ENTREVISTA / SHEILA CAMPELLO / DOUTORA EM ARTES PELA UNB

Arte pode contribuir para uma cultura de paz nas escolas

Educadora defende o resgate de experiências educacionais bem-sucedidas, o fomento a grupos de pesquisa coordenados por professores doutores que atuam no ensino básico e a regulamentação das redes sociais

Ana Dubeux
Severino Francisco
postado em 21/04/2023 03:00
 (crédito: Arquivo pessoal)
(crédito: Arquivo pessoal)

Ataques a escolas, como o chocante caso de Blumenau — no qual um homem invadiu uma creche, matou quatro crianças e feriu outras cinco — abrem fendas que jamais fecham. São traumas sociais, que, quando ocorrem, suscitam diversos debates, apoiados em todo tipo de teoria. Há, no entanto, um ponto em comum nas discussões: todos abordam a necessidade de mais investimento em educação.

Mas que educação seria essa e quais modelos poderiam conter ou prevenir esse tipo de barbárie? Sheila Campello, professora aposentada da Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEEDF) e doutora em Artes pela Universidade de Brasília (UnB), defende que projetos envolvendo as várias formas de arte podem contribuir para a redução dessa violência no ambiente escolar. Em sua trajetória como educadora, Sheila viu nascerem, crescerem ou morrerem experiências educacionais exitosas, caso das escolas parque de Brasília, do CIEM — Centro Integrado de Ensino Médio, na UnB, passando pelo Arteduca, grupo de pesquisa implementado por ela e vinculado ao Programa de Pós-graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB).

Em entrevista ao Correio, a professora fala sobre essas propostas e da necessidade de incentivo à pesquisa no contexto da educação básica.

Em que medida a arte contribui para o conhecimento e o reconhecimento do outro?

Concordo com o propositor da teoria da educação pela arte, o arte-educador inglês Herbert Read, que defende a tese de que a educação deveria consistir em um processo de reconciliação da singularidade individual com a unidade social. Para ele, o indivíduo será “bom”, na medida em que se realiza na totalidade orgânica da comunidade. O “mal’ estaria relacionado com tendências que destroem essa unidade. A educação pela arte teria o papel significativo de proporcionar condições para desenvolver a singularidade e, ao mesmo tempo, a consciência social ou reciprocidade do indivíduo. A arte possui um potencial agregador e está presente em nosso cotidiano, principalmente na cultura digital. Estamos imersos em imagens, sons, movimentos que nos convidam a interagir. Nessa interação, estão sempre ocorrendo aprendizagens que nos levam a concluir que a arte tem uma função muito significativa na educação, que não se resume à mera transmissão de conhecimento. A educação pode ocorrer na interação e colaboração com outros, em diferentes espaços — privados ou públicos — e, de forma especial, na escola.

Qual o papel da arte na educação?

No processo educacional, a arte pode desempenhar um papel muito importante por constituir-se como uma forma de comunicação que pode ser viabilizada por meio de diferentes linguagens (visual, musical, cênica e de movimento, como a dança, por exemplo). A interação e a colaboração entre indivíduos em atividades artísticas, planejadas e fundamentadas em métodos apropriados, podem promover a aquisição da consciência social que está diretamente vinculada à percepção da existência de um outro diferente, muitas vezes fragilizado, desamparado, discriminado e, em situações extremas, martirizado. Um outro que deveria ser aceito, acolhido e até mesmo amado.

Pode nos dar alguns exemplos?

Podemos encontrar exemplos da arte nos apresentando esse outro na música, com a periferia presente nas obras de Emicida e Mano Brown, Morte e Vida Severina, Meu Guri, em Chico Buarque; na literatura, com Vidas Secas, de Graciliano Ramos, no Quarto de Despejo, de Maria Carolina de Jesus; no teatro, com o nosso Macunaíma; nas artes visuais, com retratos de Sebastião Salgado e os Operários, de Tarsila do Amaral, nas cerâmicas e cestarias da arte indígena... A tese de Read, enriquecida com ideias de outros teóricos (dentre eles, Paulo Freire e Basarab Nicolescu), foi considerada no processo de elaboração da metodologia aplicada aos cursos oferecidos, entre 2003 e 2014, pelo Arteduca — grupo de pesquisa vinculado ao Programa de Pós-graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB).

