Educação inclusiva

O que está em jogo quando ministro fala em educação para PcDs?

Em 2020, o governo editou um decreto que muda a política adotada pelo Brasil e separa alunos com deficiência; a medida foi suspensa pelo STF, mas ainda passará por outra análise

Thays Martins
postado em 28/08/2021 10:00
 (crédito: arquivo pessoal )
(crédito: arquivo pessoal )

Nas últimas duas semanas o Brasil ficou estarrecido com as falas do ministro da Educação, Milton Ribeiro, sobre educação para crianças com deficiência. O chefe da pasta deixou claro que o governo não quer “inclusivismo” e chegou a dizer que algumas crianças com deficiência "atrapalham". O ministro tentou se explicar e dizer que tinha sido mal interpretado.

Porém, as falas de Milton Ribeiro são pano de fundo para uma mudança na forma como a educação para pessoas com deficiência é conduzida no Brasil. Um decreto do governo federal, de 2020, mudou a forma como a política tem sido feita e estabeleceu a criação de salas especiais. O Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a medida e voltou a analisá-la essa semana.

ONGs da educação acreditam que separar alunos com deficiência do restante é um retrocesso em uma política que vem sendo construída no Brasil nos últimos 30 anos. Hoje, 88% dos alunos com deficiência estudam em salas comuns. Desde 2008, o Brasil tem uma Política Nacional de Educação Especial que prioriza que crianças com deficiência estudem em salas de aulas comuns, o que também já era estabelecido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996. "É importante dizer que a educação escolar compõe um direito humano. Portanto é para todos, independentemente das condições e características. Isso diz muito da luta das pessoas com deficiência a acessar diferentes direitos, entre eles a educação", explica Raquel Franzim, diretora de Educação e Cultura da Infância do Instituto Alana.

A mudança na forma de ensino resultou em mais pessoas com deficiência estudando e quase em uma universalização do ensino. De 2005 a 2020, o número de matrículas de estudantes com deficiência cresceu mais de 165% em todo o país, segundo dados do Censo Escolar. "Olha quanto o Brasil conquistou. E não é só estar na escola comum é estar no seu local de convivência comum. Ele tem que estar inserido na própria comunidade. Não em uma comunidade específica", destaca Raquel.

Além disso, as escolas especiais que funcionam hoje são ambientes diferentes. Elas servem como um complemento à educação na escola comum. “As escolas especiais que existem no Brasil têm um papel atuar na rede de proteção social. Elas têm um lugar no contraturno, não substituem a escola”, explica Raquel.

Raquel destaca que, ao contrário do que diz o ministro da Educação, estudantes com deficiência conseguem aprender melhor quando estão inseridos em salas de aulas comuns. "Não existe uma receita de processos inclusivos. As pessoas com deficiência têm características diferentes, mas não é um impeditivo. Pensar isso é preconceito, é ter baixa expectativa. A fala do ministro reforça isso, é um preconceito baseado em um conceito clínico e as pessoas não só características biológicas", afirma. "Estudos no mundo todo comprovam que estudantes com deficiência em escolas inclusivas aprendem mais, se desenvolvem mais, têm mais vida autônoma e acessam mais o ensino superior e o mercado de trabalho", completa.

Ganho é para todos

Na mesma linha, quem ganha não só os alunos com deficiência, mas também os que não têm. Uma pesquisa feita pelo Instituto Alana, em parceria com a ABT Associates, em 2016 com a análise de mais de 89 estudos publicados em 25 países concluiu que crianças que estudam com colegas com deficiência têm opiniões menos preconceituosas e são mais receptivas às diferenças. "O estudante sem deficiência tem melhoria no desempenho acadêmico e na formação socioemocional. Porque quando a gente lida com a diferença de cada ser humano temos que ativar campos lúdicos, socioemocionais. O que o ministro fala não tem lastro científico nenhum. Alunos com deficiência não atrapalham os outros. Isso é um senso comum", explica Raquel.

Esta opinião também é compartilhada pela presidente da associação DFdown e diretora da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, Cléo Bohn. Mãe de uma adolescente com síndrome de Down, de 12 anos, Cléo destaca que os ganhos da educação inclusiva são inúmeros. "O melhor modelo de educação é onde todos podem estar no mesmo lugar, a diversidade como um tudo. Se nossos filhos poderem conviver mais com a diversidade, mais eles vão aprender. E isso serve para os neurotípicos, as pessoas que não têm deficiência. Os outros também aprendem com os nossos filhos. Eu não posso tirar o direito das outras crianças conhecerem a realidade das crianças com deficiência. É muito importante esse convívio e todos crescem juntos.” Além disso, a maioria dos brasileiros acredita que a educação inclusiva é um caminho positivo para buscar qualidade na educação, como demonstrado pelo Datafolha, em 2019.

