Eu, Estudante

Saeb

Alunos da alfabetização foram os mais prejudicados durante a pandemia

Queda foi ainda maior do que a registrada no 5º, 9º ano e ensino médio, segundo dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica

Mãe de quatro meninas, de 8, 7, 5 e 3 anos, a dona de casa Raiane Rodrigues Carvalho, 25, lamenta que as duas mais velhas, que estudam na 3ª e na 1ª série do ensino fundamental não sabem ler nem escrever. Moradora de Souza, interior da Paraíba, Raiane teme pelo futuro das meninas. “Na fase delas já era para saberem pelo menos ler e escrever o básico. A mais velha, por exemplo, era para estar na 5ª série e até agora não melhorou em nada. Acho que ela pode ter dificuldade em fazer uma faculdade na idade certa e até mesmo conseguir um emprego”, diz.

Dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) divulgados nesta sexta-feira (16), pelo Ministério da Educação (MEC), mostram que, a exemplo das filhas de Raiane, as crianças em fase de alfabetização tiveram a maior queda de aprendizagem entre todas as séries avaliadas em 2021 por causa da pandemia. Aos 8 anos, quando elas deveriam estar sabendo ler e escrever plenamente, muitas não conseguem, ainda, localizar uma informação explícita no final de um texto curto, de duas linhas.

Raiane conta que, durante a pandemia, as filhas acompanharam aulas on-line e chegaram a receber apostilas impressas da escola, mas lamenta que nada adiantou. Ela firma que concluiu o ensino fundamental 2 e tentava, a todo custo, ajudar as filhas nas lições. “Morria de explicar, mas elas não entendiam nada”, lamenta.

A diretora da Escola Estadual Cícero Sobrinho de Souza — onde estudam as filhas de Raiane —, Maria Aparecida Pereira da Silva, assegura que pelo menos 80% dos 82 alunos matriculados, entre 8 e 15 anos, sabem ler e escrever. Ela afirma, ainda, que durante a pandemia as aulas remotas foram assimiladas pelos alunos. “Não surtiu os efeitos das aulas presenciais, mas tivemos resultado muito bom no Ideb”, diz.

De acordo com o mais recente levantamento do Saeb, a queda no aprendizado entre alunos em processo de alfabetização foi ainda maior do que a registrada no 5º, 9º ano e ensino médio. Essa foi a segunda vez que o MEC realizou a prova com estudantes do 2º ano. A perda foi de 24,5 pontos no exame, que é amostral, de português. O melhor desempenho foi registrado no estado de Santa Catarina, seguido do Distrito Federal e de São Paulo. A mais baixa foi a aprendizagem registrada no Acre.

Em matemática, os alunos do 2º ano também tiveram queda na aprendizagem, mas um pouco menor que em português, de 9 pontos. Os Estados com melhor desempenho foram Santa Catarina, Espírito Santo e São Paulo. O pior foi registrado no Sergipe.

Pela média registrada em 2021 em português, de 725,5, muitos alunos não são capazes de escrever um texto de um convite para uma festa, por exemplo. Também não conseguem escrever de forma correta uma palavra de três sílabas.

Dobrou, ainda, a porcentagem de alunos que estão nos níveis mais baixos de desempenho em leitura e escrita, de 15% para 34%. Esse grupo inclui desde crianças que sequer conseguiram responder à prova e outras que não são capazes de relacionar o som de uma consoante ao seu formato escrito.

As crianças pequenas são menos autônomas para o ensino remoto que os adolescentes e especialistas já temiam o déficit na alfabetização. Saber ler e escrever é primordial para que o aluno permaneça na escola e aprenda também outras disciplinas.

Esta é a principal avaliação de educação do Brasil e que traz, pela primeira vez, o retrato oficial do retrocesso causado pelas escolas fechadas e ensino remoto. Apesar da importância, há ressalvas de especialistas por causa do índice de participação ter sido baixo justamente em virtude da pandemia.

"A realização foi um grande desafio, esforço conjunto entre União, Estados e municípios. A aplicação foi exitosa", disse o ministro da Educação, Victor Godoy. A ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), Maria Helena Guimarães de Castro, presente à coletiva no MEC, afirmou pelas peculiaridades da pandemia e diferenças entre redes, "os dados deste ano não poderiam ser comparados".

