Adotado pelo Ministério da Educação (MEC), em novembro de 2020, como importante ferramenta de alfabetização no país, o aplicativo finlandês GraphoGame — jogo educacional com ambiente virtual voltado à aprendizagem de habilidades fonológicas — é rechaçado por especialistas em educação, que chegam, até mesmo, a classificá-lo como “picaretagem”. A estratégia foi destacada pelo presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL), no primeiro debate do segundo turno, na noite de domingo (16), ao enfrentar o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, na TV Bandeirantes.
O atual presidente disse que a ferramenta permite a conclusão do processo de alfabetização em apenas seis meses, porém, sem entrar em detalhes. A versão do GraphoGame no Brasil foi adaptada e desenvolvida por especialistas do Instituto do Cérebro, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Em cada fase do jogo, várias letras aparecem na tela do dispositivo e o som de uma delas é pronunciado em áudio. Ainda de acordo com a dinâmica, a criança precisa acertar a letra correspondente àquele som e, a cada acerto, ocorre uma pontuação. Ao final de cada fase é apresentado o índice de aproveitamento e as etapas vão se tornando mais complexas à medida que a criança avança.
O professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Daniel Cara, observa que os próprios produtores do aplicativo assumem que ele só auxilia no início do processo de alfabetização, embora, antes mesmo do debate de domingo, o discurso da campanha e também dos produtores era de que o aplicativo era decisivo na alfabetização e que não se tratava apenas de uma ferramenta complementar.
“Esse aplicativo tem poder limitado de colaborar na alfabetização. De maneira alguma essa ferramenta substitui a interação entre professor e aluno. É uma picaretagem a forma como ele está sendo divulgado e como o Bolsonaro utilizou o assunto no debate”, diz Cara, ponderando que o aplicativo em questão utiliza o método fônico, que é construção silábica. “Havendo uma palavra composta por consoante-vogal ou vogal-consoante, ou seja, que faça essa dupla consoante vogal, o aplicativo colabora, mas o método fônico tem problemas enormes em relação à irregularidade da língua portuguesa e como se ensina na alfabetiza uma criança. Há muitos exemplos, como a palavra 'osso', que tem uma vogal, duas consoantes e que tem a mesma sonoridade de 'aço'. Ocorre que o aplicativo tem limitações”, avalia.
O acesso a equipamentos como tablets ou telefones celulares para a maioria das crianças também é outro problema apontado pelos especialistas em educação. “Não é possível distribuir celulares para todos. No auge da pandemia vimos essa dificuldade. Milhares de estudantes não tinham acesso à internet ou equipamento para aulas remotas”, lembra Cara. “Trata-se de um aplicativo que, na prática, não vai resolver o problema concreto. Até no momento em que se deu o debate, os próprios produtores do aplicativo afirmavam isso. Na verdade, eles não refutavam o absurdo do governo Bolsonaro porque também estavam ganhando em cima. Não sei qual foi a negociação, mas certamente tinha algum tipo de ganho financeiro.”
O argumento do Executivo federal, de que se trata apenas de um ingrediente dentro de todo um processo de alfabetização, também é contestado pelo mestre da USP. Ele lembra que o aplicativo, desenvolvido na Finlândia, pode até apresentar resultados satisfatórios naquele país, onde os professores são bem remunerados, existe uma ótima política de carreira e uma excelente estrutura para garantir condições de trabalho. “O GraphoGame é uma vírgula dentro do processo finlandês como um todo, mas, no Brasil, a realidade é bem outra. Para a gente trazer o modelo finlandês, temos que fazê-lo por completo, ou seja, uma escola com formação continuada, professores dedicados, recebendo um excelente salário e com condições de trabalho nas escolas”, diz.
“O que mais vale são professores qualificados, que atendam essa meninada. No Brasil, há uma trajetória de alfabetização de crianças. É imperativo reconhecer a pluralidade de métodos, que podem servir para uma turma mas não pode servir para outra. Existe um contexto, um debate sobre métodos avançados, mas que foi rompido no governo Bolsonaro. E aí veio a implementação exclusivamente do método fônico. Deve-se levar em conta as realidades regionais”, acentua.
Cara lembra que, no Brasil, há grandes centros de alfabetização de crianças em todas as Universidades públicas, assim como professores extremamente qualificados, prontos a promover um grande processo de formação continuada na educação básica da rede pública, “Há muitos caminhos a serem trilhados. O absurdo é que, até o momento em que se dá a polêmica surgida no debate, se vendia a ideia de que o GraphoGame alfabetiza em seis meses. E isso não é verdade. Trata-se de uma ferramenta auxiliar e só agora os criadores do aplicativo assumem isso. O governo tem um acordo de trabalhar com o software, está dizendo uma coisa que não corresponde à realidade. Trata-se de um processo sério, que veio à tona depois da polêmica gerada no debate”, conclui.
