Quase metade dos postos públicos de âmbito federal do país são ocupados por mulheres. Na média entre o Executivo, Legislativo e Judiciário, elas são só 39% da força de trabalho, de acordo com levantamento feito pelo Correio. Apesar de ter aumentando nos últimos anos a participação feminina nos cargos de chefia ainda é minoria. Em 2020, por exemplo, o infográfico Percentual de Mulheres e Homens em cargos de liderança no Governo Federal mostra que 39,99% da chefia do governo federal era composta por mulheres.
Hoje, se você vai em qualquer cursinho preparatório para concursos, provavelmente, a sala será formada por uma maioria feminina. O Censo dos Concurseiros, feito com dados do Qconcursos, do ano passado atesta isso. De acordo com o levantamento, 54% das pessoas que estudam para concursos são mulheres. Por um ano e meio, Suellem Bueno, de 34 anos, foi uma dessas concurseiras. Hoje, ela é servidora na Secretaria de Desenvolvimento Social do DF e coleciona outras três aprovações.
Mas ela lembra das dificuldades que existem pelo caminho. “As mulheres desenvolvem muitos papéis na sociedade, e além do trabalho, a sociedade impõe que ela seja a 'mulher maravilha'- uma super heroína perfeita que tem de dar conta de tudo: casa, filhos, saúde, finanças, relacionamento; somos muito cobradas! E é nisso que encontramos a dificuldade, pois estudar se torna um algo a mais na rotina corrida de uma mulher, por isso muitas desistem, infelizmente”, destaca. Ela também lembra que tinha 28 anos quando começou a estudar e mesmo assim se sentia velha pela pressão da sociedade. “Acho que essa era uma pressão pra ter a vida perfeita até os 30 anos”, afirma.
Durante a rotina de estudos dela, ela até chegou a ficar um tempo se dedicando só a preparação e agora ela quer continuar os estudos para a área legislativa. Além disso, ela compartilha dicas pelo Instagram para mulheres que querem ser servidoras. "É justamente aquela história de querer incentivar e ajudar mais mulheres a viverem um emprego digno, a terem independência para tomar as decisões que quiserem."
No Executivo, as mulheres respondem a 41% dos cargos, segundo os dados do Painel Estatístico de Pessoal do governo federal. Além delas ocuparem menos de 50% dos postos, ao olhar para cargos mais concorridos e visados essa diferença ainda é acirrada. De acordo com o estudo As Mulheres na Liderança da RFB: as Fotografias na Transição de Governos 2022-2023, contratado pelas diretorias de Estudos Técnicos e de Defesa Profissional do Sindifisco a pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), somente 24% dos auditores da Receita Federal são mulheres. Nos cargos de chefia e gestão o número ainda é menor: 19%.
Esse cenário de disparidade de gênero nos cargos públicos é visto como um desafio pela especialista em políticas públicas Sheila Barbosa. Professora da Universidade de Brasília (UnB), Sheila reconhece o aumento na presença de mulheres no serviço público, mas diz ser necessário fomento de políticas públicas tanto na qualificação deste público como no encaixe das oportunidades no cotidiano das mulheres. “Aí entram políticas públicas capazes possibilitar que a mulher se dedique a um concurso público ao passo que ela cumpre suas funções, como mãe por exemplo”, afirma a professora. Sheila também aponta ser necessário que essas políticas abranjam servidoras já concursadas que necessitam destinar horários de expediente para outros afazeres intrínsecos à sua realidade, como amamentar o bebê, por exemplo", destaca.
A amamentação no período laboral da servidora pública federal, segundo a Lei nº 8.112, é de uma hora de expediente, durante seis meses. Esse intervalo pode ser dividido em dois tempos de meia hora. O tempo em que a servidora destina para amamentação muda conforme cada unidade da federação trata o tema. No Distrito Federal, por exemplo, servidoras do governo terão, a partir desta semana, duas horas de expediente para amamentar o bebê até que a criança complete dois anos de idade.
Desafios para mulheres vão de machismo diário a desigualdade salarial
Nory Celeste, diretora de defesa profissional do Sindifisco, lembra que quando se formou em eletrotécnica em 1980 só tinha três mulheres na sala. Ela então foi se candidatar a uma vaga na recém inaugurada hidrelétrica de Itaipu e foi informada que não poderia porque “nós não vamos levar uma mulher. Nós não vamos fazer um banheiro e um alojamento só para ti”, disseram para ela.
Por isso, ela diz que viu a evolução das mulheres poderem passar a disputar uma vaga. No entanto, quando se trata de concursos mais difíceis, ela destaca que os desafios são inúmeros. “Os cargos que têm uma exigência grande para concurso é muito difícil uma mulher ter disponibilidade de tempo para estudar. Normalmente, tem jornada dupla, tripla, tem dificuldade de as pessoas no seu entorno acreditarem nela, porque você precisa dessa ajuda para conseguir passar no concurso”, afirma.
