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Oncologista discute as dificuldades do combate ao câncer de mama em mulheres negras

Abna Faustina faz parte do grupo de estudo da USP que mapeia como a disparidade racial afeta a assistência oncológica no país

Carmen Souza
postado em 08/10/2023 06:00 / atualizado em 08/10/2023 06:00
Abna Faustina, oncologista da Oncoclínicas -  (crédito: Srquivo Pessoal)
Abna Faustina, oncologista da Oncoclínicas - (crédito: Srquivo Pessoal)
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Um dos tumores malignos mais incidentes no Brasil, o câncer de mama precisa ser melhor compreendido. São poucos os dados sobre como ele impacta a maior parcela da população: as mulheres negras." Se não estamos estampadas nos estudos clínicos, como posso afirmar que aquela medicação serve exatamente para aquela paciente? Que aquela posologia é mais adequada?", questiona Abna Faustina (foto), oncologista da Oncoclínicas.

A médica também faz parte de um grupo de estudo da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o Race.Id, que trabalha para mapear como a disparidade racial afeta a assistência oncológica no Brasil. Em entrevista à coluna, Abna enfatiza, entre outros pontos, que as campanhas precisam considerar especificidades desses pacientes, como as dificuldades de acesso aos serviços de assistência e a falta de contato com medidas de promoção da saúde. "A mulher negra precisa de ultrassom e de mamografia, mas também precisa saber que a atividade física previne o câncer", ilustra.

Este é um mês em que se fala muito sobre o câncer de mama. O que temos para falar sobre o câncer de mama nas mulheres negras?

A maioria da literatura é externa, temos poucos dados que retratem essa disparidade em relação aos cânceres aqui no Brasil. Mas a gente não teria como achar que é diferente dos Estados Unidos. Pelo contrário, aqui deve ser até mais pronunciado porque estamos em maior número. Nós somos 56% da população. Lá nos Estados Unidos, eles são de 13% a 15%. Então, o grupo de pesquisa do qual faço parte (na USP) existe justamente para mapear isso. Temos um dado da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde me formei, que corrobora isso. Só que esse estudo foi feito, na verdade, para ver a sobrevivência na mortalidade. Eles mostraram que a paciente negra com câncer de mama tem uma sobrevida 25% menor do que a paciente branca. Eles analisaram um cenário do SUS e conseguiram avaliar em torno de 10 mil pacientes. Esse estudo é de 2017. Então, não é uma coisa de agora. Mais recentemente, no ano passado, saiu um estudo do grupo da Angélica Nogueira, de Belo Horizonte, mostrando que as mulheres negras têm uma mortalidade 10% maior do que as mulheres brancas com câncer de mama. 

Quais as principais razões para essas diferenças?

A gente pode pensar em diversos fatores. Por exemplo, temos alguns dados que mostram que, depois do Outubro Rosa, o número de mamografias aumenta, mas não aumenta proporcionalmente para mulheres negras e brancas. Aumenta em maior número para mulheres brancas porque são as mulheres que estão sendo chamadas para as campanhas. Quem são as mulheres que estampam as campanhas? Quem são os médicos que fazem as campanhas? Tudo isso está envolvido no acesso e na adesão da paciente. A adesão não é uma coisa que depende só da paciente. Quando a gente fala da paciente negra, ela não tem mesmo acesso.

Um levantamento do Cedra mostra que 35% mais mulheres negras que brancas não fizeram mamografia ao longo da vida…

Exatamente. Então, não é só a adesão. Além de não serem chamadas para as campanhas, quando as mulheres negras vão fazer o exame, elas não conseguem acesso. Então, elas são diagnosticadas mais tardiamente, com uma doença mais avançada, o que impacta diretamente na sobrevivência e na assistência ao câncer. Além disso, elas, no geral, têm mais comorbidades, pressão, alta diabetes, outras doenças que influenciam na tolerância ao tratamento. Também não estão estampadas nas pesquisas clínicas, o que é um dado muito chocante. Nos Estados Unidos, de 3% a 5% dos indivíduos em pesquisa clínica na área de oncologia são negros. É muito pouco. Em breve, vamos fazer um mapeamento aqui no Brasil. Mas se não estamos estampadas nos estudos clínicos, como posso afirmar que aquela medicação serve exatamente para aquela paciente? Que aquela posologia é mais adequada?

Há uma discussão de que as mulheres negras devem começar a fazer a mamografia mais jovens. Considerando todo esse apagão de dados nacionais, como ficaria isso no Brasil?

Na verdade, no Brasil, a indicação adotada pelo Ministério da Saúde, feita pelo Inca, não é a das agências internacionais. Aqui, a gente adota a partir de 50 anos para mamografia e ultrassom. E as agências internacionais recomendam a partir dos 40 anos, e tem essa discussão que, para mulheres negras, deveria começar até antes. Mas não seria melhor: baixar a idade para screening ou criar condições para melhor controlar os fatores de risco? Porque, no fundo, a gente vai ver que as mulheres negras estão muito mais expostas a todos esses fatores de risco do que as mulheres brancas.

E como fazer campanhas que considerem essas questões?

A campanha tem que ser direcionada. Ela não pode ser só venha fazer a mamografia e o ultrassom. Ela tem que ser direcionada para a necessidade da sociedade. A mulher negra precisa de ultrassom, de mamografia, mas também precisa saber que a atividade física previne o câncer. Muitas delas não sabem. A gente deveria começar com promoção da saúde. Mamografia e ultrassom fazem parte, com certeza, mas eles são exames de diagnóstico precoce, servem quando a doença já está lá.

Como elas recebem essa orientação vinda de você, uma profissional negra?

Essa discussão inclui esse viés implícito, o de como o médico trata o paciente. Há vários estudos que mostram isso, que é uma das linhas de pesquisa do nosso grupo também. Muitas pacientes reclamam que o médico não as examina, que subestima a sua queixa. Se essa mulher tem uma pior experiência na assistência, isso vai inibir, vai fazer com que ela deixe de procurar. Interfere também na adesão ao tratamento, na comunicação com o paciente. adesão.

Tem aí também uma falta de preparo dos médicos?

Assim, a gente vê muita coisa no hospital, tumores enormes, e muitos colegas perguntando: 'Nossa, como que a paciente deixou chegar a esse ponto?' Mas a paciente não quer chegar com um tumor ulcerado e com mau cheiro. Mas ela tem os filhos para cuidar é chefe de família. Tudo isso vai impactar diretamente na apresentação da doença. Quando você vai ver a história, ela tentou, foi ao posto, mas não foi atendida, ou viu que tava crescendo, mas não podia fazer nada porque tinha que trabalhar e não tinha com quem deixar os filhos. Muitas coisas deveriam ser revistas pensando nessa população. O acesso não pode ser igual, tem que ser desigual para tratar todo mundo da forma mais equânime. Se forem as mesmas regras para as mesmas pessoas, alguém vai sair perdendo, e sempre vai ser a população minoritária.

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