Luiz Felipe Scolari treinou Portugal por cinco anos e levou a equipe ao vice-campeonato da Euro-2004 e à semifinal da Copa do Mundo de 2006. Zico foi o dono da prancheta do Japão por quatro temporadas. Joel Santana e Carlos Alberto Parreira se aventuraram na África do Sul em 2009 e 2010. No futebol feminino, a brasiliense Camilla Orlando foi a escolhida para desenvolver o futebol nos Emirados Árabes Unidos antes de assumir o Real Brasília e se transferir para o Palmeiras. A lista de pratas da casa que cruzaram a fronteira é grande e inclui Emily Alves da Cunha Lima no comando das mulheres no Peru. Aos 44 anos, a paulistana é uma das mentes por trás da proposta de desenvolvimento do país no cenário continental.
Ex-volante de São Paulo, Santos, Napoli, times espanhóis e de Portugal, Emily desembarcou em Lima em abril de 2023. Neste ano, passou a conciliar a função de técnica com a de coordenadora de seleções femininas do país. A escolha da Federação Peruana não foi por acaso. Além das experiências por clubes, foi a primeira mulher a comandar a Seleção Brasileira feminina, entre 2016 e 2017. O trabalho curto não empolgou o então presidente da CBF, Marco Polo del Nero. Emily retorna ao Santos e, em 2019, expande os horizontes como técnica do Equador. Em entrevista ao Correio, ela conta como ser treinadora não estava nos planos, detalha os desafios de desenvolver a modalidade, a evolução do Brasil e rebate declarações do chefão do Flamengo, Rodolfo Landim, contra a Copa do Mundo Feminina de 2027.
Como é trabalhar em países teoricamente atrasados no futebol?
Depende muito do perfil que você está buscando e do que eles buscam. Falar de Brasil na América do Sul é o ápice. O Brasil é a nossa referência no continente, mesmo sabendo que ainda está longe dos grandes centros do futebol feminino. Mas evoluiu muito. Com essa organização que venho observando, podemos dar passos mais longos do que esperamos. O Equador teve uma evolução muito grande de quando nós chegamos até hoje. Deram sequência no trabalho e no projeto que tinha. Isso se nota em resultados e com a atualização do ranking da Fifa. É um país destaque, que subiu quatro posições no ranking da Fifa. Com o Peru, iniciamos um trabalho de projeto a longo prazo, não digo nem a médio e curto. Vamos demorar alguns anos para podermos ter resultados para chegar próximo ao Brasil.
Em que estágio se encontra o futebol peruano?
Vejo, hoje, o Peru como vivi há 20 anos no Brasil. São as mesmas discussões: por que não tem a liga? Por que a liga não dura mais? Por que não tem competição de base? Falo que é preciso ter calma, que não se pode mudar o país de um dia para o outro. É preciso evoluir corretamente, não dar um passo maior para daqui a dois anos tudo acabar, como no Brasil. No Brasil, em 1997, tínhamos uma competição muito boa e, de repente, em 1999, acaba tudo. Esse não é o ideal. O ideal é o que acontece hoje. O Campeonato Brasileiro se reforça, teve a criação do sub-17 e sub-20. É isso que precisamos gerar no Peru hoje para termos desenvolvimento melhor do futebol feminino. Mas isso leva tempo.
A seleção feminina do Peru atravessava de jejum de vitórias. A pressão incomodava?
Não havia pressão, mesmo porque eles (dirigentes) têm noção de onde está o futebol feminino peruano. É mais a imprensa que se apega a isso. Temos pés no chão, sabemos onde estamos e aonde queremos chegar a longo prazo. A nossa ideia é jogar com as seleções sul-americanas, mesmo tendo jogado com a América Central, por falta de opção mesmo. Até nisso temos dificuldade, outras seleções evitam jogar com a gente pelo nível em que estamos. Faz todo sentido. Por falta de opção, acabamos escolhendo outros países.
Essa dificuldade impossibilita amistoso contra a Seleção Brasileira?
Por hoje, sim. Temos de ir até Venezuela, Colômbia, mesmo porque não sei se aceitariam um jogo como esse. Temos de saber onde estamos e até onde queremos competir. A Copa América 2025 seria a primeira experiência desse trabalho de quase dois anos, entendo onde estamos realmente para, na próxima, pensarmos em repescagem. É saber onde estamos para não chegar achando que nos classificaremos para o Mundial. Não seria viável, hoje, procurarmos um jogo como esse.