É possível citar experiências no Brasil em que a arte educação contribuiu para a instauração de uma situação de paz social?

Eu tive a oportunidade de acompanhar o processo de planejamento e aplicação de projetos que visavam alcançar esse objetivo. Elaborados em diferentes edições da especialização oferecida pelo Grupo Arteduca, tais projetos fundamentavam-se em um conceito intitulado matriz humanizante, responsável por gerar um ambiente harmonioso no qual estariam imersos todos os participantes da turma. Apoiada nesse conceito, a equipe responsável pela mediação da aprendizagem deveria atuar de forma gentil, amorosa, acolhedora, procurando despertar, por meio das próprias atitudes, a consciência de que todos seriam responsáveis por manter a harmonia pretendida. Assim, buscávamos incentivar uma atuação docente humanizante por parte desses professores participantes, na interação com seus estudantes em suas respectivas escolas. Os estudos realizados resultavam em projetos de ensino e aprendizagem interdisciplinares ou transdisciplinares (articulando a arte e outros componentes curriculares) que poderiam extrapolar os muros das escolas e ampliar seu alcance, não somente em relação às disciplinas ministradas, como também, com o meio social que abrigava essas escolas. Os participantes poderiam, então, convidar outros professores para se integrarem ao projeto e deveriam se esforçar para conscientizar cada integrante do projeto de seu papel na sociedade, não somente como consumidores, como também como produtores de cultura e conhecimento.

De que maneira a arte educação deveria integrar as políticas públicas para fortalecimento de uma cultura da paz?

Em minha opinião, seria necessária uma revolução educacional que invertesse a lógica da educação, atualmente baseada em propostas instrucionais, nas quais os professores, detentores do conhecimento, transmitem informações aos estudantes. No caso do Arteduca, professores de diferentes áreas de conhecimento participavam e eram orientados a elaborar projetos em parceria com arte-educadores, envolvendo a linguagem artística escolhida com conteúdos de seus campos de atuação. Ao aplicar o projeto nas escolas, poderiam, como já foi dito, convidar professores responsáveis por outros componentes curriculares, não participantes do curso, para que buscassem formas de se integrar à proposta. Nossa ideia consistia em tentar vencer a barreira que aprisiona o conhecimento em disciplinas que não se comunicam. Tínhamos a pretensão de incluir outros segmentos da comunidade escolar, de maneira a promover uma grande integração, fundamentada na interação e colaboração, conceitos que acreditávamos estar na base de uma convivência harmoniosa. Propostas educacionais fundamentadas em projetos de ensino e aprendizagem como a que praticávamos já haviam se mostrado viáveis no passado.

Que experiências poderiam servir de base para repensar a educação com essa proposta?

Recomendo assistir ao vídeo que apresenta uma experiência dos Ginásios Vocacionais, desenvolvida no Estado de São Paulo. Ele está disponível no Youtube (Vocacional - Uma Aventura Humana). Essa experiência pedagógica poderia ter revolucionado a educação na década de 1960. Lamentavelmente, foi interrompida pelo golpe militar de 1964. Outra experiência pedagógica que privilegiou o trabalho colaborativo entre estudantes e que pode ser mencionada foi realizada na UnB, no CIEM — Centro Integrado de Ensino Médio, escola de aplicação também interrompida pela ditadura quando, em 1970, a repressão se tornou mais dura. Posteriormente, nos anos 1990, com a criação do Programa de Informática na Educação (ProInfo), do Ministério da Educação (MEC), novas propostas de aplicação de projetos de ensino e aprendizagem foram desenvolvidas nos laboratórios de informática de algumas escolas, como estratégia para uso pedagógico dos computadores. Em minha opinião, tais experiências deveriam ser analisadas criteriosamente, para fundamentar a proposição de novas políticas públicas educacionais, especialmente neste momento de revisão da proposta para o Novo Ensino Médio.

