança é dever do Estado, em conjunto com a família. A coordenadora também destacou que o Plano Nacional de Educação, lei que estabelece diretrizes e metas para o desenvolvimento nacional, estadual e municipal da educação, apresenta 45% das metas em retrocesso e sofre com falta de dados.
“Autorizar a educação domiciliar seria também desconsiderar os avanços do campo da pedagogia, da psicologia escolar, das licenciaturas e vários campos da ciência, ainda colocando no lugar da criança o espaço de ser “autodidata”, a responsabilidade com a educação – esse sistema é, portanto, essencialmente meritocrático, altamente irresponsável em um país tão desigual”, ressaltou.
A doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP), Ilona Becskeházy, por sua vez, argumentou que as famílias já contribuem com a educação de seus filhos e que o país não possui uma educação pública de qualidade. “Gastamos dinheiro, investimos na escola, e elas não apresentam a capacidade de uma maneira geral. A maioria dos alunos no 5° ano ainda não compreendem o que leem”, ponderou. Ilona reforçou, ainda, que a socialização também está em risco no ambiente institucionalizado e citou o bullying como exemplo.
Mestre em direito das relações sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Carlos Xavier defendeu que reconhecer a educação domiciliar é reconhecer, antes de qualquer coisa, a liberdade dos pais. Para ele, nenhum dos dois direitos pode ser ameaçado e existe um equívoco conceitual em relacionar educação domiciliar com educação pública. “Os pais têm liberdade para educar os filhos em casa, tanto quanto têm liberdade para colocá-los na escola. Ou seja, não faz sentido falar em obrigatoriedade da educação domiciliar. Cabe a eles escolher o tipo apropriado de educação para seus filhos”, concluiu.
Lucas Hoogerbrugge, líder de relações governamentais do Todos Pela Educação, realçou que a educação domiciliar não deveria ser a prioridade para o atual momento do país, que apresenta o menor orçamento para a área em 10 anos. Ele lembra que a liberdade é ampla, mas não absoluta e que a prática do homeschooling não é legalizada. “Ainda que hoje hajam famílias praticando a educação domiciliar, isso não é legalizada. Se a criança não estiver indo à escola, os pais estão descumprindo parte dos direitos de educação dessa criança, o que, portanto, configura crime de abandono intelectual, a menos que eles tenham uma liminar ou uma autorização judicial pra fazer isso”, explicou.
O fundador da Associação de Famílias Educadoras do Distrito Federal (Fameduc-DF), Rafael Vidal, esteve presente na audiência e apresentou uma pesquisa, realizada com grupos de praticantes e interessados. A pesquisa estimou que cerca de 40 mil alunos, ao longo de 10 a 12 anos, deixariam as escolas públicas com a regulamentação da medida. O fundador afirmou que, ao contrário do que se pensa, o homeschooling é vantajoso para as escolas públicas e representa economia de gastos públicos ao governo. “Além de não interferir nem representar desvalorização quanto à profissão de professores, o ensino domiciliar irá gerar oportunidades de trabalho e reduzir o custo por aluno”, previu.
A pesquisa também avaliou o cenário adverso, no qual haveria a impossibilidade de adoção da medida. Nesse caso, 51% dos entrevistados resistiria, arcando com todas as consequências; 30,9% abriria escolas com outras famílias educadoras (aumentando a concorrência); 11,5% abandonaria o país; apenas 4,1% retornaria a escolas particulares e somente 2,5% retornaria a escolas públicas.
Por fim, a dirigente da Secretaria de Educação do município de Oliveira (MG) e representante da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Andréa Pereira da Silva, defendeu o convívio e a interação entre as crianças na educação básica como base para um desenvolvimento saudável. “A escola tem duas funções básicas, que são permitir a interação com o diferente e ser um lugar de compartilhamento de conhecimentos e de conteúdos. A criança não pode ser privada do convívio social, independente da vontade de seus pais”, acrescentou. A dirigente concluiu afirmando que escola e família são instituições complementares e não são capazes de substituir uma a outra no processo de ensino.
Votação
Aprovada pela Câmara dos Deputados em 19 de maio com 264 votos a favor, 144 contra e duas abstenções, o projeto de lei 1.388/2022 — que altera as leis nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), e 8.069, de 13 de julho de 1990, (Estatuto da Criança e do Adolescente), para dispor sobre a possibilidade de oferta domiciliar da educação básica — tramita atualmente no Senado Federal, na Comissão de Educação.
O texto será analisado pela Casa e, se sofrer alterações, o projeto retornará à Câmara. Se aprovado, seguirá para sanção ou veto do presidente Jair Bolsonaro. As famílias autorizadas a prover a educação aos filhos deverão cumprir, entre outras exigências, a comprovação de escolaridade de nível superior ou em educação profissional tecnológica, manutenção de cadastro de registro periódico das atividades pedagógicas e cumprimento dos conteúdos curriculares referentes ao ano escolar do estudante.