Quais as diferenças entre trabalhar no Equador e no Peru? Existe algo que o Brasil poderia incorporar?
A única diferença é a parte física das atletas. Em termos de trabalho, iniciamos exatamente como no Equador, tendo bom contato com clubes, com a liga, para moldá-la a ficar mais competitiva para gerar mais competitividade nas seleções, de base e maior. É um trabalho muito parecido, gerando uma metodologia de trabalho para todas as categorias. Aqui no Peru, tenho muito mais facilidade depois que o presidente me oferece essa coordenação metodológica. Hoje, conseguimos ter sub-17, sub-20 e maior trabalhando da mesma forma, com as mesmas ideias e modelo de jogo, com currículo de formação feito pela comissão técnica.
Temos muito mais abertura e liberdade. No Equador, tínhamos mais dificuldade. Primeiro, porque éramos só da seleção maior e, às vezes, sugerimos coisas. Sugerir não é o mesmo que implantar. Se você implanta uma metodologia, cada treinador tem um modo de trabalhar em cima de uma metodologia. Não vamos engessar nenhum profissional, mas que a ideia seja a mesma, dentro da realidade de cada um.
Existe incentivo às meninas desde a infância?
O país ainda não tem essa cultura e ideia. A Federação, com o departamento de desenvolvimento, criou um programa de estudo sobre as províncias para saber quem mais desenvolvia futebol feminino. Seis províncias desenvolviam bem. Nelas, criaram centros de treinamentos para haver treinadores, preparador físico e preparador de goleiras para desenvolver meninas. Nós visitamos essas províncias para convocarmos jogadoras para a seleção. Na sub-17, temos uma jogadora que saiu desse programa. É assim que convocamos na base.
É muito precária a situação da formação aqui. No Brasil, está bem mais desenvolvido. Mas o importante é que estão entendendo desse desenvolvimento. Acredito que teremos resultados com a seleção maior, pode ser que cheguemos à Copa América e consigamos alguma coisa, uma repescagem. O trabalho mais sério é o que iniciamos há oito meses, com a formação. Essas meninas sub-17 e sub-20, daqui a quatro, cinco, seis anos, terão de chegar na maior e mostrar resultado devido ao trabalho que está sendo iniciado agora.
Como é a adesão do público ao futebol feminino?
Chamou muito a atenção que, em duas finais, vimos e vivemos o que às vezes não vivemos no Brasil. A primeira final do ano passado, calculando os dois times, tanto de Alianza Lima quanto Universitario, foi de 70 mil pessoas. São números muito interessantes. Este ano, lotaram os dois estádios novamente. O público gosta, mas a ideia da seleção é juntar as duas torcidas, porque é um clássico absurdo. Temos de juntá-las para entender que eles, juntos, podem fazer diferença para o futebol feminino. Estamos trazendo jogos da seleção feminina para Lima.
Em outubro, fizemos um jogo, mas não deu muita gente, devido também ao trabalho que a Federação tem de se atentar mais, fazer uma boa propaganda e divulgação. Tudo isso tem de estar junto ao projeto, senão não adianta. Uma coisa precisa caminhar com a outra. Para novembro, traremos outro jogo e tentaremos unir novamente essas duas torcidas para potencializar a torcida do futebol feminino. As jogadoras precisam estar acostumadas a ver isso juntas.
Por que a seleção feminina não jogava em Lima?
A Federação não tinha essa ideia de desenvolver o futebol feminino. Os países têm, porque são obrigados. Não pensam em desenvolver, nem que pode ser um produto que gere frutos. É um produto que gera em todos os outros países. Por que aqui no Peru não? O nosso trabalho também é fazer com que esses diretores entendam que é um produto viável. O jogar aqui é muito mais gasto, e não jogar é menos. É trabalho de formiguinha, é fazer com que entendam a importância de trazer jogos para cá e tudo mais.
O que falar do trabalho de Arthur Elias na Seleção Brasileira? A prata em Paris-2024 foi um bom resultado?
