Se, para os adultos, foi desafiador lidar com os impactos da pandemia, para as crianças e os adolescentes, que estão em fase de desenvolvimento, passar por esse período com sequelas foi quase inevitável. O isolamento social gerou reflexos na saúde mental e no desempenho escolar dos jovens. Ansiedade, angústia, dificuldade de concentração e falta de motivação foram alguns dos sentimentos que ficaram à flor da pele.
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A professora de música Aline Fengler, 40 anos, observou uma série de mudanças no comportamento dos dois filhos: Pedro Henrique, 10, e Rafaela Heidrich, 9. A saudade apertada dos amigos, além do medo de perder entes queridos, fez com que os dois “deixassem de ser crianças tão alegres e animadas”, nas palavras da mãe. Pedro ficou mais agressivo, começou a comer em excesso e a roer as unhas. “Visivelmente, ele estava muito abalado. Quando eu percebia, as unhas dele estavam todas roídas, um hábito que não tinha antes da pandemia”, relata Aline.
Já Rafaela teve crises de ansiedade e dificuldades para dormir. Por passarem muitos meses fechados dentro de um apartamento pequeno, os dois ficaram mais sedentários. O processo de aprendizado deles também ficou comprometido. Segundo a mãe, eles não se adaptaram bem às aulas escolares, tinham dificuldades em manusear o computador e tirar dúvidas com os professores, ficaram menos interessados em aprender os conteúdos das disciplinas, assim como mais inseguros na hora de fazer as provas e atividades.
“Essa questão permeia o fato de que nós, pais, estávamos em casa cobrando resultados deles como se eles fossem adultos. A maioria de nós queria que eles aprendessem no nosso tempo, que soubessem as coisas da nossa forma, mas as crianças enxergam o mundo de uma maneira diferente e têm um tempo diferente”, afirma Aline, que confessa que, em um dado momento, viu-se auxiliando os filhos nas provas, o que gerou mais dependência e insegurança neles. Ela também aponta que o longo tempo de exposição em frente às telas deixou as crianças mais cansadas.
Tendo em vista essas dificuldades, Aline levou as crianças de volta à escola assim que as aulas foram retomadas. Para ela, o retorno foi positivo, pois, pouco a pouco, a saúde mental deles foi se estabilizando. A prática da terapia também foi de grande ajuda para que eles entendessem tudo o que estava acontecendo e se adequassem às exigências da nova realidade. Apesar das dificuldades, a professora pensa que as crianças vão extrair uma mensagem valiosa dessa experiência: “Quando a gente se mantém juntos e com esperança, consegue superar. Sempre vão existir momentos tristes nas nossas vidas, mas eles não vão ser eternos. Vão existir momentos felizes também”.
Reflexos
De acordo com os últimos dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), no mundo todo, pelo menos uma em cada sete crianças foi diretamente afetada por lockdowns, enquanto mais de 1,6 bilhão sofreram alguma perda relacionada à educação. Já o relatório Situação Mundial da Infância 2021, lançado no mês de outubro pela Unicef, apontou que 22% dos adolescentes e jovens de 15 a 24 anos brasileiros entrevistados disseram que, muitas vezes, sentem-se deprimidos ou têm pouco interesse em fazer coisas.
Para completar esse cenário de instabilidade emocional, a adaptação às aulas on-line seguida da retomada do funcionamento presencial das escolas exigiram esforços redobrados, tanto de estudantes quanto de educadores e pais. O psicólogo clínico especialista em mindfulness e autocompaixão Pedro Lôbo explica que essas questões foram impactadas de forma diferente entre crianças e adolescentes. As crianças pequenas sentiram os reflexos da pandemia de forma mais branda, pois ainda são muito ligadas aos pais e não têm a capacidade de elaborar bem o que acontece ao redor delas. Já a partir dos 8 anos, elas tiveram mais dificuldades e manifestaram sintomas como nervosismo e inquietação.
