Desde que o influencer digital e youtuber Felipe Neto usou o Twitter para questionar a obrigatoriedade de obras clássicas da literatura nos conteúdos escolares, debates inflamados sobre o assunto ocorreram dentro e fora das redes sociais.
Professores, estudantes e internautas em geral se envolveram em acaloradas discussões entre quem apoia a leitura obrigatória de obras de Machado de Assis e Álvares de Azevedo, por exemplo, e quem acredita que esse tipo de material está ultrapassado para a educação atual.
“Forçar adolescentes a lerem romantismo e realismo brasileiro é um desserviço das escolas para a literatura. Álvares de Azevedo e Machado de Assis não são para adolescentes! E forçar isso gera jovens que acham literatura um saco”, escreveu Felipe Neto.
Após críticas, o influencer rebateu: “O fato de você ser, ou ter sido, um adolescente fora da curva que ama romantismo e realismo brasileiro não significa nada perto do mar de jovens odiando livros por aí. E um dos motivos é justamente a forma como a maioria das escolas aplica a literatura como matéria”, argumentou.
Na segunda-feira (25/1), Felipe afirmou que anteriormente estava reproduzindo a “opinião de inúmeros especialistas que lutam para desconstruir a forma como a disciplina é aplicada”. Ele também esclareceu que em momento algum minimizou o trabalho ou a importância de Machado de Assis.
O youtuber disse que quando citou que forçar crianças a ler autores clássicos era um desserviço queria propor uma mudança no sistema. “Eu acredito numa reformulação completa do sistema de ensino. Reformulação essa que é pedida por especialistas desde a década de 60”, explicou.
A professora de literatura brasileira da Universidade de Brasília (UnB) Fabricia Walace Rodrigues entende a afirmação do youtuber, mas acredita que a discussão é mais ampla.
“Ele não está totalmente errado. O professor precisa ser o melhor mediador possível para o aluno”, argumenta. Para ela, embora a literatura clássica seja obrigatória na escola, o aluno não é obrigado a gostar de leitura.
“Que obrigação é essa de gostar de ler? Assim como tem gente que não gosta de ir ao teatro, tem gente que não gosta de ler”, afirma.
A acadêmica explica que parte da solução está na formação dos novos professores de literatura. “Às vezes, é interessante ler com a turma em sala de aula. Mostrar os caminhos do texto. Eu costumo dizer também que o professor não pode pedir para um aluno ler se ele não está fazendo isso”, explica.
“A forma como a literatura é inserida na escola não é unanimidade entre os acadêmicos. Apresentar romantismo, realismo, simbolismo e os outros movimentos em ordem cronológica faz sentido em alguns momentos, mas não em todos”, argumenta.
No dia a dia da sala de aula
Professora de literatura do Colégio Pódion, Mara Gasparotto explica que muitos estudantes não têm afinidade com a literatura clássica durante o período no colégio porque falta maturidade. “Para o aluno, essa literatura é cansativa e distante", afirma.
“Para um aluno de 15 ou 16 anos que está estudando para o PAS (Programa de Avaliação Seriada da Universidade de Brasília), ler Gregório de Matos se torna cansativo. A linguagem é muito distante”, diz. Ela avalia que o primeiro contato com a disciplina da literatura ocorre muito tarde. “O aluno chega ao ensino médio e já teve aula de gramática antes. Literatura ele nunca viu. Isso assusta”, comenta.
É possível cativar o gosto pela leitura no ensino médio
A docente Mara acredita que sabe reverter essa oposição natural. Para ela, é mais simples apresentar a literatura clássica usando a intertextualidade entre obras do século 12, por exemplo, e composições modernas e mais contemporâneas.
“No ano passado, eu peguei o livro do Akapoeta (João Doederlein), um autor contemporâneo que cativa essa faixa etária, e apliquei a teoria literária nas obras clássicas”, recorda. A professora constata que mesmo com essas manobras, as provas exigem que o aluno conheça as obras e autores clássicos. “Nesse caso, cabe ao professor facilitar a relação com esses livros”, percebe.
Mara analisa que, por vezes, “o professor de literatura deixa de ser o mediador e passa a ser o facilitador”, diz enquanto lembra de poemas que assustam seus alunos no primeiro contato. Quando essa barreira inicial é quebrada, a educadora comemora. “O aluno vem contar que ele leu a poesia e entendeu e percebeu que não é tão difícil! A gente fica muito feliz”, relata.
A leitura que vai do prazer a obrigação
Às vezes, porém, a barreira com a literatura clássica só será quebrada após o período escolar. “Quando a gente tem uma obra cobrada em um vestibular, muitos alunos leem como uma obrigação e não conseguem usufruir da obra”, diz Mara.
Para a professora, a literatura é uma amostra da vida e nos faz refletir sobre ela. Assim, se o aluno trata a obra como uma obrigação, ela perde a função de demonstração da realidade, consequentemente o entendimento não é o mesmo.
Em contrapartida, ela explica que a falta de maturidade dos jovens atrapalha na compreensão dos textos. “Quando você sai da escola e lê a obra novamente, entende mais e gosta mais. Isso acontece porque você não tem a obrigação de fazer uma prova”, aponta.
Aluno de letras hoje se apaixonou por literatura na escola
Quando Gabriel Alexandro Barreto, 20, leu "Poema tirado de uma notícia de jornal", de Manuel Bandeira, na obra Libertinagem, não esperava se apaixonar tanto por poemas e literatura. Além de Bandeira, Gabriel guarda obras de Ferreira Gullar e Ricardo Domeneck no coração.
Hoje estudante de letras da Universidade de Brasília (UnB), Gabriel está entre os alunos que se interessaram por literatura clássica durante a época de ensino médio, feito no Colégio Sigma. Gabriel sabe que é exceção à regra.
No ensino médio, Gabriel via que poucos colegas se interessavam por literatura como ele. “Eu precisei entender como conversar sobre isso com as pessoas sem ser pedante, sem incomodá-las, sem ser chato mesmo.”
Ainda durante os tempos de escola, Gabriel passou a ler bem mais do que os colegas. “Um impasse é você achar alguém com quem conversar. Até porque ninguém é obrigado a gostar do que você gosta”, brinca.
“Eu percebi o meu interesse a partir do 1º ano, quando a disciplina literatura foi apresentada”, lembra. Ele não ficava satisfeito com o que estudava e queria mais. “Eu achava uma abordagem superficial”, diz.
O jovem recorda que o foco na sala de aula estava mais na preparação para uma prova e menos em conhecer os livros em si. “Quando as obras estão sendo debatidas em sala, a preocupação se volta mais para tópicos e uma visão um pouco engessada sobre o que é literatura”, argumenta.
Para Gabriel, a leitura é como correr, exige prática e é preciso começar aos poucos até ganhar condicionamento e fôlego para trajetos maiores. Ainda novo, ele tentou ler Grande Sertão: Veredas, livro de Guimarães Rosa com mais de 600 páginas. “Eu precisei antes entrar em contato com outras obras. É como participar de uma maratona, antes eu preciso me exercitar”, diz.
Entenda a treta literária da internet
O primeiro post de Felipe Neto sobre o assunto que dividiu a internet foi no sábado (23/1), quando ele classificou como "desserviço" forçar adolescentes a lerem romantismo e realismo brasileiros. Em pouco tempo, a publicação arranjou muitos apoiadores e também opositores, inclusive entre acadêmicos.
Forçar adolescentes a lerem romantismo e realismo brasileiro é um desserviço das escolas para a literatura.
— Felipe Neto (@felipeneto) January 23, 2021
Álvares de Azevedo e Machado de Assis NÃO SÃO PARA ADOLESCENTES! E forçar isso gera jovens que acham literatura um saco. pic.twitter.com/ay4D763YpY
Na segunda (25/1), Felipe Neto voltou a falar do assunto no Twitter para esclarecer sua visão sobre o assunto em uma série de posts.
Agora que a poeira baixou, vou explicar um pouco mais sobre a treta "Machado de Assis nas escolas" e o que eu quis dizer com isso.
— Felipe Neto (@felipeneto) January 25, 2021
Se tiver interesse, segue o fio ????????
Se não tiver, segue pro próximo tweet da timeline. pic.twitter.com/7q3sg7tWGN
Para encerrar o debate, o influencer explicou que não acredita que a solução seja tirar os livros das escolas, mas, sim, debater o sistema de ensino aplicado hoje em dia.
Pra finalizar, pq esse assunto rende inúmeros livros...
— Felipe Neto (@felipeneto) January 25, 2021
Qnd eu posto um meme dizendo q discordo da forma como a literatura clássica é apresentada nas escolas, não acredito q a solução é tirar os livros.
A solução é debater todo o sistema de ensino tradicional aplicado hoje. pic.twitter.com/k3blfW0j3P
Internautas entraram na discussão. Caso do comediante Paulo Vieira, que rebateu a fala de Felipe. Já a jornalista Nil Moretto concordou com as críticas do influencer. Confira os posts sobre o assunto:
Legal o debate! eu acho q o problema do desinteresse é pq a literatura é introduzida muito tarde. Se a literatura começasse no ciclo basico, desde os 7/8, com obras divertidas, atuais, aos 16 a pessoa ja teria musculatura pra leituras dos clássicos.
— Nil, uma vacinalover ???? (@nilmoretto) January 23, 2021Eu cresci num mundo que achava que Machado de Assis não era pra mim. Acho que é um DEVER da escola pública, ao contrário do que pensa a elite, apresentar/devolver a cultura Brasileira aos Brasileiros. Como isso deve ser feito? O DEBATE É ESSE! COMO, e não SE deve ser feito.
— PAULO VIEIRA (@PauloVieiraReal) January 23, 2021