O dilema da educação enfrenta mais um capítulo durante a pandemia da covid-19. Se por um lado o risco de contaminação coloca alunos, pais e professores com medo das aulas presenciais, por outro não resta dúvidas sobre a necessidade que elas voltem. No Distrito Federal, o governo marca e desmarca datas desde o início da crise sanitária. Por fim, chegou a um ultimato: esta quinta-feira (5/ 8). No mesmo sentido, em 11 estados as aulas já voltaram em estilo híbrido e outros 10 marcaram para agosto o retorno às salas de aula.
Por quase um ano e meio, foram muitos os alunos que sequer estavam tendo aulas on-line. De acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em média, dois terços de um ano letivo foram perdidos em todo o mundo devido ao fechamento das escolas. Segundo a Unicef, 5 milhões de crianças do planeta não tiveram acesso à educação durante a pandemia.
Os prejuízos da falta das escolas fechadas vão além do aprendizado, que já enfrentava desafios antes da pandemia. Ainda em 2019, foi previsto que, mesmo sem pandemia, as 20 metas do Plano Nacional de Educação (PNE), que deveriam ser alcançadas em 2024, só seriam alcançadas em 2041. Com a pandemia, a estimativa é de que estudantes que estão no terceiro ano perderam de 9 a 10 pontos no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), de acordo com estudo Perda de Aprendizagem na Pandemia, feito pelo Instituto Unibanco e pelo Insper.
Além disso, com o fechamento das escolas houve aumento de violência contra as crianças, perda nas interações sociais e aumento da insegurança alimentar. Segundo a Unicef, 48% das crianças não tiveram acesso à merenda e 13% deixaram de comer por falta de dinheiro.
Em um país marcado pela desigualdade, a pandemia escancarou ainda mais as diferenças: os mais pobres foram os que mais sofreram os impactos. “A escola tem várias funções. A gente aprende leitura e escrita, mas também tem um aprendizado que tem a ver com a convivência, com as diferenças, com o aprender com o outro e tem a ver com a discussão de temas que são caros ao desenvolvimento da sociedade. Esse debate presencial é muito importante. Quando não temos essa convivência diária tudo isso se perde”, explica Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FE/UnB) e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Ela lembra ainda que muitos alunos sequer puderam ter aulas online durante a pandemia, o que aumenta os prejuízos. “Uma grande parte da população não tem acesso à tecnologia, muitos não tinham contato com os professores, receberam materiais impressos, as famílias têm baixa escolaridade, não tinham como auxiliar. Tudo isso causou grandes impactos no desenvolvimento das crianças, temos impacto no aprendizado, na segurança alimentar, na proteção e na interação social. Quanto piores a situação econômica dos pais e responsáveis, maiores esses prejuízos”, avalia.
Esta também é avaliação da diretora de Educação e Cultura da Infância do Instituto Alana, Raquel Franzim. “Apesar do enorme esforço das redes, nós não sabemos qual a qualidade que essa aprendizagem ocorreu. Os meios de interação ficaram bastante limitados e elas são essenciais para o aluno aprender. A gente tem inúmeros alunos em situação de extrema vulnerabilidade social, que viveram com insegurança alimentar, violência doméstica, lutos reais por conta da covid e de outras doenças”, retrata.
Este cenário pode ser sentido nos números. A evasão escolar em 2020 chegou a 3,8%, quase o dobro dos 2% que desistiram da escola em 2019, de acordo com relatório do Unicef. São cerca de 5,5 milhões de crianças e adolescentes sem acesso à educação no país.
A corrida para recuperar o que foi perdido
Com as escolas voltando a funcionar, Catarina Santos avalia que os prejuízos são recuperáveis. Mas será preciso uma mudança de postura que ainda não ocorreu. “A gente pode recuperar o prejuízo com o Estado brasiero levando a educação a sério. Precisamos fazer da escola o que ela ainda não foi. Temos que ter um menor número de estudantes por sala, uma escola que a gente possa planejar a educação com os professores e não com agendas vindas das secretarias”, explica.