Respeito o trabalho de todos os profissionais que estão na mesma área que eu. Procuro não avaliar o trabalho de ninguém, por ética. Tenho só de torcer para que nossa Seleção se desenvolva cada vez mais, tenha melhores resultados, porque isso fará com que o nosso futebol feminino seja mais valorizado. Acredito que foi, sim, um bom resultado, como tivemos em outras oportunidades. Só que, em outras oportunidades, infelizmente, não tivemos uma sequência de trabalho. Espero que com esse resultado com o Arthur tenhamos uma sequência de trabalho e não cortemos os processos como anteriormente. Esse é o ponto principal para termos uma Seleção mais forte no mundial e, novamente, mais forte em um Olimpíada"
Você tem o projeto de retornar à Seleção Brasileira?
Não é um projeto, acho que tenho de estar me preparando a cada dia para as oportunidades. Se surgir essa, sem dúvida… Mas podem surgir de outras seleções, como surgiu tanto de Equador quanto Peru.
O ranking da Bola de Ouro com a brasiliense Gabi Portilho em 18º foi justo?
Temos mais jogadoras brasileiras que poderiam estar também na lista. Trabalhei com a Gabi Portilho em 2015 e 2016 no São José. Para mim, já era uma grande jogadora, mas não estava na vitrine correta. As jogadoras buscam muito São Paulo, uma vitrine que pode levá-las com muito mais velocidade à Seleção Brasileira. Ela é uma jogadora que cresceu muito e, depois que chega ao Corinthians, dá um estouro absurdo na carreira. Para mim, não existem melhores jogadoras tecnicamente do que as brasileiras.
Onde Pia Sundhage e CBF erraram?
Sugamos muito pouco dela. Eu, se tivesse ao lado dela, teria buscado muito mais informação. Às vezes, só pensamos em resultado. O sugar da Pia seria uma ideia de como iniciar essa formação da melhor forma para termos um resultado contínuo, e não ganhar uma competição e depois não ganhar nunca mais. A Pia só trabalhou em lugares em que existiam futebol feminino desenvolvidos: Suécia e Estados Unidos. No Brasil, é totalmente diferente. Não existe nada perto do que ela trabalhou. Dizer no que ela acertou e no que errou não cabe a mim, porque eu estaria falando de um trabalho no qual ela acredita que fez o correto.
O que deu errado, então?
Não deu certo por N fatores. A avaliação é da CBF, é dela. Mas eu, se tivesse a oportunidade de estar ao lado dela como assistente ou coordenadora, tentaria buscar tudo que viveu na Suécia e nos Estados Unidos. São modelos de sucesso. Penso muito nisso, queremos ser campeãs, mas do que vale se não conseguimos desenvolver e criar? Quando eu estava na sub-15 e sub-17, tínhamos de fazer seletivas nos estados para convocar, não tinha competição. Antes de trazer uma Pia, por que não pensar em como desenvolver? Nos países sul-americanos, vemos jogadoras de seleção maior sem saber fazer controle orientado ou se perfilar bem em campo. Isso é trabalho de formação. Essas meninas não têm culpa, porque não tiveram essa formação. Hoje, temos o dever de desenvolver melhor o futebol feminino, fazendo essa criação e trabalho de desenvolvimento.
E a proposta do Real Brasília para você?
Em 2023, eles fizeram um contato, me convidaram, mas é o que explico para todos: não trabalho sozinha, tenho uma equipe. Quem quiser contratar a Emily tem de saber. O mérito não é só da Emily, também é das pessoas que trabalham comigo. Eles precisam entender isso, porque acontece no futebol masculino, vai o treinador com a equipe. No feminino, veem com outros olhos, sem muita importância. Eles têm de entender que o resultado virá desde que faça um bom trabalho, não com a contratação de uma só pessoa.
Rodolfo Landim chamou a Copa do Mundo Feminina de 2027 no Brasil de "troço" e disse que não lotaria o Maracanã. Como você vê isso?
Infelizmente, ainda temos homens machistas e que não têm conhecimento do futebol feminino. Se o Brasil jogar no Maracanã, tenho certeza de que vai encher. São pessoas que não têm conhecimento nenhum do futebol feminino e saem falando besteira. Não as dou ouvidos. Escutamos isso há tanto tempo. Hoje, me dá pena dessas pessoas, porque não têm conhecimento do futebol feminino do mundo, nem do país e do clube dele. Ele tem um dos melhores times do Brasil e desvaloriza o próprio produto. É uma pena que isso aconteça, ainda, em 2024, mas falta mais profissionalismo. Jogos em CT, isso tem que desaparecer. Se quisermos profissionalizar de verdade, os clubes têm que dar os campos oficiais para o feminino.