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'Quando ele voltava de viagem era uma festa', relembra caçula de Paulo Freire

Lutgardes Costa Freire, filho caçula de Paulo Freire, fala sobre a vida do pai

“A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem". A célebra frase do patrono da educação brasileira reflete os anseios que Paulo Costa Freire tinha para a construção de uma educação crítica e dialógica entre professores, alunos e sociedade. O legado do pernambucano, que completa 100 anos neste domingo (19), foi construído nas várias horas de trabalho dedicadas aos livros no Recife e nos 16 anos que passou exilado entre Chile, Estados Unidos e Suíça. Mas, assim como a metodologia freireana, as contribuições do educador e filósofo vão além da praxe, do ofício. Tal como o método de alfabetização de adultos, Paulo Freire tinha um jeito popular de mostrar que também era feito de carne e osso. Era torcedor do Santa Cruz e tinha galinha cabidela como segundo prato favorito. Em entrevista ao Diario de Pernambuco, o filho caçula do educador, Lutgardes Costa Freire, sociólogo do Instituto Paulo Freire, relembrou a trajetória do pai e seus feitos para o país, mesmo diante do contexto de despolitização e arranque do conservadorismo.

Como você descreve o Paulo Freire do dia a dia e o que vocês costumavam fazer juntos em casa?


Meu pai era muito ocupado. Eu era muito bebê, não lembro o que ele fazia. Mas foi no Recife que ele começou a trabalhar com o método de alfabetização de adultos. A convivência familiar era bastante harmoniosa, somos cinco filhos, três mulheres e dois homens; eu sou o caçula. Eu via meu pai trabalhando muito, minha mãe também trabalhava, era diretora de escola e eles eram muito amorosos com a gente. Sempre respeitando muito cada um dos filhos e é claro, educando cada um do seu jeito. Morávamos em uma casa que ainda existe e me lembro que o bairro se chamava Casa Forte (Lutgardes deixou o Recife com cinco anos de idade junto à família). Ele viajava muito e sentíamos muita falta dele, mas quando ele retornava, era uma festa. Quando morávamos na Suíça, ele viajou pela primeira vez para a África (continente africano) e disse: ‘foi o meu reencontro com o Brasil, porque a África se parece muito com o Brasil. Eu comi uma manga, comi uma jaca’. Aquilo para ele era muito importante e isso foi muito marcante para nós também”.

 

O método de alfabetização freireana começou a ganhar notoriedade e isso trouxe consequências para ele e para a família no Brasil. O exílio político chegou com o Golpe Militar de 1964. Explique como vocês atravessaram esse período.


Quando ele começou a trabalhar em Angicos, no Rio Grande do Norte, começou a ter notoriedade nacional e internacional com o método dele. Há quem diga, não sei se é verdade, que o antigo presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, queria conhecer o meu pai, mas ele foi assassinado antes disso. Nossa vida familiar foi fecundada por esse Golpe Militar (de 1964). Caiu o governo João Goulart e assumiram os militares, e a primeira coisa que eles fizeram foi derrubar o Plano Nacional da Alfabetização do método Paulo Freire, proclamado por João Goulart. Logo em seguida, meu pai foi preso no Recife, passou 70 dias na prisão e depois foi solto, mas não tinha mais condições de ficar no Brasil, porque ele seria preso novamente ou então matariam ele. O Golpe foi uma coisa muito dura. Nos escondemos (Lutgardes, os quatro irmãos e a mãe, Elza Freire) na casa de uma tia nossa em Campos, no Rio de Janeiro. Meu pai, então, viajou para a Bolívia, porque ele foi convidado para fazer um trabalho de alfabetização em La Paz. Mas 15 dias depois, também houve o golpe de estado na Bolívia. O jeito foi fugir para Santiago, no Chile. Lá, ele encontrou emprego já na segunda semana de estadia para trabalhar com alfabetização. Fomos, então, reencontrá-lo no Chile. Aí, começou nossa convivência de exilados, o que foi uma coisa muito difícil, um momento muito duro para a família.

