Enquanto o Distrito Federal ainda enfrenta a pandemia da covid-19, outro mal se disseminou na capital do país: os casos de violência nos colégios. Como uma espécie de epidemia, a brutalidade tem tomado conta dos corredores e arredores das instituições de ensino. No primeiro trimestre deste ano, a comunidade escolar vivenciou 149 casos desse tipo. Um dos episódios recentes teve desfecho nessa quinta-feira (7/4), quando a Polícia Civil deteve dois dos três responsáveis por fazer um arrastão em um ônibus escolar, em 8 de março. O veículo estava em frente ao Centro Educacional São Francisco, em São Sebastião. Entre os envolvidos, havia um adolescente de 15 anos.
Pouco mais de um mês após o retorno às aulas presenciais, em 14 de fevereiro, dois outros crimes ocorreram em escolas da região administrativa: uma estudante foi esfaqueada quatro vezes por um colega de classe e uma adolescente foi ameaçada em frente ao colégio onde estudava. A acusada, uma mulher que não teve a identidade divulgada, chegou a apontar uma arma para a cabeça da vítima.
Manter a normalidade na convivência se tornou um dos maiores desafios da sociedade em tempos de crise sanitária. E, com a possibilidade de essa situação se estender para as comunidades escolares, os mesmos obstáculos estariam presentes. Em virtude da previsibilidade desse cenário, que impactou as relações entre os jovens, a situação seria evitável, segundo fontes ouvidas pela reportagem.
Nas discussões que embasaram o retorno presencial às escolas do DF, muito se falou sobre os cuidados com a saúde física. No entanto, ainda há pouca luz sobre os efeitos psicológicos provocados pelo longo período de distanciamento social para a convivência em sala de aula. "O impacto (da pandemia) entre as crianças e os adolescentes é uma das questões que precisamos estudar mais, mas, muito provavelmente, o isolamento contribuiu para isso, embora não seja o único fator", observa a psicóloga e diretora de Atenção à Saúde da Universidade de Brasília (UnB), Larissa Polejack.
A escalada da violência nas escolas é vista como uma das consequências desse afastamento dos demais. A professora destaca, porém, que a solução não passa pela culpabilização de pessoas individualmente. "Nesse tempo, muitos estudantes estiveram submetidos a violências domésticas e a dificuldades familiares, com a situação socioeconômica agravada pela pandemia. O aumento do sentimento de vulnerabilidade pode levar a mais violência. E (a manifestação dela) pode ser um pedido de ajuda, um grito, um sintoma. Muitas vezes, eles (os jovens) não têm maturidade emocional para elaborar o que sentem e entender o que acontece. Por isso, reagem dessa forma, chamando a atenção para um sentimento inerente", enfatiza a psicóloga.
Ao mesmo tempo em que não pode levar à responsabilização individual, os casos não devem ser normalizados, continua Larissa. Ela considera que as saídas passam por trabalhos de adaptação a esse novo ambiente. "Precisamos olhar para a violência e pensar no papel da escola, da família e dos serviços públicos. O que podemos fazer para minimizar esse dano? Temos de construir, com os estudantes, alternativas de apoio e fortalecimento da proteção. Não podemos achar que eles não sabem ou que não têm o que dizer. O colégio precisa voltar a ser um espaço agradável, onde eles queiram estar. É necessário resgatar os vínculos com os professores, a confiança na escola e rever os espaços para captar a motivação dos alunos de volta", sugere.
Debates
A frequência das situações de violência nos colégios geraram debates recentes sobre o tema no Poder Legislativo. A Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal aprovou, ontem, requerimento de audiência pública para tratar do assunto. Em nível distrital, a presidente da Comissão de Educação, Saúde e Cultura (Cesc) da Câmara Legislativa, deputada Arlete Sampaio (PT), defendeu investimentos em profissionais. "É preciso recompor as equipes, colocando pessoas que contribuam para harmonizar o ambiente escolar. A violência é construída fora dos muros das instituições de ensino, mas se reflete dentro delas, que precisam se adaptar para ser, cada vez mais, espaços de acolhimento dos estudantes", afirmou a parlamentar ao Correio.
Diretora do Sindicato dos Professores no Distrito Federal (Sinpro-DF), Vilmara do Carmo vê que uma das dificuldades para lidar com esses episódios decorre da carência de orientadores nos colégios. Ela considera, ainda, ter faltado preparação material e psicológica das equipes durante a semana pedagógica que antecedeu o início das aulas. "A escola que os alunos deixaram em 2020 não é a mesma para a qual eles retornaram agora. Todos (os integrantes da comunidade escolar) voltaram com traumas e necessidades imprescindíveis de socialização. E essas necessidades não foram supridas ou trabalhadas como um desafio a ser vencido", opinou.
Episódios
"A violência se tornou um subterfúgio para a maior parte deles, em busca de uma liberdade reprimida por dois anos", avalia o vice-diretor do Centro de Ensino Médio (CEM) 3 de Ceilândia, Fernando Lourenço. No fim do mês passado, dois estudantes do colégio onde ele atua se envolveram em uma briga, e um esfaqueou o outro. A vítima foi levada para o hospital em estado grave, mas sobreviveu.
Para o gestor educacional, os jovens se perderam diante das indefinições sobre o futuro trazidas pela pandemia. Outro fator de impacto para isso era perceptível antes da pandemia, segundo Fernando: a defasagem de servidores e de insumos. "Eles (os alunos) voltaram extremamente violentos e ansiosos por algo que nem eles mesmos sabem apontar. A escola sozinha não conseguirá resolver essa situação, sem apoio da família e do Estado", cobra. "Muitas vezes, o estudante vai para o colégio revoltado, com o pai que abusou dele; com a vida, porque não tem o que comer ou vestir; com a sociedade, que não olha para as dificuldades dele. Ele se apresenta pronto para uma guerra que comprou antes mesmo de ter consciência dela."
Os casos de agressividade não se concentram apenas nas regiões distantes do centro da capital federal. No Centro de Ensino Médio Setor Oeste, na Asa Sul, o diretor Jacy Braga Rodrigues flagrou, recentemente, um aluno que chegou à escola com o canivete do pai. Os responsáveis pelo adolescente não sabiam que o estudante portava o objeto. "O menino apenas achou que estava se protegendo, e os pais ficaram estupefatos. Não tinham ideia do que estava acontecendo", detalhou o educador. "E a violência nem sempre começa na escola. São questões não tratadas em outros âmbitos da vida do jovem. Nenhuma escola está isenta de passar por esses casos", completa Jacy.
Iniciativas
No último dia 28, a Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEDF) estabeleceu o Plano de Urgência pela Paz nas Unidades Escolares, pouco depois da repercussão dos casos. O pacote, que prevê iniciativas voltadas ao desenvolvimento de uma cultura de paz, é levado a 126 colégios, nos quais foram detectados mais registros de violências entre alunos. Além da pasta, o grupo de atuação é formado pelas secretarias de Segurança Pública; Saúde; Esporte e Lazer; Juventude; e de Justiça.
Para facilitar e agilizar o contato entre as unidades escolares e os policiais, criou-se um grupo de WhatsApp que inclui representantes do Batalhão Escolar da Polícia Militar e das 14 regionais de ensino do DF. A mais recente ação do plano de urgência foi a cartilha Convivência escolar e cultura de paz, que será distribuída até 18 de abril em todas as instituições de ensino da rede pública, com capacitação para que os professores expliquem o conteúdo aos alunos.