BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA

Na Independência, educação foi atrelada à criação da identidade nacional

Especialistas explicam que, no processo de Independência do Brasil, a educação foi defendida como um dos elementos fundamentais para a garantia de liberdade. No entanto, em uma sociedade escravista e racista, a possibilidade de ser livre era para poucos

Aline Gouveia
Raphaela Peixoto*
postado em 05/09/2022 12:33 / atualizado em 05/09/2022 14:07
 (crédito:  Viola Júnior/Esp. CB/D.A Press)
(crédito: Viola Júnior/Esp. CB/D.A Press)

Nos 200 anos da Independência do Brasil, professores especializados em história da educação explicam que a sociedade passou de um lugar quase sem escolas, para um país com escolarização mais abrangente. O professor Luciano Mendes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), aponta a existência de 180 mil unidades escolares no Brasil, local de trabalho de quase 5 milhões de trabalhadoras/es da educação. Estima-se que mais de 50 milhões de estudantes, entre crianças, adolescentes e jovens, frequentam escolas no país.

Ao longo do processo de Independência do Brasil, a defesa da educação estava atrelada à necessidade de forjar uma identidade nacional e garantir liberdade. "O processo de Independência, junto com a discussão sobre liberdade, vem com a necessidade de criação de condições para que as pessoas fossem livres, e uma dessas condições, sem dúvida, é a educação, é sobretudo a leitura e o acesso à imprensa, aos jornais", explica Luciano Mendes.

No entanto, cabe ressaltar que a defesa de acesso a meios que garantissem liberdade era, no mínimo, contraditória, como destaca o especialista em história da educação. Em uma sociedade estruturalmente escravista e racista, a liberdade era para poucos. "Uma das contradições naquele momento, algo fundacional da nossa sociedade e que tem impacto até hoje, é a discussão da liberdade, relacionada a imprensa e a educação, e a manutenção de parte significativa da população na condição de escravos", pontua.

Tomando 7 de setembro de 1822 como marco simbólico da memória da Independência, a abolição da escravidão só veio acontecer 66 anos depois, em 1888. O Brasil foi o último país do continente americano a abolir o regime escravocrata. Entretanto, mesmo após a Lei Áurea, os libertos não tiveram amparo do Estado, no sentido de educação, emprego e dignidade.

Releitura do quadro 'Independência ou Morte', do Pedro Américo
Releitura do quadro 'Independência ou Morte', do Pedro Américo (foto: Portal do Bicentenário/Paulo Teixeira/@seuteixeira)

Por isso, foi criada a Lei n° 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas. A medida é constituída por reservas de vagas em critérios social e racial nas universidades e institutos federais no país, prevendo vagas para estudantes de escola pública, com renda inferior a 1,5 salário mínimo e para candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas.

Portanto, o dispositivo legal contribuiu para a presença de mais negros no ensino superior. O professor Luciano Mendes cita três razões que justificam a importância da Lei de Cotas: acesso e permanência de negros às universidades e institutos federais, reconhecimento da dívida histórica do país com a população negra e formação de contingente de profissionais e intelectualidade brasileira para o combate ao racismo estrutural.

Professor Luciano Mendes, licenciado em Pedagogia, mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutor em Educação (Área de História da Educação) pela Universidade de São Paulo
Professor Luciano Mendes, licenciado em Pedagogia, mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutor em Educação (Área de História da Educação) pela Universidade de São Paulo (foto: Arquivo Pessoal)

Acerca da educação como elemento para forjar uma identidade nacional, a professora e doutora em educação, Cíntia Almeida, conta que a escola era vista como um instrumento para disseminar valores e comportamentos considerados adequados para a sociedade que estava sendo idealizada. "Quando pensamos a Independência do Brasil, devemos ter em vista aspectos econômicos, diplomáticos, políticos e geopolíticos, o que nos leva a considerar, expressivamente, os interesses por trás do surgimento do Estado-Nação e também da formação nacional", afirma a pesquisadora da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).

Avanços e desafios

O professor Luciano Mendes define a escola como "a mais capilar das instituições públicas". Essa capilaridade e caráter público são alguns dos principais avanços da educação no Brasil ao longo dos 200 anos de Independência, mas também torna a escola alvo de críticas por motivações político-ideológicas, como aponta a professora Cíntia Almeida.

"Desmerecer ou não reconhecer uma instituição que, historicamente, é responsável pela formação de quase toda a população mundial é construção política. No caso do Brasil, a escola pública, que beneficia expressivamente e majoritariamente a população escolar, torna-se alvo de críticas justamente pelo seu caráter público, coletivo e democrático. É inegável os avanços da escola pública e da educação formal ao longo desses 200 anos de Independência do Brasil", defende a doutora em educação.

Cíntia Almeida, professora da Universidade Estadual de Santa Cruz. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Política e História da Educação  - GRUPPHED/UESC
Cíntia Almeida, professora da Universidade Estadual de Santa Cruz. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Política e História da Educação - GRUPPHED/UESC (foto: Arquivo Pessoal)

Outro avanço é a queda do índice de analfabetismo da população perante a expansão do processo de escolarização no país. Em dados quantitativos, há a estimativa de que, em 1922, ano do Centenário da Independência, 80 a 84% dos brasileiros eram analfabetos. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2019, revelam que cerca de 6,6% da população ainda é analfabeta. Já o analfabetismo funcional, aquele em que a pessoa consegue ler e escrever mas não interpretar, corresponde a 29%.

Em contrapartida, há muitos desafios. A pesquisadora Cíntia Almeida destaca o baixo investimento na educação, infraestrutura de escolas sucateada e desvalorização de professores. "Não é possível alcançar escola e ensino de qualidade sem a responsabilidade e o fortalecimento do Estado na oferta e garantia de políticas públicas", diz.

Ainda segundo a especialista em história da educação, assegurar o acesso, permanência e sucesso no processo de escolarização envolve "investir na infraestrutura, garantir a valorização do trabalho docente, oferecer formação continuada, ampliar a pesquisa, a tecnologia, a cultura, o esporte, a merenda e o transporte escolar".

Apesar da função social da escola, o professor Luciano Mendes avalia que, nos últimos séculos, foi um atribuído um poder ao processo de escolarização que é, em parte, inalcançável. Essa perspectiva, de acordo ele, é uma cortina de fumaça. "Isso é uma certa cortina de fumaça que se produz em torno das grandes desigualdades brasileiras. A escola não tem esse poder que nela é depositado, de diminuir as desigualdades, garantir emprego e conduta ética e moral. São outras formas de ação do Estado que garantirão isso, como reforma agrária, política de distribuição de renda, aumento de salário", reflete o professor.

* Estagiária sob supervisão de Roberto Fonseca

  • Licenciado em Pedagogia, mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutor em Educação (Área de História da Educação) pela universidade de São Paulo
    Licenciado em Pedagogia, mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutor em Educação (Área de História da Educação) pela universidade de São Paulo Foto: Arquivo Pessoal
  • Professora da Universidade Estadual de Santa Cruz. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Política e História da Educação  - GRUPPHED/UESC
    Professora da Universidade Estadual de Santa Cruz. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Política e História da Educação - GRUPPHED/UESC Foto: Arquivo Pessoal
  • Releitura do quadro 'Independência ou Morte', do Pedro Américo
    Releitura do quadro 'Independência ou Morte', do Pedro Américo Foto: Portal do Bicentenário/Paulo Teixeira/@seuteixeira
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