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LGBTQIA+

BBB gera debates sobre aceitação da bissexualidade em ambientes educacionais

Saída de Lucas Penteado do programa, após assumir a bissexualidade e ser discriminado, acende alerta para a importância de promover conscientização e respeito à diversidade sexual em escolas e universidades

O desconhecimento e o preconceito geram situações em que os bissexuais são deslegitimados ou taxados de indecisos que não sabem o que querem, até mesmo por parte de pessoas da comunidade LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexo, Assexuais e mais (LGBTQIA+). A saída abrupta de Lucas Penteado do Big Brother Brasil (BBB) é exemplo da exclusão e da discriminação sofridas por um bissexual.

A discriminação que se apresentou no programa de televisão se apresenta contra bis nos mais diferentes contextos, inclusive os ambientes educacionais, que podem ter um importante papel para gerar conscientização e minimizar preconceitos.

“A gente usa uma máscara social para ser aceito pela sociedade”, afirmou o ator, músico, poeta e ex-participante BBB Lucas Penteado, 24 anos, em entrevista à apresentadora Fátima Bernardes no programa Encontro, da TV Globo, na manhã desta terça-feira (9/2).

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O paulistano Lucas Penteado é bissexual e desistiu de participar da edição 21 do BBB após protagonizar, com o estudante de doutorado em economia Gilberto Nogueira, 29 anos, o primeiro beijo entre homens do programa.

Reprodução/GShow - O ator Lucas Penteado deixou a casa do Big Brother Brasil 21 no domingo (7/2), após beijo em Gilberto e briga com Lumena e outros participantes em festa

A saída dele foi alvo de debates nas redes sociais. Lucas deixou o programa por temer não ser aceito pela família e pela comunidade em que mora após revelar a bissexualidade ao beijar outro integrante do mesmo sexo.

Após o beijo em Gilberto, ainda na casa do reality show, Lucas foi criticado por outros integrantes do programa, inclusive por pessoas da própria comunidade LGBTQIA+. Disseram que ele usou Gilberto para fazer uma "performance" e se aproveitar da pauta LGBT.

A participante do BBB Lumena Aleluia, que é lésbica, afirmou que Lucas tenta se promover por uma agenda racial e, após o beijo, também pela agenda LGBT. "Ele pega cada agenda para tornar palco”, acusou Lumena, 29 anos, mestra em psicologia, roteirista e DJ.

“Quando entrei (na casa do BBB), pensei que estava seguro para ser quem eu sou. Mas eu vi a reprodução do que acontece aqui fora", refletiu Lucas. "Independentemente da opressão que nós vivemos, também existe a reprodução dessa opressão (dentro do BBB)”, disse.

A última semana de Lucas Penteado na casa foi conturbada, marcada por uma série de eventos característicos de tortura psicológica, que incluíram humilhação em público, ridicularização e exclusão. 

A integrante do programa e rapper curitibana Karol Conká, 34 anos, ofendia Lucas diariamente, dizia que ele tinha "cara de bosta", além de fazer com que o rapaz se levantasse da mesa para ela comer. Boa parte dos outros participantes foi conivente com essas atitudes.

Dentro desse contexto já desestabilizador, para Lucas, o ato de assumir a orientação sexual na frente do país inteiro fragilizou ainda mais a saúde mental. Pouco antes de sair, o artista relatou medo de não ser aceito e disse que precisava sair para pedir desculpas ao pai.

Militante por direitos estudantis, Lucas foi uma das lideranças na ocupação da Escola Estadual Caetano de Campos, em movimento contra o fechamento de colégios entre 2015 e 2016. Em 2019, o ativista estrelou o documentário Espero tua (re)volta, sobre as ocupações. Veja o trailer do filme:

 

LGBTfobia no reality show

Lucas não foi o único alvo de LGBTfobia dentro do programa. Internautas também entenderam como preconceituosas as críticas feitas pelo cantor Rodolffo Matthaus (da dupla Israel e Rodolffo) ao "jeito" do doutorando Gilberto Nogueira, natural de Jaboatão (PE).

"O Gilberto também com aquela 'bobeiraida' dele o tempo inteiro. Forçação de barra com gritinho e dancinha já tá chato também. Eu não consigo rir daquilo mais. Acabou a graça pra mim", disse Rodolffo, 32 anos, no sábado (6/2).

O cantor de Uruaçu (GO) sai de um ambiente quando Gilberto chega, demonstrando intolerância com o brother. "Cara, a voz dele tá incomodando. Chegou num ponto que tudo tá incomodando."