Como começou a sua experiência na área de educação pela arte? Que projetos vingam até hoje?

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96), com seu caráter flexível, proporcionou condições para que os professores de arte a interpretassem e buscassem abordagens teóricas e metodológicas que poderiam fundamentar suas práticas. Esse esforço tornou obrigatório o aprofundamento de estudos e me levou a ingressar no mestrado. Na Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEEDF), eu atuava em um núcleo de tecnologia educacional com a missão de oferecer formação de professores para uso pedagógico das “novas tecnologias”, como eram chamadas, à época. Para atuar nesses núcleos de tecnologia, recebíamos formação oferecida pelo MEC que, com essa finalidade, realizava excelentes encontros presenciais nacionais, com participação de professores de universidades e escolas, vindos de todos os estados brasileiros. Nesse "caldo" nasceu o projeto do curso de especialização Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas. Foi possível, então, colocar em prática a ideia de educação pela arte, viabilizada por meio dos projetos de ensino e aprendizagem elaborados e aplicados pelos professores/estudantes ao longo do curso. Atuei na coordenação do Grupo Arteduca aproximadamente 10 anos, por meio do convênio entre a SEEDF e a UnB. Com o término do convênio, com muito pesar, deixamos de oferecer o curso e o meu retorno à SEEDF inviabilizou o acompanhamento da aplicação dos projetos.

Brasília já foi referência no assunto. O projeto foi descontinuado?

A arte foi muito valorizada nos primórdios de Brasília, no projeto que integrou a utopia educativa da proposta modernista concebida por Anísio Teixeira para a nova capital brasileira criada no Governo Juscelino Kubitschek. O projeto educacional se harmonizava com o projeto urbanístico da nova capital, planejado com base em unidades de vizinhança, compostas por quatro superquadras. Cada superquadra possuiria uma escola classe, que atenderia à clientela que hoje é composta pelos anos iniciais (1º ao 5º ano). Cada unidade de vizinhança seria atendida por uma escola parque. Por razões econômicas e políticas, o projeto foi abandonado e a proposta das escolas parque foi desvirtuada. Com o objetivo de contribuir para o debate sobre o projeto original das escolas parque e, por meio dele, analisar possibilidades de atualização da proposta, foram realizados estudos sobre o assunto na última edição do curso Arteduca. Desses estudos resultou a elaboração de dois projetos de ensino e aprendizagem que seriam aplicados nas escolas parque da SQN 210/211 e da SQS 307/308. Com a descontinuidade do curso, ao final do convênio não foi possível acompanhar a continuidade do projeto.

Quais as consequências de um governo ou de uma sociedade que incentiva as crianças e os adolescentes a usar mais armas do que os livros?

As consequências estão evidenciadas nas manchetes de jornais e viralizando nas redes sociais em imagens absurdas dos massacres ocorridos nas escolas, nos assassinatos praticados por criminosos, milicianos e até mesmo pela própria polícia, que deveria ser responsável pela proteção das pessoas. Se a própria polícia ataca a população, especialmente a periférica, e prevalece a impunidade a quem poderemos recorrer? A sociedade está adoecida e sangra a céu aberto. Será necessário realizar uma revolução educacional, especialmente na educação básica, para tentar resgatar aquele ideário mencionado por Herbert Read, com o objetivo de promover a reconciliação da singularidade individual com a unidade social.

Os massacres em escolas começaram a virar uma realidade no Brasil, como acontece há décadas nos Estados Unidos. Como mudar esse quadro? Que políticas públicas ajudariam a estancar a cultura do ódio?

Será necessário investir pesadamente na educação básica. Precisamos de investimentos que representem melhores salários, melhor estrutura, melhores condições de trabalho, que possam atrair profissionais interessados e motivados. Muito foi feito pelo ensino superior e até mesmo pelo ensino médio, com a criação descentralizada dos institutos federais, mas a atenção dada ao ensino fundamental não foi suficiente. O sistema brasileiro prevê que essa fase da escolarização fique a cargo de estados e municípios, mas eu creio que será necessário investir em mecanismos que articulem melhor o trabalho desenvolvido em todas essas instâncias, de maneira a garantir a qualidade da educação desde a fase inicial, pois é ali que nascem os problemas. Eu tive o privilégio de atuar em diferentes instâncias e níveis educacionais, desde o ensino fundamental, em sala de aula, até o nível central da SEEDF.