Além disso, ela destaca o machismo dentro das instituições que impede que as mulheres cheguem a um cargo de chefia. Ela lembra que um chefe uma vez foi elogiá-la para um colega de trabalho e disse: “Ela é ótima, trabalha como um homem." “É uma questão que a gente tem que trabalhar e acho que temos que propor que se busque uma paridade nos cargos de chefia, isso é importante, e acho que a gente tem que estimular as mulheres a participar, a entrar na Receita, a ocupar esses cargos”, afirma. O concurso para auditor da Receita é um dos mais visados do país. O salário inicial é de mais de R$ 22 mil. Na última seleção, em 2022, foram registradas 232 candidatos por vaga.
Outro exemplo é em relação ao cargo de Auditor-Fiscal do Trabalho, o que tem o melhor salário entre as oportunidades abertas pelo Concurso Nacional Unificado. Segundo Rossana Nunes, 41 anos, e auditora há 16 deles, os desafios para a mulher na profissão são inúmeros. Ela mesmo teve que abrir mão de se candidatar a postos após ter tido filhos. Mãe de três, ela explica que muitos cargos visados dentro da profissão, como o de integrar os grupos móveis de combate ao trabalho escravo, acabam afastando as mulheres pela necessidade de muitas viagens e de muitas horas de dedicação ao trabalho.
“É a tripla jornada das mulheres. É mais difícil conciliar os estudos com as tarefas domésticas e os cuidados com a família. Apesar de ter a igualdade pelo concurso público, é preciso conciliar com outras atividades”, destaca ela que é presidente da Delegacia Sindical do Sinait no Rio Grande do Norte. No estado, são 45 auditores, sendo que só 12 são mulheres. Ela destaca que para mudar o cenário são necessárias várias ações .”É necessário uma rede de apoio. Uma colaboração do parceiro, afinal toda a família vai ser beneficiada. E precisamos de políticas públicas, de creches”, afirma.
Diplomacia
No Ministério das Relações Exteriores, um dos concursos considerados mais difíceis do país, as mulheres representavam somente 23% do total de diplomatas do Itamaraty, de acordo com estudo da Associação de Diplomatas Brasileiro de 2022. No cargo de embaixadora, somente 12% são ocupados por mulheres. Em janeiro, a associação emitiu um nota em que diz que o Itamaraty não está seguindo as orientações do governo federal de conduzir mais mulheres aos cargos de gestão e que recebeu com “indignação” misturado com “revolta e ao desânimo” ao ver que de 64 nomes incluídos “nos mecanismos internos de promoção” do Itamaraty somente 18,75% foram de mulheres.
No Judiciário
Ao olhar para o Judiciário brasileiro, a desigualdade de gênero também se encontra nos postos mais visados. O percentual de magistradas em todo o Poder Judiciário é de 38% em relação aos 62% de homens. No caso de desembargadoras, só há 25% de mulheres. E apenas 18% chegam a ser ministras, segundo o relatório Justiça em Números. No Supremo Tribunal Federal (STF), que é o posto mais alto dentro do Judiciário, só há uma ministra, a Cármen Lúcia, que deve se aposentar em 2029.
No Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) as mulheres são 53% dos servidores. No entanto, elas são 41% dos magistrados. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) também repete o mesmo retrato. O órgão é formado por 51% de servidoras no quadro permanente e 42% de promotoras. Desde 2018, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina, que estabelece que todos os ramos e unidades do Poder Judiciário deverão adotar medidas para assegurar a igualdade de gênero no ambiente institucional.
O índice de servidoras admitidas para cargo de confiança ou função comissionada no Poder Judiciário é de 56%. Na Justiça Estadual, o percentual é de 59%. Na Justiça do Trabalho, é de 53%, e na Justiça Federal, de 53%. A proporção é invertida na Justiça Militar (36%); nos tribunais superiores (45%); e na Justiça Eleitoral (47%).
Projeto de Cotas em análise
Hoje no Congresso, há um projeto que estabeleceria uma cota de 15% do ofertado em edital para mulheres negras. O projeto, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), visa a continuidade de ações para ampliar a diversidade e inclusão no parlamento. A expectativa é de que esse plano reforce a Casa a votar o Projeto de Lei (PL) 1.958/21, que renova a política de cotas raciais em concursos públicos, que vence em junho. O assunto é prioritário para o Ministério da Igualdade Racial. Para Nory Celeste, a reserva de vagas pode ser uma solução. "Eu acho que tem que se estabelecer cotas, é temporário, mas por um tempo tem que estabelecer cotas."
Sobre o cotas para mulheres em concursos públicos em geral como uma possibilidade de aumentar a participação feminina, Sheila Barbosa afirma não enxergar como solução. “Cotas são colocadas como reparação à falta de acesso a uma categoria — no caso as mulheres. E não vejo essa necessidade, já que temos aumentado a participação feminina ao longo dos anos. Mesmo assim, é preciso debater essa questão”, finaliza Sheila.