“A crase não foi feita pra humilhar ninguém.” A frase de Ferreira Gullar fez escola. José Cândido de Carvalho adaptou-a para o sinalzinho de pontuação responsável por um mar de vítimas. “A vírgula”, escreveu ele, “não foi feita pra humilhar ninguém”. É verdade. Uma e outra têm papel definido. Contribuem para a clareza da mensagem. Dois casos servem de exemplo.
Um
Circula na internet uma brincadeirinha divertida. Ela joga com os diferentes sentidos decorrentes da presença ou da ausência da crase. Veja:
Se você me desse a tarde, eu alegremente a trocaria por uma crase.
Do jeito que está, a tarde funciona como objeto direto. Ela completa o sentido do verbo dar. A gente dá alguma coisa — dinheiro, presente, boa notícia. No caso, a pessoa dá a parte do dia em que o Sol começa a voltar pra casa. Belo e poético presente. Mas o receptor se dispõe a abrir mão dele. Prefere trocá-lo por algo que não está expresso, mas apenas subentendido:
Se você me desse à tarde, eu alegremente a trocaria por uma crase.
À tarde, assim, com acentinho grave, muda o enredo da novela. Em vez de complemento romântico, torna-se adjunto adverbial de tempo. O objeto fica em aberto, entregue ao gosto do freguês. Marcelo Abreu comentou: “Como se diz no Maranhão, é crase cheia de saliência. Com ela, a história mudaria completamente”.
Dois
O amor bate à porta
E tudo é festa.
O amor bate a porta
E nada resta.
A quadra, do piauiense Cineas Santos, também brinca com o acento grave. Como no exemplo anterior, o autor joga com as possibilidades da língua. À porta funciona como adjunto adverbial de lugar. Toc, toc, toc, anuncia ele, louco para entrar.
Em “bate a porta”, porta funciona como complemento do verbo bater. Podemos bater o bolo, bater o ponto, bater o prego. Ele pummmmmmm! Adeus, para nunca mais.
Por falar em crase
Vamos combinar? Só pode brincar com crases & cia. quem conhece as possibilidades da língua. É o caso dos autores analisados. Eles dominam as manhas do acento grave. Não é difícil. Quer ver?
1. Só ocorre crase se dois aa se encontrarem. O casório se dá quando a preposição a encontra outro a. Pode ser o artigo definido, o pronome demonstrativo a, ou o a inicial dos pronomes aquele, aquela, aquilo: O cão é fiel à dona. Entreguei o relatório àquele senador. Fez referência à tradução à qual nos temos dedicado.
2. Excluindo-se o caso dos demonstrativos, só haverá crase antes de palavra feminina, clara ou subentendida: Obedecemos à lei. Fui à Editora Nacional e à (editora) Globo. Canta à (moda de, maneira de) Julio Iglesias.
3. Use a crase em locuções adverbiais, prepositivas e conjuntivas formadas por palavras femininas: à vista, às vezes, às escuras, às pressas, à noite, à tarde, à moda de, às apalpadelas, às tontas, às claras, à direita, à esquerda, à uma hora, à base de, à custa de, à força de, à espera de, à medida que, à proporção que.
Superdica
Forma fácil de descobrir se ocorre crase é substituir a palavra feminina por uma masculina (não precisa ser sinônima). Apareceu ao? Sinal de acento grave:
Fiel à dona. Fiel ao dono.
Fez referência à tradução (ao texto) à qual (texto ao qual) nos temos dedicado.
Saiu à uma hora. Saiu ao meio-dia.
Visitou a amiga. Visitou o amigo.
Leitor pergunta
Vou a Brasília? Vou à Brasília? Nunca sei.
Sara Souza, Guarujá
Substitua o verbo ir por voltar e oriente-se pela quadra:
Se, ao voltar, volto da,
Craseio o a.
Se, ao voltar, volto de,
Crasear pra quê?
Volto de Brasília.
Volto de? Crasear pra quê? Vou a Brasília.