O Brasil foi um dos países que mais tempo deixou seus alunos em casa durante a crise sanitária. A maioria dos Estados reabriu suas escolas só em agosto de 2021, mesmo assim com esquemas de rodízio de presença.

Undime alerta para perda de qualidade no ensino

Após o período de verificação e recurso aos resultados preliminares das escolas no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) 2021, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou, hoje, 16 de setembro, os resultados do Saeb por escola e rede, bem como os do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).

Nesta edição de 2021, 5.320.116 estudantes realizaram a prova, representando uma participação de 71,27% dos alunos previstos. Para a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), os números são expressivos e dão confiabilidade aos resultados, ao tempo em que refletem o esforço das redes municipais e estaduais de educação para avaliar a aprendizagem de seus estudantes, em um cenário adverso de pandemia.

"Importante sempre lembrar que, em fevereiro de 2021, segundo a 4ª onda da pesquisa sobre oferta da educação na pandemia, promovida pela Undime, com o apoio do Unicef e do Itaú Social, quase 70% das redes respondentes concluíram o ano letivo de 2020, no próprio ano, sendo que 91,9% cumpriram este calendário com atividades pedagógicas não presenciais. Soma-se a isso, o fato de que 63,3% das redes respondentes planejavam iniciar o ano letivo de 2021, ainda, de maneira remota", diz o presidente da Undime, Luiz Miguel Martins Garcia, secretário municipal de Educação de Sud Mennucci (SP).

Ele observa que esse cenário foi atenuado no segundo semestre, quando se intensificou o retorno às aulas presenciais, principalmente devido à segurança oferecida pela ampliação do processo de vacinação dos profissionais da educação.

"Diante desse contexto, e considerando que as redes se dedicaram, primeiramente, em manter o vínculo com os estudantes e suas famílias, promover a segurança alimentar e desenvolver ações de apoio socioemocional, é importante comemorar os resultados do Saeb, os quais demonstram que a queda nos níveis de proficiência foi menor do que a esperada, salvo no desempenho das crianças que se encontravam em processo de alfabetização, cujo impacto foi mais significativo", destaca Garcia.

Contudo, em sua avaliação, de modo geral, não se evidenciou um possível retrocesso de 20 anos, como muitos anunciaram, visto, segundo ele, que a defasagem na aprendizagem demonstrada pela avaliação poderá ser superada em poucos anos.

Garcia pontua, ainda, que o Saeb 2021 também atesta os efeitos mais acentuados da pandemia nas redes de ensino com menor infraestrutura, que não puderam oferecer conectividade a seus estudantes e professores, o que foi agravado pela condição socioeconômica das famílias mais vulneráveis, cujos estudantes não tiveram acesso às condições mínimas de aprendizagem na oferta de ensino não presencial.

"Considerando que os resultados do Saeb oferecem exatidão e fidedignidade, possibilitando de maneira confiável a comparabilidade em 'âmbito local', é importante que as redes municipais se debrucem sobre os seus resultados e de suas escolas, reunindo seus profissionais da educação para analisar o impacto da pandemia na aprendizagem dos alunos, a partir de leituras comparativas com as edições anteriores", sugere o dirigente da Undime. "Dessa forma, será possível subsidiar o planejamento de ações interventivas que venham a suprir a defasagem das aprendizagens das crianças e adolescentes decorrente do período pandêmico", completa.

Quanto ao Ideb, Garcia frisa que esse indicador, nesta edição específica, foi severamente comprometido pela aprovação maciça dos estudantes, causada pela implementação do continuum curricular [sistema que permite que habilidades e competências essenciais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) sejam priorizadas, flexibilizando os currículos das redes e garantindo um desenvolvimento contínuo das aprendizagens de 2020 a 2022], o que elevou a quase 100% a taxa de aprovação, encobrindo a queda no desempenho da aprendizagem e distorcendo, significativamente para maior, a sua média final.

Garcia reitera que, dessa forma, é necessário evitar o uso do Ideb 2021 para qualquer tipo de leitura de resultados educacionais, comparações ou ranqueamentos, pois, o mesmo não se apresenta como uma medida tecnicamente adequada e apropriada, podendo gerar uma interpretação equivocada e uma falsa ideia de que não houve perda de qualidade no ensino no período.