Falta investimento na educação básica, sobretudo no próprio professor?

Todas essas experiências me levaram a concluir que a formação continuada de professores é a melhor estratégia para promover a qualidade da educação. Ouso afirmar que o conhecimento de professores da educação básica pós-graduados, se devidamente valorizado, poderia contribuir para a emergência de novas formas de interação entre escolas/universidades, para a construção de novos perfis docentes e discentes e para a criação de propostas inovadoras para as comunidades escolares.

Que sugestões a senhora daria nesse contexto?

Os que detêm o poder de decisão podem buscar meios para garantir algum incentivo à pesquisa no contexto da educação básica, fomentando grupos de pesquisa coordenados por professores doutores que atuam nesse contexto, sem a necessidade de se subordinarem às proposições das universidades. A iniciação científica não poderia ocorrer nas escolas, caso esses professores doutores da educação básica fossem apoiados por organismos de fomento, para criar e liderar grupos de pesquisa nesse contexto? Seria esta proposta tão absurda? Seria inviável? Sugiro, ainda, que sejam revisitados os programas e ações do governo federal que foram interrompidos ou reduzidos nos últimos anos, especialmente no último mandato presidencial. Creio que seria interessante avaliar os resultados do Programa de Informática na Educação, na formação dos coordenadores dos laboratórios de informática. Esses “multiplicadores”, como eram chamados, foram formados para coordenar o trabalho de formação dos demais professores das escolas estaduais, distritais e municipais que haviam recebido kits compostos por computadores, televisores e decodificadores. Esse trabalho era fundamentado na proposição de projetos de investigação, com uso das tecnologias de informação e comunicação, as TIC. Caso esse programa não tivesse sido descontinuado, creio que teríamos nos saído muito melhor durante os anos em que vivenciamos a fase aguda da pandemia. Tais multiplicadores poderiam se constituir como “resgatadores de esperança”, termo utilizado por Nicolescu, para designar pesquisadores transdisciplinares, interessados em novas formas de aquisição e disseminação do conhecimento e preocupados com os destinos do planeta. Diante do que estamos presenciando em nossas escolas e na sociedade, de uma forma geral, é exatamente de resgatadores como esses que estamos precisando.

As escolas, os governos e a sociedade estão preparados para transformação?

Não. Será preciso muito investimento em recursos, humanos e materiais, para preparar todo o sistema e a sociedade para a transformação necessária. O principal obstáculo para essa preparação será a superação da ruptura que vitimou a sociedade com o golpe de 2016, aprofundado no último governo.

Família e escola estão mais isoladas e distantes?

Com certeza. Os ataques que as escolas vinham sofrendo, com intervenções de natureza ideológica, foram sendo agravados e culminaram com os massacres perpetrados nos últimos tempos. As motivações dos últimos ataques ainda estão sob investigação, mas o berço dessa violência, sem dúvida, é ideológico e seu principal incentivador tem nome e seguidores. Não há como ignorar a desvalorização da arte e da cultura pelos últimos governos, a defesa da escola sem partido, que, na verdade, representa a ideologização de uma educação para o conflito, para o confronto, contra a educação crítica. Trata-se de uma proposta de educação para a aceitação do status quo e da hierarquização das diferenças sociais. A educação pela arte, fundamentada na matriz humanizante, poderia ter um papel significativo para superação dessa ruptura social, por meio da formação individual, despertando, ao mesmo tempo, a amorosidade, a consciência social ou reciprocidade, como pregavam Paulo Freire e Herbert Read.

As redes sociais são o vilão desse processo ou apenas o meio?

As redes sociais são o meio. Será preciso buscar mecanismos para coibir seu uso em benefício das tendências que destroem a unidade social e não reconhecem a existência do outro. Por esse motivo seu uso deve ser regulamentado.

 

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