Os desafios agora serão gigantescos para recuperar o tempo perdido. De acordo com Lucas Hoogerbrugge, líder de relações governamentais do Todos Pela Educação, é preciso fazer um trabalho de recuperação muito forte. “Tem uma lacuna de aprendizagem que afeta principalmente os estudantes mais vulneráveis, além que foram os que mais sofreram com insegurança alimentar, estão em uma situação de maior risco, então vão precisar de um trabalho específico”, explica. Para isso, ele diz que será preciso avaliar quais são as carências de cada aluno e focar nelas. “Temos que saber quais foram as lacunas que ficaram deste período, o que os estudantes aprenderam e deixaram de aprender no ensino remoto e fazer uma adaptação do currículo para focar no que é mais essencial”, destaca.
Visão semelhante a da vice-diretora do CED Vale do Amanhecer, Surama Castro. “A gente viveu momentos difíceis e agora vamos viver uma outra fase. Temos que ter coragem de tentar resgatar de algumas forma essa situação, mas para que isso aconteça é preciso existir uma transparência entre a todos os setores, incentivo, condições para que a gente faça esse trabalho dentro da escola, porque não é fácil sua função principal é educar, mas muito vez a escola assume essa função social”, explica.
De acordo com Surama, um dos principais impactos desses 1 ano e meio sem aulas presenciais foi a perda de contato entre alunos e professores. “Tivemos algumas perdas significativas e houve uma defasagem muito grande. Estávamos acostumados ao presencial, com essa troca que é feita em sala de aula. O estudante precisa do professor para orientar, ao mesmo tempo ele não tem essa organização para fazer as atividades e muitas escolas não tiveram aulas online só tiverem as atividades postadas”, lembra.
Já Carlos Lafaiete, diretor do Centro De Integração Gama, avalia que a escola conseguiu ter bons resultados por ter o costume de utilizar tecnologias mesmo antes da pandemia, ou seja, estava mais bem preparada para o momento. Além disso, foi criada uma comissão com os alunos para obter um feedback do que era preciso ser melhorado.
“Um dos principais impactos que trouxe o ao Ensino a distância foi o uso das Tecnologias, nós do CEMI já utilizávamos e tivemos que fazer vários ajustes. Com o retorno presencial vamos trabalhar de forma conjunta para garantir a aprendizagem necessária”, explica. Na avaliação dele, é necessário voltar logo ao presencial , mas com cautela. “No meu ponto de vista, já está na hora do retorno presencial, pois temos como trabalhar melhor os conteúdos e também a parte psicológica dos alunos. No momento, a melhor opção é o sistema híbrido, pois ainda não temos condições sanitárias de voltarmos 100% presencial”, afirma.
O medo da covid-19
Apesar de todos os malefícios da educação remota, o medo de voltar às aulas presenciais ainda é grande. Com o país com alta de casos e mortes, poucas pessoas vacinadas e o terror da variante Delta, a vice-diretora Surama destaca que não se sente segura com o retorno. “A gente vê uma escuridão se agente olhar para outros países que estão aumentando os casos com essa variante. Eu fico apreensiva pelo lado da saúde, mas pelo lado da educação eu digo que é preciso resgatar o que foi perdido”, relata.
Catarina avalia que não há como aprender em um ambiente em que alunos e professores não se sintam seguros. “As pessoas vão ficar na escola com medo. Mesmo que elas sejam obrigadas, elas vão em clima de insegurança e em ambiente de insegurança não se aprende. Para aprender eu preciso estar vivo e a escola é um local de proteção à vida e não de ameaça”, afirma.