No chão da escola

De dentro da sala de aula, é exatamente essa a percepção da professora Jackelyne Ribeiro Cintra. Com 16 anos de experiência em alfabetização e boa parte deles com estudantes com deficiência, a professora destaca que é perceptível como os colegas se ajudam e conseguem aprender melhor juntos. "Eles ficam muito mais empáticos, eles querem ajudar, nem precisa dizer que ele tem uma deficiência, eles percebem que o manuseio é diferente. Eles entendem muito a necessidade dos outros. É uma troca", destaca a professora.

Na Escola Classe 54 de Taguatinga, ela explica que tem classes especiais para alguns alunos que precisam de uma atenção especial, mas o objetivo é colocá-los junto com os alunos sem deficiência. Alguns desses alunos, inclusive, são mais avançados na alfabetização do que aqueles sem deficiência.

A professora ainda lembra que muitos estudantes também não têm um diagnóstico médico, o que é muito comum no caso do autismo. Mas o professor faz o papel de alertar a família e também tem um trato especial ao perceber que ele precisa de mais atenção.”O professor tem um olhar diferenciado, então a gente sensibiliza os pais quando há alguma suspeita”, destaca.

A discussão em curso

O Decreto 10.502/ 2020 assinado pelo presidente Jair Bolsonaro em setembro cria a opção para os pais matricularem as crianças com deficiência em escolas regulares ou especiais. Em suas declarações, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, têm falado que teria uma parte dos alunos com deficiência que não teriam condições de estudar com os outros, ele cita como exemplo estudantes cegos, surdos e certos tipos de autismo. "Nós temos, hoje, 1,3 milhão de crianças com deficiência que estudam nas escolas públicas. Desse total, 12% têm um grau de deficiência que é impossível a convivência. O que o nosso governo fez: em vez de simplesmente jogá-los dentro de uma sala de aula, pelo 'inclusivismo', nós estamos criando salas especiais para que essas crianças possam receber o tratamento que merecem e precisam", disse sem especificar como chegou nesses 12%.

O Partido Socialista Brasileiro (PSB) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF). Em dezembro, o relator da ação, ministro Dias Toffoli, proferiu uma liminar suspendendo os efeitos do decreto, a decisão foi reafirmada pelo plenário da Suprema Corte na semana seguinte.

Entre esta segunda-feira (22/8) e terça-feira (23/8), o STF fez uma audiência pública para ouvir especialistas sobre o tema. Dos 114 órgãos públicos, universidades, organizações da sociedade civil e coletivos que manifestaram interesse em participar da audiência pública, 56 foram habilitados para expor seus argumentos. 

Segundo a advogada Hanna Baptista, advogada especialista em direitos da pessoa com autismo e direitos da pessoa com deficiência, o decreto traz uma solução ruim para um problema real. “O sistema de inclusão ainda é deficitário a nível nacional; e o poder público tem o dever constitucional de tomar medidas de promoção da educação inclusiva. Disso não há o que discordar. O que gera inquietação é a aparente solução encontrada pelo Decreto. A lógica implementada é falha, na medida em que se baseia numa premissa adequada, mas deságua em uma solução absolutamente retrógrada para uma sociedade que se pretenda inclusiva”, explica.

Ela ainda acrescenta que o decreto vai de encontro ao que está expresso na Constituição e em outras leis. “O legislador constituinte depositou não apenas a expectativa, mas sim o dever ao Poder Público de fornecer meios para a promoção da inclusão, o qual merece ser praticado – inclusive – por medidas proativas do Estado. O Decreto 10502/2020 antagoniza com esse compromisso legal, confrontando-se com previsões dispostas na Constituição e na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (a qual possui status de emenda constitucional), sendo sustentável sua inconstitucionalidade”, afirma. “O absurdo dessa política é que uma ação do Ministério da Educação não pode ir na contramão do que o Brasil já conquistou. Isso é muito problemática. A gente tem que avançar e não retroceder”, argumenta ainda Raquel.

De acordo com ela, essa visão de que pessoas com deficiência aprendem melhor se estiverem separadas tem uma herança histórica baseada em preconceitos. “Há um desconhecimento sobre a história das pessoas com deficiência. É uma história muito violenta em que elas eram colocadas como fruto do pecado, aberrações, imperfeitas e por isso elas deveriam ficar separadas. A criação das escolas especiais é de que lá era um espaço para reabilitação. Elas tentam “consertar” o que não precisa ser consertado. Todos temos características singulares e o papel da escola não é reabilitar”, explica.

Cléo Bohn destaca que as escolas especializadas têm o seu papel, mas que ele não é o de educar. “Elas foram necessárias no processo. Mas nós avançamos. Hoje se faz necessário e bem para todos é todos viverem e estarem em todos os lugares. Louvamos o trabalho deles, mas houve uma evolução. Elas servem no contraturno. Se é voltado para terapia, isso é não é educação. Educação é na escola”, frisa.

Quanto às falas do ministro, Cléo diz que ele foi muito infeliz em suas colocações. “Achamos muito triste a declaração do ministro. Ele foi extremamente preconceituoso, capacitista, odioso com as pessoas com deficiência. Eu nem sei se daria para dizer que ele não tem conhecimento, É um crime as declarações do ministro”, afirma.

