Uma das palavras mais atreladas ao espírito olímpico é a união, e poucas ações são tão representativas disso como correr praticamente de mãos dadas. O Brasil conta com 16 atletas-guia de atletismo na delegação dos Jogos Paralímpicos. Eles apoiam os competidores com deficiência visual durante a prova. O brasiliense Wendel Souza, de 33 anos, está entre eles. Corre com Daniel Mendes. Um move o sonho do outro e, juntos, querem subir ao lugar mais alto do pódio em Paris-2024, a partir do dia 28.
A história do protagonista do segundo capítulo da Équipe Brasília, série do Correio sobre personagens da capital nos Jogos Paralímpicos, começou em Samambaia Sul. Cria da cidade, Wendel era velocista no atletismo convencional, desejava representar o Brasil nas Olimpíadas do Rio-2016, mas as dificuldades apareceram. "Sabemos que sem estrutura e sem o mínimo para se manter, viver do esporte é muito complicado, até porque eu não tinha grandes resultados e estava apenas sonhando", relembra.
A solução para continuar no esporte de alto nível foi, na verdade, uma obra do acaso. Um atleta com deficiência visual estava sem guia para correr em parceria, então o treinador dele convidou o brasiliense para um teste, e a oportunidade surgiu naturalmente.
"Aceitei e uma semana depois esse mesmo atleta foi convocado para a semana de treinamento da Seleção Paralímpica de base. Ele me perguntou se eu teria interesse, e não pensei duas vezes. Passamos no teste, ele gostou de mim e me chamou para trabalhar diretamente com ele. Aceitei a proposta tanto dele quanto do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB). A migração foi um pouco pensativa, porém era a melhor opção. Cá estou há mais de uma década no cenário paralímpico", detalha.
Desde então, morando em São Paulo, o velocista atuou como guia de muitos atletas. Inclusive, foi ouro no Mundial de 2013, em Lyon, com Terezinha Guilhermina, um dos principais destaques brasileiros da modalidade. O currículo ainda tem duas pratas nas Paralimpíadas do Rio-2016 e, desde 2017, a parceria é com Daniel Mendes, da classe T11 (acuidade visual menor que LogMAR 2.60).
O companheiro de corrida de Wendel é cego há 22 anos, quando sofreu acidente enquanto trabalhava em uma marmoraria. Duas placas de mais de 700kg caíram sobre o rosto do capixaba. Houve afundamento do crânio e perda da visão. A dupla é bicampeã nos 400m rasos do Parapan, foi prata nos 100m em Santiago e nos 400m do Mundial de Dubai-2019.
"Minha relação com o Daniel vai muito além da pista. Somos amigos, tem uma química e muito respeito. Cada um tem um pensamento e um estímulo diferente, mas o que importa é o respeito e a reciprocidade. Somos parceiros há mais de 10 anos, mas treinando diretamente juntos vamos fazer oito. Nossa parceria tem grandes momentos, tanto de resultados quanto de experiências. Hoje em dia, somos até uma referência para os outros", orgulha-se o velocista.
Um dos episódios que marcou os anos de parceria foi durante as Paralimpíadas de Tóquio-2020. Na ocasião, Wendel e Daniel disputavam a prova dos 400m, e a guia, cordinha que liga os dois atletas, arrebentou. Mesmo cruzando a linha de chegada em segundo, eles foram desclassificados.
"Ficamos processando aquela dor, a tristeza e a angústia, mas respiramos, e os anos se passaram. Não tem muito tempo. A gente processa durante o treino, mas depois fizemos grandes campeonatos. Foi uma fatalidade, mas é o regulamento. Não ficamos com isso na cabeça, porque o que passou, passou. Agora, é focar em novos objetivos e novas conquistas", planeja.
O novo objetivo é claro para ambos: um lugar no pódio. Concluindo o terceiro ciclo paralímpico da carreira, Wendel quer coroar os 20 anos de trabalho no atletismo e confirmar um lugar entre os melhores dos melhores. A campanha começa em 31 de agosto, com o início das eliminatórias.
"Desde o momento da convocação a gente vive um sonho, realiza aquilo que a gente sonhava desde criança. Sempre quis representar o Brasil em alguma modalidade. Deus deu-me o dom no atletismo e depois de ser guia de atletas com deficiência visual. Então, a expectativa, tanto minha quanto do Daniel, é a melhor. A gente costuma dizer que estamos competindo desde que fechamos a parceria, então a mira é sempre o pódio, independentemente da cor da medalha. Os Jogos são o auge da carreira do atleta e só de ser convocado já estamos no topo do esporte", projeta.
Mais que atleta
Os guias e os apoios ajudam os atletas com deficiência visual, principalmente da classe T11 e T12 do atletismo. A função é dar orientações sobre momentos de reta, curva ou de quando pular, como no caso do salto em distância. Ainda assim, na prática, eles fazem muito mais do que isso.
"O papel do guia, além de melhorar a performance do atleta, é ser companheiro, sincero e fiel, porque nada mais justo do que passar a confiança para o atleta que tem deficiência visual. Fora a performance e a parceria, a gente tem que ser honesto um com o outro. Não é só ser os olhos do atleta, é ser o amigo, parceiro em todos os momentos", define.
De mãos unidas com Daniel, Wendel também quer representar bem o Distrito Federal e Samambaia Sul. Mesmo longe da cidade natal há mais de 10 anos, ele conta que faz o possível para estar por perto, principalmente pela família, o filho e os amigos que tem no local.
"Sempre que tenho folga, converso com meu treinador e o Daniel, e treino lá (em Samambaia). Nas férias, é por lá onde estou. Amo minha cidade, amo ser candango, representar o povo brasiliense. Minha maior torcida são as pessoas que cresceram comigo ali, meu bairro. É muito gratificante ver quem se inspira em mim para ser atleta e representar o Brasil. Mesmo sendo atleta-guia, agora os fãs também sabem do nosso trabalho, e fico extremamente feliz quando vejo que as pessoas também torcem por nós. É uma medalha que vem para o país, vem para a sua cidade, e vamos dar de tudo por isso", promete.
*Estagiário sob a supervisão de Marcos Paulo Lima
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