 

Preconceito é fruto de falta de informação e se reproduz em qualquer contexto

Segundo Rozana Barroso, atual presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), quando não há informação de qualidade, o natural é que as pessoas reproduzam o preconceito em qualquer contexto, inclusive o escolar e universitário. No caso do reality show, ela acredita que houve agravantes de natureza étnico-racial.

Isso porque, em outras ocasiões, Lucas foi vítima de comentários preconceituosos e foi "pintado" como um homem negro violento que poderia abusar de uma das mulheres a qualquer momento. A participante BBB e cantora fluminense Pocah, 26 anos, por exemplo, disse que tinha medo dele e que Lucas tinha "cara de demônio".

Outra participante do reality, a rapper Karol Conká também fez piadas sobre o rapaz estar "possuído", sendo que Lucas é praticante de umbanda, religião de matriz africana.

Para evitar que mais episódios de bifobia e preconceito com relação à diversidade sexual aconteçam, a escola e os ambientes educacionais podem ter um importante papel de conscientização. O desconhecimento sobre a bissexualidade faz com que, muitas vezes, essas pessoas tenham a orientação sexual vista como fruto de indecisão e relacionada à promiscuidade

 

Arquivo Pessoal - Rozana Barroso, presidente da Ubes, diz que Lucas Penteado representa o jovem periférico de hoje

 

Ambientes educacionais têm papel fundamental para a conscientização sobre a diversidade sexual

Para Rozana Barosso, a escola é instrumento fundamental para acolher pessoas LGBTQIA+ que já vivem às margens da sociedade, por integrarem outros grupos vulneráveis. “O Lucas representa o jovem de hoje. Quando a gente olha as pessoas LGBTs negras que estão no reality show hoje, elas são a exceção. Essa não é a realidade do jovem negro da periferia”, explica.

A jovem ainda aproveita para ressaltar que essa é uma opinião dela, não da Ubes. Rozana destaca a importância da escola para a formação de jovens que contribuem para o desenvolvimento social do país.

“A luta conta a LGBTfobia nunca vai ser só dos LGBTs, ela tem que ser uma luta de todos os brasileiros para a gente viver em um Brasil limpo de violência, de genocídio e de tantas outras questões”, reflete.

"São coisas que precisam fazer parte dessa luta coletiva. A escola tem esse papel também de informar a importância da luta coletiva. Qual é nosso objetivo? Viver num Brasil melhor para todos", propõe.

 

Instituições de ensino devem estar preparadas para lidar com a diversidade

Diretor de interação com a comunidade do Grupo Dignidade, organização de Curitiba (PR) que atua na promoção da cidadania de pessoas LGBTQIA+, Lucas Siqueira afirma que o maior desafio dos estudantes LGBTs é encontrar nas escolas auxílio para entender a sexualidade e denunciar o preconceito.

“A ideia é ter profissionais capacitados para lidar com essas situações e tornar a escola um ambiente confortável para todos os tipos de diversidade”, diz sobre o ideal com relação a ambientes educacionais. Publicada em 2016, uma pesquisa do grupo revela que 60% dos professores afirmam não estar preparados para lidar com a LGBTfobia.

Sobre a bifobia e a discriminação sofridas por Lucas Penteado no BBB, Lucas Siqueira afirma que ser LGBT não isenta o indivíduo a reproduzir a LGBTfobia. “Todo mundo da sociedade foi criado em uma cultura preconceituosa”, explica.

Para ele, os bissexuais enfrentam falta de apoio e de referências, tanto fora quanto dentro da comunidade LGBTQIA+. “A comunidade LGBT não está fora da sociedade, ela enfrenta os mesmos desafios”, diz. “A nossa comunidade é diversidade dentro da própria diversidade”.

O diretor do Grupo Dignidade ainda explica que o processo de aceitação a própria sexualidade é algo muito individual e específico. “Se tem 10 gays aqui, mesmo com a mesma orientação sexual, são dez processos diferentes”, esclarece.

Ele ressalta que o movimento LGBTQIA+ vem “se adaptando e buscando cada vez mais contemplar toda a diversidade sexual que existe”, no entanto, historicamente, há menor representatividade de bissexuais na mídia. “Quando o movimento começou, eram ‘entendidos’, não tinha uma classificação como tem hoje, depois foi para GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), depois LGBT e agora LGBTQI+ (na definição do Grupo Dignidade)", ressalta.

Arquivo Pessoal - "A nossa comunidade é diversidade dentro da própria diversidade", diz Lucas Siqueira, da diretoria do Grupo Dignidade.

 

"Tive a bissexualidade questionada"

Homem negro bissexual, o estudante do quarto semestre de direito da Universidade de Brasília (UnB) Gustavo Cantanhede, 21, relata que já teve a orientação sexual questionada, assim como Lucas Penteado no BBB. “A bissexualidade só é aceita quando as pessoas estão em trânsito. Se você namora um menino, dizem que você é homossexual; se namora uma menina, dizem que é hétero”, comenta.