Hanna Baptista destaca ainda que o governo tem demonstrado preconceitos contra pessoas com deficiência. “O Governo vem tratando a temática da inclusão das pessoas com deficiência como um espinho. Falas como as recentemente enunciadas pelo Ministro da Educação demonstram que a PCD é vista como um problema social e não como parcela da sociedade – mentalidade essa que tem cerne na história mundial e pátria das pessoas com deficiência e que se acreditava superada.”

Importância da educação 

Luísa Camargos, a primeira do Brasil com síndrome de  Down a se formar em RP
Luísa Camargos, a primeira do Brasil com síndrome de Down a se formar em RP (foto: arquivo pessoal )

Aos 26 anos, Luísa Camargos, a primeira pessoa com Síndrome de Down a se forma em relações públicas no Brasil, sabe bem a importância da educação. "A escola foi muito importante para mim. Estudei em escola regular a vida toda e foi fundamental. Eu amo de paixão as relações públicas. Eu sou bem comunicativa e gosto de conversar", lembra. "Eu escuto as falas do ministro e sou contra. Me dói um pouco, sabe? Pessoas com qualquer deficiência temos o direito de estar em todos os lugares", completa.

O mestrando na Universidade de Brasília (UnB) William Meneses, 24 anos, vivenciou de perto essa luta para um pessoa com deficiência garantir o direito à educação. Com osteogênese imperfeita, conhecida popularmente como doença dos ossos de vidro, ele chegou a ser negado em uma escola, o que é contra a lei. Em outra instituição, muitos foram os desafios em relação à acessibilidade. “Atendia algumas necessidades, mas tinha muita coisa que poderia ser melhorada. Alguns professores não tinham preparação, a acessibilidade no colégio tinha rampas muito íngremes. Era muito difícil subir as escadas, porque eu usava cadeira de rodas. Minha família participava desse processo e lutava para eu estudar como todos os outros”, lembra.

O período de alfabetização foi em escola especial, mas depois passou a estudar em uma escola regular e ele reconhece o papel que cada uma delas teve na formação acadêmica dele. “A diferença é que meus coleguinhas também eram especiais. Eu estudei por um curto período. Eu gostava bastante que tinha vários colegas cadeirantes que na escola tradicional eu via pouco. Quando eu entrei, eu acredito que o trabalho feito por mim e minha família fez com que outras famílias se sentiram confortáveis de matricular os filhos nesse colégio. Elas têm suas diferenças. Na convencional tinha alunos muito diferentes de mim”, disse.

Com tudo isso exposto e conhecendo bem a realidade, William acredita que o caminho seja sempre o da inclusão e jamais o da separação. "Eu não acredito que sejam necessárias salas especiais. O projeto dessas escolas é de separar os estudantes. E eu apoio a ideia da inclusão para que todos possam ter a sua educação de maneira igual. Mas tem que ser feita de uma maneira que respeite cada especificidade. Que as salas tenham monitores que possam ajudar. Seria uma sala mais harmoniosa com todos estudando juntos”, explica. “Eu discordo totalmente do ministro. Um aluno com necessidade especial não atrapalha os demais. O que atrapalha a sociedade é o desrespeito com o diferente. A aula tem que ser preparada para todos participarem. Me parece que esse ministro quer que só uma parte tenha acesso. E não é só inserir, é inclusão”, completa. 


Desafios não acabaram

Apesar do objetivo de universalizar o acesso à educação para crianças com deficiência esteja perto de ser atingido, o Brasil ainda tem inúmeros desafios para promover uma acesso de qualidade. Somente 20% das escolas o país tem salas de recursos, de acordo com o Censo Escolar. "A gente ainda tem muito o que conquistar. Universalizou o acesso, mas não universalizou a qualidade, e isso é para todos, não só para crianças com deficiência”, destaca Raquel.

De acordo com ela, na busca por essa melhoria têm dois tópicos que são os principais. “A gente precisa avançar na formação de professores, não só na formação superior, mas na formação continuada. O outro desafio é em relação à rede de proteção social. O estudante é da rede de ensino então ele é responsabilidade de muitos atores, então é preciso qualificar as políticas de proteção social”, destaca Raquel.

Tem questões de infra estruturas incompatíveis com a permanência de qualidade. Infelizmente há uma baixa cobertura de salas de recursos. Tem muito o que melhorar, ter banheiros, dependências e setores adaptados”, afirma.

Cléo destaca que a legislação é muito recente, por isso muito que está na lei ainda não foi efetivado. “Estamos construindo, e toda lei para fazer valer, ainda mais essa que precisa de várias adaptações, não vai acontecer do dia para noite, temos que acreditar, continuar lutando, precisamos do apoio da sociedade. Talvez minha filha não veja o resultado, mas vou lutar para que as gerações futuras tenham essas garantias”, explica.

 

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