Lucas destaca que a volta às aulas poderia ter ocorrido antes, caso a gestão da pandemia tivesse sido melhor e que, nesse momento, será preciso uma fiscalização contínua para saber se todos os protocolos estão sendo seguidos. “Teremos que acompanhar se eles estão implementando bem. A coordenação da pandemia foi muito ruim, a vacinação chegou muito tarde e em um ritmo lento. E também foi muito ruim na educação, a gestão na educação básica só não foi inexistente porque fizeram uma outra coisa. Se a gente tivesse um controle melhor certamente teríamos voltado antes e teríamos escolas mais bem preparadas”, avalia.
Apesar disso, Lucas destaca que é necessário que as aulas voltem ao presencial se formos pensar nas perdas para crianças e adolescentes. “Sempre é tarde para voltar, porque queríamos que as escolas estivessem funcionando o tempo todo, mas a gente não pode colocar crianças em risco. Estamos com um atraso muito grande”, destaca.
Raquel Franzim destaca que para essa retomada ser segura é preciso que as escolas estejam com uma infraestrutura adequada para receber essas crianças, como lugares arejados e salas que não estejam lotadas. “Cada localidade do país tem uma situação epidemiológica que deve ditar a abertura de espaços coletivos, como a escola, e ela deve ser condicionada a condições de infraestrutura satisfatória, os espaços precisam ser arejados o suficiente. Em mais de um ano de pandemia, as redes assumam um compromisso de melhorar essas infraestruturas”, explica.
Ela destaca ainda que essa retomada precisa ser pensada de forma conjunta. “Não basta abrir as escolas, o plano pedagógico precisa ser comprometido, o retorno das escolas precisa ser intersetorial, a escola sozinha não vai conseguir dar a segurança necessária e para isso é preciso que os órgão pensem junto no melhor plano para aquela unidade”, afirma.
Nesse sentido, a advogada Mérces da Silva Nunes explica que nenhum pai pode ser obrigado a mandar o filho para a escola caso não se sinta seguro. “Estamos em plena pandemia e não é possível garantir que os protocolos sejam efetivamente implementados e rigorosamente cumpridos na escola. Então a família poderá ingressar com uma ação no judiciário e obter uma ordem liminar para afastar essa obrigatoriedade do ensino presencial”, explica.
A educação na pandemia…
Apesar de todas as perdas no período, a pandemia serviu para ensinar muito sobre educação. Para Lucas, há uma notícia boa e uma ruim. “O positivo é a nossa capacidade de nos reinventarmos, estabelecer novas metodologias. Os professores mudaram seus métodos de ensino, já que o ensino remoto não é a realidade para maior parte dos professores. Por outro lado, a pandemia aprofundou as feridas da desigualdade em todas as áreas, especialmente na educação. Isso significa que as secretarias que já iam bem foram aquelas que se saíram melhores e as que já tinham muitos desafios não conseguiram responder muito bem”, destaca.
Para Lucas, no pós pandemia será preciso olhar para questões que poderiam ter ajudado o Brasil a ter uma melhor gestão da educação caso tivessem sido vistas antes. A exemplo disso, ele cita o Sistema Nacional de Educação, previsto no PNE, mas ainda não implementado. “Todas as áreas têm um sistema que organiza, a educação não tem, por isso a resposta foi menos coordenada. Nos falta um SUS da educação. Isso nos custou, agora é momento de correr atrás do que não tinha sido feito antes. Se a gente não priorizar essa retomada, com certeza vamos demorar muito a se recuperar”, avalia.
Para além de tudo isso, Raquel destaca que a pandemia mostrou ainda mais a necessidade de se investir em educação de qualidade. “Educação não é um ato de boa vontade, é investimento político, econômico , social de todo um país. Esse compromisso com a educação ainda é muito frágil no nosso país. Enquanto alguns estudantes têm situações mínimas de enfrentar uma situação tão crítica como essa, outros não têm nenhuma, pela falha do Estado na garantia do direito. Infelizmente no Brasil, o Ministério da Educação ao longo de toda a pandemia teve como única agenda o ensino domiciliar, que não tem nenhuma relação com redução de danos dos efeitos da pandemia”, diz.