Paris — Mais nova medalhista de ouro no esporte brasileiro, Beatriz Souza viveu uma abrupta onda de sentimentos nos quatro minutos responsáveis por eternizá-la nos Jogos Olímpicos. Concentrada em cada combate em Paris-2024, a judoca se permitiu apresentar outra face ao mundo e chorou tão logo percebeu a dimensão da conquista dedicada à memória da avó. Brecholina da Silva, a dona Lina, morreu em 22 de junho. Cabeça de chave das disputas +78kg, Bia passou por quatro lutas no tatame da Arena Champ de Mars, nas proximidades da Torre Eiffel. Pela manhã, oscilou entre vitórias tranquilas e tensas. Levou 41 segundos para tirar a nicaraguense Izayana Marenco da disputa olímpica com um ippon. Nas quartas de final, viu o mundo mudar em segundos. Ao sofrer um ataque da sulcoreana Kim Hayun, viveu a tensão de um ippon da adversária se transformar em waza-ari dela no Golden Score.
O fim da tarde francesa guardava os principais desafios. O primeiro era de tamanho digno de incomodar qualquer um: enfrentou a francesa Romane Dicko, atual número um do mundo, com toda a energia da Arena Champ de Mars contra si. Polvorosos, os torcedores fizeram um barulho absurdo. Bia parecia estar em um mundo de silêncio absoluto e jogou com tudo contra ela para protagonizar um feito histórico. O ippon aplicado no Golden Score a colocou na final.
Minutos depois, quando voltou ao tatame da Champ de Mars, testemunhou a torcida virar a casaca. Mesmo eliminando uma anfitriã, ouviu aplausos. A rival israelense Raz Hershko também foi agraciada, mas em quantidade menor. Parecia uma prévia do que estava por vir. Bia tinha concentração estampada no olhar. Não mudou isso nem quando aplicou um waza-ari. Aquele golpe seria responsável pelo ouro, porém a brasileira tratou de manter a postura para não dar chance ao erro e a um possível golpe da adversária.
Quando o relógio central da Arena Champ de Mars zerou, o gongo soou e decretou o ouro de Bia. O toque aliviava o coração. A brasileira não segurou a emoção. Sob aplausos, chorou no tatame. Mal sabia como comemorar, de fato, e parecia não ter noção da entrada definitiva no hall de medalhistas de ouro do Brasil em Olimpíadas. Margeando as arquibancadas centrais, encontrou afago em um abraço de um familiar.
O primeiro compromisso era ainda no tatame para atender à imprensa. Manteve as lágrimas de emoção durante toda a conversa. A primeira ação foi dedicar a medalha de ouro a avó, falecida em 22 de junho. Ali, o choro ganhou um significado ainda mais especial: o de honrar alguém de tanta importância que partiu pouco antes de a história ser consolidada por Bia nos tatames.
Trajetória
Sargento do exército, Beatriz Rodrigues de Souza nasceu em Itariri (SP), em 20 de maio de 1998, mas foi criada no litoral, em Peruíbe. Iniciou a prática do judô aos sete anos, por incentivo do pai. Motivo: era considerada uma criança hiperativa. Para convencê-la, Seu Poscedonio José de Souza Neto, também judoca, levou-a para assistir a um treino. Beatriz gostou e apaixonou-se pela modalidade. A primeira competição pela Seleção Brasileira Sênior foi em 2017, no Open da Eslovênia.
De lá para cá, Beatriz firmou-se como um dos principais nomes da delegação e candidata ao pódio nos grandes torneios sob a batuta de treinadores medalhistas olímpicos. A paulista de 26 anos tem como mentores Leandro Guilheiro, bronze em Atenas-2004 e em Pequim-2008; e Sarah Menezes, campeã na edição de Londres-2012. Hoje, Beatriz é a número cinco do mundo na categoria +78kg.
Casada com o ex-pivô de basquete Daniel Souza, 24, com passagem pelo Pinheiros no NBB, Bia viu o companheiro viralizar nas redes sociais nas comemorações.
A série e o jogo por trás do dia de glória
Quem viu a postura concentrada de Bia Souza levando ao chão cada uma das quatro adversárias na conquistas do ouro nos Jogos Olímpicos de Paris-2024 não imagina a estratégia adotada por ela para aliviar a pressão nos intervalos entre as lutas. A judoca de 26 anos apostou em “armas” de entretenimento conhecidas dos brasileiros: o drama médico Grey’s Anatomy e o jogo Township.
A revelação da estratégia secreta partiu dela minutos após subir ao pódio na Arena Champ de Mars. Antes de entrar em ação, Bia Souza monta a tática de combate ao lado da equipe técnica. Acabando a parte analítica responsável por indicar a estratégia, a judoca não deixa a obsessão tomar conta do coração e da mente.
Aí entram Grey’s Anatomy e Towship. Beatriz assistiu aos episódios do famoso drama médico com 20 temporadas gravadas e passou tempo no jogo de celular, no qual o objetivo é montar “fazendinhas” com plantações, construções e alcançar metas. Os hobbies ajudam a judoca a lutar mais leve. “Temos muita pressão de torcedores, técnicos e nos cobramos horrores. Gosto de assistir à minha série. Faço toda a minha tática de luta antes. Tenho tudo ali na cabeça, tudo organizado”, explicou.
“Eu sou assim: muito focada, feliz e uma pessoa que gosta de levar a vida de uma forma leve, sempre pensando em fazer o bem, não só para mim, mas para todos que eu possa atingir de alguma forma, nem que seja uma inspiração como alguém pela televisão, pelo Instagram. Eu sou feliz, uma pessoa feliz. Mais feliz ainda”, reforçou Bia. Durante os Jogos, ela maratonou pela sétima vez os 420 episódios da série.
Bia Souza é a primeira atleta a ganhar o prêmio de R$ 350 mil como recompensa pelo ouro. Prata vale R$ 210 mil e o bronze R$ 140 mil. Mais do que o dinheiro. Ela também viu o número de seguidores ultrapassar a marca de 2 milhões no Instagram.
A maior recompensa, no entanto, é o amor próprio. Ela compete na categoria +78kg e pesa 134kg. “Se eu não amar meu corpo, quem vai amar? Quem vai trabalhar para que eu tenha condições físicas para competir e me sentir bem? Tenho que me amar não só por ser meu material de trabalho, sou feliz assim, minha beleza importa, sou linda”.