Bala de prata
Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV Ceip), Cláudia Costin afirma não haver “bala de prata para a alfabetização”. Ela é mais uma a afirmar que, fundamentalmente, é necessário que os professores sejam motivados, bem preparados e que possam se dedicar à alfabetização das crianças. “Alfabetizar uma criança em seis meses, usando essa ferramenta de origem finlandesa como forma essencial não funciona. É uma pena, não que seja um aplicativo ruim, mas nada substitui um bom professor. Na Finlândia, os professores utilizam livros didáticos, explicam, apoiam as crianças”, afirma, lembrando que, no Brasil, até mesmo o Instituto do Cérebro, do Rio Grande do Sul, afirma essa ferramenta, sozinha, não resolve nada, que trata-se apenas de um instrumento de apoio.
Costin lembra, ainda, que a mesma ferramenta é produzida em Pernambuco, além de outros aplicativos e soluções gameficadas para alfabetização, que funcionam bem. Mas também adverte que nada substitui o professor. “Não há como alfabetizar uma criança em seis meses, mesmo com um bom professor. A alfabetização deve ser levada a sério, tem que começar na pré-escola, de forma lúdica, com desenvolvimento de consciência fonológica. Depois, nos anos seguintes, consolida-se esse processo”, diz.
Ela reconhece que, durante a emergência de covid algo teve que ser feito para garantir o processo de alfabetização e mitigar os danos decorrentes do prolongado fechamento das escolas do que propriamente alfabetizar. E recorda que, não por acaso, a avaliação do Saeb foi feita, no caso da alfabetização, por amostragem. “E foi nessa etapa que o segundo ano do ensino fundamental as crianças se saíram pior”, pontua, destacando que o processo de alfabetização à distância não é uma tarefa simples, que é preciso haver bons professores, devidamente valorizados. “Deveríamos pagar melhor ainda do que pagamos a eles. Contudo, não existe solução mágica de seis meses sem a necessidade da presença do professor”, afirma, observando, também, que o país vive o problema da falta de equipamentos e de acesso à internet nesse processo.
Para Costin, o GraphoGame pode vir a ser mais útil se usado dentro da escola dotada de laboratório de informática, embora grande parte das escolas do país sequer contam com conectividade alguma para o uso desse equipamento. “Verificamos um problema seríssimo de conectividade no Brasil com as escolas fechadas. Não houve nenhuma provisão para as crianças que precisavam de conectividade, muito pelo contrário. Não é à toa que com dois anos letivos quase inteiros de escolas fechadas, parcialmente ou totalmente, as perdas foram muito grandes”, lamenta.
Método duvidoso
A pedagoga Paula Lorenzon, da Clínica Psicopedagógica Trevo, em Brasília, engrossa o coro dos que condenam o uso do GraphoGame visando um processo acelerado de alfabetização. Ela lembra que cada criança tem um ritmo, uma história, e que determinar tempo de seis meses para alfabetização por meio de um aplicativo é, simplesmente, um exagero. “Um aplicativo, por melhor que seja, não substitui a sala de aula, muito menos o professor, que é um auxiliar imprescindível no processo de alfabetização”, afirma.
Lorenzon também observa que o sistema educacional brasileiro é completamente diferente do finlandês em todos os aspectos. “Até mesmo na criação de um filho nada temos a ver com aquele país. Devemos lançar mão de um jogo, mas adaptado à nossa realidade”, diz. Ele reforça que as crianças brasileiras em processo de alfabetização foram as que mais sofreram durante a pandemia, amargando perdas em todos os segmentos. “No processo de alfabetização on-line e com máscara, por exemplo, elas foram muito prejudicadas. Quem usa o método fônico sentiu isso. A gente precisa ver como se dá o som da letra, o som da sílaba, qual o formato que a boca faz quando a se pronuncia uma sílaba. E, de máscara e on-line, como isso pode ser feito? Acredito que vai levar um bom tempo para deixar tudo organizado novamente. O aplicativo finlandês pode até auxiliar, mas nada substitui as aulas presenciais, o professor, o livro didático”, diz.
Ela avalia que, além dos métodos duvidosos de ensino, deve haver, necessariamente, limite até mesmo para o uso da internet. “As crianças já passam muito tempo em frente das telas. Por mais que seja um aplicativo educativo, tem que ter um limite para ser usado. E, no caso do GraphoGame, não há como promover um processo de alfabetização em seis meses sem que isso traga mais prejuízo a saúde das crianças. É como dizer que há cura para autismo. Isso vai iludir os pais que estão com dificuldade em alfabetizar o filho. Eles ficam ansiosos ao constatar que a criança não vai vencer essa dificuldade. Não é justo, sobretudo, com a criança.”