Os adolescentes, por sua vez, sentiram os efeitos negativos com mais intensidade. O psicólogo aponta que, nessa faixa etária, eles já têm consciência sobre os próprios sentimentos, no entanto, ainda não possuem os recursos para lidar com eles. “Neurologicamente falando, a parte da razão do cérebro só vai ficar pronta por volta dos 21 anos. Antes, ainda é muito imaturo.” A falta de interação social também é outro fator citado por Pedro que gerou abalos no emocional dos adolescentes: “Quando a gente pensa no desenvolvimento, a adolescência é uma janela voltada para o social, a fase em que o jovem se integra a um grupo, socializa, defende o seu ponto de vista, encontra os amigos. E eles terem sido privados disso gerou um aumento da angústia e da ansiedade”.
Aprendizado
A neurocientista educacional Thais Faria avalia que a pandemia colocou “uma lupa” nas questões emocionais dos alunos. Segundo ela, os alunos tiveram posturas distintas em relação às aulas on-line. Enquanto um grupo acompanhava e dava o melhor de si, outro, por dificuldade de acesso à internet, entrava de vez em quando nas aulas. Ainda havia um terceiro grupo que ficava dormindo e não participava.
Quando as escolas voltaram a funcionar presencialmente, o grande desafio foi adequar o ensino para atender as necessidades desses três grupos. “Esse três tipos de aluno vão voltar para a sala de aula. Então, o professor terá de fazer de um jeito que a aula não fique chata para quem já aprendeu e, ao mesmo tempo, revisar pontos importantes para os alunos que não tiveram a oportunidade de acompanhar e aprender determinado ponto”, pondera a neurocientista.
Thais ainda pontua que todo o processo de adaptação à pandemia disparou a produção de mais células de ansiedade, o que gerou reflexos no desempenho escolar dos estudantes. “Uma vez que o nosso cérebro está ansioso, a nossa aprendizagem fica comprometida. Aquilo acaba rebaixando o nosso foco, a nossa concentração e atenção. Então, um grande desafio dos professores nessa retomada é cuidar não só das áreas cognitivas, mas, também, da parte emocional dos alunos.”
De acordo com a profissional, essas células de ansiedade também aumentam os hormônios de adrenalina e cortisol, desestabilizando o sistema emocional, chamado pela ciência de sistema límbico. “Uma vez o límbico desestabilizado, a gente tem o aumento de sudorese e aceleração do batimento cardíaco e da respiração. Isso é péssimo, pois chega um nível desregulado de oxigênio ao cérebro, que gera um maior desgaste e uma queima de oxigênio e glicose, derrubando assim a memória, o foco e a concentração”, explica.
Thais considera importante levar em consideração as questões emocionais no processo educativo. Ela acrescenta que, para uma aprendizagem de qualidade, é necessário um bom nível de equilíbrio emocional, além de condições e relações estabilizadas: “Agora, é de suma importância resgatar esses processos de socialização, de integração, cuidando do equilíbrio emocional para diminuir o abismo entre o cognitivo e o emocional”.
Lúdico
Ante o cenário pandêmico, é imprescindível que as escolas desenvolvam estratégias para fortalecer o emocional dos estudantes e, consequentemente, minimizar as dificuldades no aprendizado. A Escola da Inteligência, programa de educação socioemocional que desenvolve trabalhos em colégios da rede privada de todo o Brasil, organizou um manual com diversas atividades e dicas para envolver tanto educadores e alunos quanto famílias.
Karina Delgado, psicóloga e consultora educacional da Escola da Inteligência, aponta que o trabalho de autoconhecimento e gestão emocional precisa girar em torno dos três públicos: família, escola e alunos. Uma das atividades propostas foi a contação de histórias com o objetivo de trabalhar os sentimentos dos estudantes. Basicamente, a história era sobre o encontro de um jovem — que tinha o coração mais perfeito da região —, com um idoso, dono de um coração formado por retalhos e cicatrizes, representando as perdas, brigas e decepções que ele teve ao longo da vida.
"Depois que a gente conta essa história para os alunos, vêm muitos relatos do que eles viveram durante a pandemia, dos medos, angústias, decepções, mas, também, do quanto as pessoas se ajudam. E aí vão lembrando daqueles que fizeram a diferença na vida deles ou de como eles já fizeram a diferença na vida de outras pessoas. É uma atividade em que eles têm a oportunidade de trabalhar esse sentimento negativo, de colocar para fora o que sentem e ressignificar a visão de mundo que possuem", afirma Karina.