Segundo ele, fica como maior lição do Saeb 2021, a evidência dos resultados construídos a partir da bravura, do compromisso e do protagonismo dos profissionais da educação pública em todo o país que garantiram a continuidade da oferta do ensino, ainda que de maneira virtual, ressignificando suas práticas, enfrentando e superando todas as adversidades, não permitindo que as escolas parassem, evitando, assim, mais prejuízos aos estudantes. "Os resultados do Saeb são mérito dos estudantes e de suas famílias, dos professores, dos funcionários e dos gestores da escola pública. O momento, para estados e municípios, é de celebração da vida e dos resultados possíveis alcançados", conclui.

"Resultados devem ser visto com cautela"

A gerente de Pesquisa e Desenvolvimento do Itaú Social, Patrícia Mota Guedes, observa que os resultados do Saeb podem dar a ideia de que as coisas melhoraram, mas alerta, que, muito pelo contrário, isso não ocorreu. Segundo ela, os números revelam a necessidade de haver um grande esforço entre União, Estados e municípios na construção de pactos de enfrentamento das lacunas expostas, com mais intensidade e coordenação nas ações necessárias.

“Não significa que o ensino melhorou. Esses resultados devem ser olhados com muita cautela, em função dos desafios enfrentados durante a pandemia, sobretudo as desigualdades e a dificuldade de acesso ao ensino remoto”, afirma, pontuando que em relação à taxa de rendimento houve aumento do índice de aprovação entre 2019 e 201 pois as escolas seguiram, recomendação do Conselho Nacional de Educação de não reprovar os alunos durante a pandemia.

Outro componente que merece atenção, de acordo com a especialista, é que no no final de 2021 ainda havia disparidade entre redes e alunos na oferta de ensino presencial, participação nas aulas e engajamento e que, portanto, é possível supor que aqueles que não participaram da avaliação são os que vivem em situação de maior vulnerabilidade.

“Houve uma exclusão sistemática para quem não acompanhou esses dois anos de pandemia”, diz ela, apontando, como exemplo de defasagem gritante o fato de alunos do 2º ano do ensono básico não entrem assimilado noções básicas da língua portuguesa.

Ela aponta como exemplo dessa defasagem o fato de, em 2019, o mesmo levantamento mostrar que 27% não tinham nível adequado de alfabetização, percentual que, em 2021 saltou para 47%.

“Os números mais recentes revelam a realidade de crianças que iniciaram o ensino fundamental no início da pandemia, viveram o ensino remoto em famílias de maior pobreza, se valendo de materiais impressos para o aprendizado”, lembra, projetando, para o próximo ano, um risco de reprovação em massa, que pode agravar processos de exclusão e de evasão escolar.

Urgência em planejamentos e ações

O diretor de Conhecimento, Dados e Pesquisa da Fundação Lemann, Daniel de Bonis, vê com preocupação os mais recentes dados do Saeb, que traduzem o primeiro registro oficial dos impactos da pandemia na aprendizagem dos estudantes brasileiros.

“Eles são fundamentais para o planejamento de ações pelos governos e redes de ensino. O que chama a atenção é um padrão que reproduz achados de avaliações em outros países: primeiro, que os alunos mais impactados foram os mais novos, em especial em fase de alfabetização. Segundo, matemática é a disciplina com maiores quedas no aprendizado. O quadro é preocupante porque nosso ponto de partida já era muito abaixo do esperado”, diz.

Ele considera ser necessário, para reverter esse cenário em 2023, muito esforço voltado à recomposição das aprendizagens, o que passa por estratégias como extensão de jornada, tutorias coletivas ou individualizadas focadas nas dificuldades específicas de cada aluno, e mesmo atividades nas férias.
“Será preciso muito apoio aos professores e equipes escolares para que tenham os recursos necessários para tudo isso, além de uma coordenação efetiva por parte do Ministério da Educação. Sabemos, pela experiência internacional, que com as medidas corretas é possível recuperar essas perdas, em prazo relativamente curto”, afirma.

Sem recuperar as aprendizagens essenciais junto aos estudantes, alerta, eles dificilmente serão capazes de progredir, o que aumenta os riscos de desmotivação e o abandono, índices que já estão em níveis historicamente elevados, por conta da pandemia.