 

O exílio no Chile durou 4 anos e meio e deixou marcas profundas. Quais sentimentos marcaram esse momento difícil vivido por Paulo Freire, você e sua família?
Saudade. Às vezes misturado com raiva. Meu pai recebeu uma revista de um político brasileiro da época dos militares perguntando por que ele queria Paulo Freire no Brasil? Para que ele queria sarnas para se coçar? Isso dava muita raiva ao meu pai, ele ficava enfurecido, mas ele sabia dominar a saudade dele. Foi no Chile que meu pai escreveu a Pedagogia do Oprimido, em 1968. Durante o processo de escrita de Pedagogia do Oprimido, toda visita que chegava, ele lia o livro para as visitas. Era algo muito emocionante de ver, eu ficava alucinado. Um dia, ele leu o livro para aquele político, Márcio Moreira Alves, até 3 horas da madrugada, e eu escutando também e tentando segurar o sono. Até que chegou uma hora que eu disse: ‘pai, vou dormir, porque não aguento mais’. E ele dizia: ‘vá, meu filho, isso não é coisa para você. Você é muito criança’ (risos). Ele escrevia esse livro todos os dias. Voltava do trabalho às 19h, jantava e depois do jantar, ia diretamente para o escritório dele e continuava escrevendo.

 

Depois da longa estadia na Suiça, como a informação de que já era possível retornar ao Brasil chegou até vocês?
Eu ficava com muito medo de voltar para o Brasil e os militares me prenderem e depois mandarem uma carta para o meu pai dizendo: 'olha, se você quiser ver o seu filho, volte ao Brasil. Coisa desse tipo'. Vivíamos muito assustados. Em 1979, voltamos para o Brasil e foi um recomeço. Ficamos sabendo através dos outros exilados. Meus pais ficaram extremamente alegres, mas, ao mesmo tempo, muito apreensivos, porque ainda era o governo João Figueiredo, um governo militar. Meu pai tinha muito medo de ser preso novamente. Já para mim, foi um início, tudo novo, aprender a escrever em Português, aprender a falar direito.

 

A educação vem sofrendo bastantes ataques no Brasil nos últimos tempos. E Paulo Freire, como Patrono da Educação, continua sendo um alvo. Por que a metodologia freireana ainda incomoda tanto?
O Brasil ainda não entendeu a alfabetização e filosofia do meu pai. Meu pai propõe uma escola dialógica, de conhecimento, de uma cara nova, onde os alunos se sintam felizes em estudar; uma escola amorosa, onde o diretor não é único que dirige a escola. É uma escola política, até porque não existe escola neutra nem essa coisa de escola sem partido. Existe uma escola em que o professor tem o direito de defender sua ideologia, mas não tem o direito de impor a sua ideologia aos alunos. A educação do meu pai, é uma educação da liberdade, crítica, da criatividade.

Diante desse contexto de falta de "entendimento" sobre o método de alfabetização de Paulo Freire, você diria que seu pai continua sendo um exilado para o Brasil e o que ele diria para as pessoas que o atacam?
Acho que não. Tem muita gente, muitos professores que trabalham com a filosofia do meu pai em escolas, universidades e não concordam com o método tradicionalista. Não dou muita atenção a essas pessoas que criticam o meu pai, porque acho que são ignorantes, que não sabem o que é o comunismo, o socialismo. (Mas), ele diria que elas lessem os livros dele.

Os índices de analfabetismo no Brasil seguem altos, ao passo em que continuam acontecendo cortes na educação. Existe alguma perspectiva para a melhora desse cenário num futuro próximo?
Como dizia o meu pai, nós temos que "esperançar". Para ele, a esperança não era uma palavra, era um verbo. Esse governo vai passar, Bolsonaro não vai ser reeleito e outro governo vai assumir. Mas vai levar muito tempo para consertarmos o estrago que esse governo fez no país.

O que seu pai deixou de mais bonito no mundo?
Essa é uma pergunta que ninguém me fez (risos). Eu até fico emocionado (Lutgardes fica em silêncio por alguns segundos e depois tenta engatar uma resposta, mas começa a chorar e pede desculpas). O que Paulo Freire deixou de mais bonito no mundo foram os cinco filhos com Elza Freire. Em seguida, continua: porque era o que ele tinha de melhor (risos).