Reflexo da sociedade na qual está inserido, o futebol é um ambiente sem barreiras estabelecidas contra o preconceito. Naturalizadas na "cultura de arquibancada", as discriminações entram em campo disfarçadas de piadas ou provocações. A homossexualidade é munição nas mãos (e vozes) de quem ofende. Os cânticos, quase sempre, são esquecidos quando a bola para de rolar. A não ser para quem, de fato, sofre com isso. No Dia do Orgulho LGBT+, Emerson Ferretti, presidente do clube associativo do Bahia, endossa o protagonismo de ser referência na luta por respeito.
Ex-goleiro revelado pelo Grêmio e com passagem vitoriosa pelo Tricolor de Aço, Emerson se tornou o primeiro presidente das equipes do Campeonato Brasileiro assumidamente gay. Nos gramados, ficou marcado pelo idolatria construída em 276 jogos, principalmente nas campanhas dos títulos do Campeonato Baiano de 2001 e do bi da Copa do Nordeste em 2001 e 2002. No início do século, ganhou a Bola de Prata de melhor da posição no país. Agora, aos 52 anos, assume a missão de deixar um novo legado no clube, mas aliado a uma missão ainda mais nobre.
Emerson se declarou publicamente gay em 2022, depois de anos sofrendo por não poder ser ele mesmo. As amarras do futebol não permitiam. Agora, encontra forças na história de vida para entender a importância de estar na linha de frente da luta contra o preconceito no esporte. A pauta principal da caminhada é o respeito de escolha em qualquer área da vida, mas a caminhada tem poder de realizar uma transformação muito maior no esporte que aprendeu a amar. Mesmo cercado por tanto ódio e preconceito enquanto profissional.
O futebol é um meio hostil para qualquer minoria e você abraçou o papel de referência na luta contra a homofobia. Como enxerga essa missão?
O objetivo foi exatamente esse. Quando há quase dois anos eu resolvi abordar publicamente sobre minha sexualidade e me tornei o primeiro atleta no futebol brasileiro a falar abertamente, já foi um pioneirismo, um rompimento de bolha. Depois de me tornar presidente do Bahia, reforçou ainda mais essa missão que parece que caiu no meu colo e eu resolvi abraçar. Porque não se falava sobre isso. Havia um silêncio grande sobre o assunto no futebol. Sempre houve.
E qual é o sentimento de falar abertamente sobre o tema?
Sempre teve gay, pessoas LGBT em várias funções no futebol. Todos precisaram esconder, se proteger para sobreviver. E ninguém falava sobre isso como se não tivesse pessoas LGBTs. Alguém precisava quebrar esse silêncio, trazer luz a esse assunto, provocar essa discussão. Quando eu entendi isso, entendi que eu poderia ajudar na evolução do futebol. Ainda está muito atrasado nessa questão. Você fala que o futebol é muito hostil com as minorias e cita os negros. Hoje, negros e mestiços são a maioria da população e são tratados dessa forma no futebol. Como pode isso? A gente precisa se manifestar, lutar para que haja respeito. