No início da tarde desta segunda-feira (28/9), o governo Bolsonaro informou que o Bolsa Família será substituído pelo programa Renda Cidadã. O anúncio foi feito em coletiva de imprensa, que contou com a presença do presidente Jair Bolsonaro, de ministros e líderes partidários. A decisão, no entanto, é polêmica pela origem do custeio do programa: o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e os precatórios.
O senador Márcio Bittar (DEM-AC), que relatará a proposta na Câmara dos Deputados, afirmou na coletiva que o programa será inserido no Projeto de Emenda à Constituição (PEC) dos gatilhos e na PEC do Pacto Federativo. Bittar destacou que, dos R$ 55 bilhões destinados a pagar precatórios do orçamento serão utilizados o limite de 2% das receitas correntes líquidas. Quanto ao Fundeb, ele afirma que o governo federal tem permissão para utilizar até 5% dos recursos do novo fundo, o que será destinado ao custeio do novo programa. "Então, a proposta é que, em até 5%, o novo recurso do Fundeb seja utilizado também para ajudar essas famílias que estarão no programa a manterem seus filhos na escola”, afirmou o senador.
A medida foi a forma encontrada para ampliar programas assistenciais de renda mínima e, ao mesmo tempo, driblar o teto de gastos estabelecido durante o governo de Michel Temer. No entanto, além das incertezas quanto ao pagamento dos precatórios, a medida gerou polêmica devido ao plano de utilizar recursos do fundo destinado à educação básica. A ação repercutiu entre os atores da política e da educação.
Congressistas reagem
Em seu perfil no Twitter, o senador e líder da bancada do Partido Democrático Trabalhista (PDT) no Senado Federal, Weverton Rocha, referiu-se ao atual programa pelo nome “Renda Brasil” e não "Renda Cidadã" e afirmou que se trata de um despropósito. “A renda extra não será benefício se as crianças dessas famílias não tiverem acesso a escolas públicas de qualidade. Resolve o presente e inviabiliza o futuro. Os recursos têm que vir de grandes fortunas e não dos pobres”, contestou.
Também em seu perfil pessoal, o deputado federal Samuel Moreira (PSDB-MG) ressaltou que “não furar o teto nem criar imposto novo são boas notícias, mas, sobre o Fundeb é incompatível tirar dinheiro da educação para programas de complementação de renda.”
O deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ) questionou o presidente na rede social: “Bolsonaro, em vez de tirar dinheiro da Educação, por que você não taxa os super-ricos no projeto de distribuição de renda? Tem coragem de enfrentar os interesses dos bancos?”
Mais um ataque à Educação
“Isso é um verdadeiro golpe contra a aprovação do Fundeb”, afirma o presidente da União Nacional dos Estudante (UNE), Iago Montalvão. “Além de ser um absurdo, é antiético, porque o governo Bolsonaro, na época da discussão da PEC do Fundeb, tentou inserir no texto uma parte que dizia que parte dos recursos iriam para o então Renda Brasil, e foi derrotado.”
O presidente da entidade estudantil destaca que a medida irá tirar recursos de quem precisa, no caso os estudantes, e dirigir para quem também precisa, no caso os atendidos por programas de renda mínima. Ele ressalta que isso não tem o menor sentido. “O que deveria ser feito era buscar receitas em outros caminhos, como reduzir desonerações fiscais de empresas, ou mesmo tributar progressivamente as maiores rendas”, ressalta. “É absurdo, mais um ataque à Educação, mais uma demonstração de que, para esse governo, Educação não é prioridade”
Iago ressalta a posição da entidade estudantil de total contrariedade à emenda constitucional 95, do teto de gastos, a qual ele considera que deve revogada urgentemente. “Mas mesmo o teto de gastos sendo esse absurdo que é, ele não pode ser usado como desculpa para utilizar o dinheiro do Fundeb para um outro programa qualquer. Isso seria inclusive inconstitucional”, alerta.
“Reforçar investimentos e ter escolas mais atrativas para o jovem é, de alguma forma, mexer na estrutura social como um todo”, destaca Iago Montalvão. O líder estudantil conta que os esforços para reverter a decisão já iniciaram. Ele afirma que os deputados que participaram da aprovação do fundo já estão sendo procurados pelas entidades estudantis.
Um completo absurdo
A presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Rozana Barroso, considera a decisão um completo absurdo devido ao passado de lutas que levaram à conquista do Fundeb. Ela entende que não há motivos para tirar recursos do fundo da educação básica e dirigir investimentos à transferência de renda, uma vez que o governo não se esforçou para aprová-lo. “O ministério da Educação do Bolsonaro não contribuiu com nada. Além disso, nos últimos momentos, tentou desgastar o texto e queria aprová-lo somente em 2022”, recorda a presidente.
Devido ao histórico, Rozana ressalta que não foi surpresa saber que o governo quer tirar dinheiro da Educação. No entanto, ela considera “um completo absurdo, em meio a uma crise desse tamanho e agravamento das desigualdades sociais, o governo Bolsonaro queira retirar da educação para viabilizar um programa que pode garantir recursos por outras vias”.
“Não tem justificativa. Não se tira da educação para melhorar outra área. Sem educação se melhora o que?”, questiona. Ela ressalta que, mesmo com a limitação imposta pelo teto de gastos, não se justifica, de forma alguma, retirar investimentos da Educação. “A gente fala do Fundeb e parece uma coisa abstrata, mas (retirar recursos desse fundo) é um ataque à educação básica”. A entidade estudantil já se mobiliza para tentar impedir o governo. “Nós vamos obviamente agir contra isso, os estudantes não vão ficar calados de forma alguma”, afirma. “A gente precisa de investimento e não de retirada de recursos.”
Os fundos são sagrados
O coordenador da pós-graduação em Relações Institucionais e Governamentais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, Márcio Coimbra, não vê com bons olhos o anúncio do governo. “Nós não devemos usar esse fundo em um programa de transferência de renda, mas, sim, ter uma política pública efetiva e que dê retorno para a população (na área da educação). Se formos começar a usar os fundo para qualquer coisa, é melhor acabar com eles”, pondera.
Márcio considera que a proposta de amparo à educação e valorização dos profissionais educação do Fundeb poderá ser afetada a depender de quanto o governo decidirá destinar a outros programas. “Se o Brasil está mexendo nisso, é com muita preocupação que vejo esse movimento, porque compromete os projetos e ações efetivas para a educação. E quanto dinheiro já não falta para a área?”, questiona.
“Os recursos já são tão escassos que você não pode mexer”, considera o especialista. “Você não pode diminuir o valor destinado à educação básica, pois é onde mais se precisa investir. O objetivo dos fundos é exatamente não poder destinar a outros fins, caso fosse uma despesa discricionária, não precisaria ser um fundo.”
Levando em conta a situação da receita do governo federal, Márcio considera que não existe mais lugar de onde tirar dinheiro para ampliação de um novo programa de renda mínima. Por isso, ele considera que o mais viável seria somente a manutenção do Bolsa Família, já que o déficit nas contas públicas é trilionário. Na melhor das hipóteses, ele considera até viável um aumento no programa, mas condena utilizar recursos de fundos para bancá-lo. “Os fundos são considerados sagrados”, destaca.
Procurado, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) informou que entidade só vai se manifestar depois que os secretários discutirem a decisão do governo.
Ubes, UNE e ANPG condenam a decisão
Nesta segunda-feira (28), a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG) divulgaram nota em que condenam a decisão do governo. Confira:
"Nós, estudantes, vimos com inconformismo mais uma investida do governo Bolsonaro sobre a verba do novo Fundeb, que acabamos de conquistar com muita luta, para a criação de um “novo programa social”. Assim como “tirar dos paupérrimos” não é a solução, como o próprio presidente afirmou recentemente, tirar das nossas escolas jamais será o caminho para solucionar crise alguma, principalmente neste momento de pandemia em que precisamos de mais estrutura, mais profissionais e mais materiais para os protocolos de volta às aulas presenciais e acesso ao ensino à distância.
É preciso lembrar que este Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb, é essencial para o funcionamento das escolas Brasil afora e acabou de se tornar permanente na Constituição Federal, com a Emenda Constitucional 108/20, graças ao engajamento coletivo de estudantes, entidades e parlamentares. O governo Bolsonaro jamais se envolveu no debate do Fundeb, apesar de se autopropagar como “defensor do ensino básico”. Desde a aprovação do fundo, Bolsonaro tenta destinar a verba aprovada para outras finalidades, o que consistiria em pedalada fiscal.
O uso do Fundeb com assistência social é inconstitucional. Por fim, é inadmissível que, em um momento grave como o atual, o governo federal não cogite uma tributação progressiva ou a taxação de grandes fortunas, tampouco pense em revisar o Teto de Gastos, que nem deveria existir.
Não admitimos que Bolsonaro, que em discursos tanto finge se preocupar com a educação, aja apenas para retirar verbas de escolas, ainda mais num contexto de desafios gigantes para a educação brasileira. O que precisamos é mais conhecimento, mais ciência, mais educação. Não mexam no novo Fundeb!"
*Estagiário sob supervisão da editora Ana Sá