Gustavo conta que a questão racial foi responsável por abrir a mente dele para a diversidade no meio LGBTQIA+. O estudante diz que a raça o fez ouvir mais as vivências de outras pessoas e passar por um processo de reflexão profunda sobre essas questões identitárias.

 

Arquivo Pessoal - O estudante de direito bissexual Gustavo Cantanhede afirma que a questão racial o ajudou a entender melhor as demais questões identitárias

“São lutas muito próximas, são lutas identitárias", afirma. Gustavo é mais reservado, mas diz que, na universidade, existe uma pressão maior para “levantar a sua bandeira”. Apesar disso, o ambiente é mais aberto a essas questões.

A procura por um ambiente mais seguro

O também estudante do quarto semestre de direito da UnB João Gabriel Resende, 20 anos, conta que só teve coragem de se assumir como homossexual quando se mudou de Inhumas (GO) para fazer faculdade. “Existe uma questão de achar que na cidade grande vão te aceitar mais”, confessa.

Atualmente, ele é da equipe jurídica do Rexistir, projeto de extensão da UnB que dá assistência jurídica a pessoas LGBTQIA+ e promove atividades acadêmicas relacionadas à pauta.

Arquivo pessoal - João Gabriel relata que ficou abalado com a história de Lucas Penteado no BBB


João Gabriel fez o ensino médio no câmpus Inhumas do Instituto Federal de Goiás (IFG) e conta que teve muita resistência de se assumir. Ele relata que o IFG era aberto a questões de sexualidade, mas isso não foi o suficiente para conseguir falar publicamente da própria sexualidade.

O estudante admite que, como homem gay, chegou a julgar como privilegiadas as pessoas bissexuais, por apresentarem a possibilidade de se relacionar com pessoas do sexo oposto (e assim não sofrerem preconceito), mas que passou a entender melhor as lutas de cada um. “É uma dor que é diferente, mas também é uma dor do grupo LGBT”, relata.

Telespectador do BBB, ele conta que ficou abalado e diz que sentiu a dor de Lucas Penteado. “Ele não se apropriou da agenda LGBT. Todos nós (da comunidade) temos essa agenda LGBT na nossa vida. Desde o momento em que eu acordo, eu sou LGBT em todos os lugares”.

 

Diretoria defende diversidade na UnB

Para cuidar de assuntos relativos à pauta LGBTQIA+, a UnB conta com a Diretoria de Diversidade (DIV). Susana Xavier, diretora da DIV, explica que os estudantes são peça importante para a construção da agenda do departamento. “Eles se organizam, eles se politizam”, conta sobre os grupos formados por estudantes da comunidade.

De acordo com Susana, o maior desafio para um ambiente escolar diverso é o preconceito social. “Infelizmente essas práticas de violência estão na sociedade, e a universidade não é um ambiente separado”, lamenta.


Arquivo Pessoal - Susana Xavier, diretora da DIV/UnB, diz que o preconceito social é o maior desafio da inclusão de LGBTs no ambiente educacional


A servidora explica que as questões sobre LGBTs são tratadas de maneira interseccional, que leva em conta a sobreposição de fatores de discriminação. “Uma mulher negra LGBT, por exemplo, sofre de maneira diferente de uma mulher branca”, explica.

Importância das redes de apoio na educação: o exemplo do IFB

Professora de design e moda do câmpus Taguatinga do Instituto Federal de Brasília (IFB), Moema Carvalho, 37 anos, conta que implementou, com outros servidores, um Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual (Nugedis) para realizar rodas de conversa, promover a inclusão e servir de canal de denúncia para casos de LGBTfobia.

A docente conta que essa foi uma demanda dos alunos, que vinham conversar sobre assuntos com os quais não estavam conseguindo lidar. "É como se fosse um pedido de socorro", conta.

Arquivo Pessoal - Moema Carvalho participa do Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual do IFB

 

Ela relata que, no ambiente educacional, muitas vezes, o preconceito está mais nos professores do que nos estudantes. “Os alunos não estão nem aí para quem é bi, quem não é”, percebe. Para a docente, nas atividades do núcleo, os professores também aprendem com os alunos.

No entanto, há docentes que, pelo conservadorismo, são contra a própria existência do Nugedis. O núcleo é uma saída encontrada para debater e fomentar o assunto fora da sala de aula, já que, no IFB, assuntos tocantes a gênero, expressões religiosas e sexualidade não são permitidos nas aulas pelo regulamento discente.

 

*Estagiária sob a supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa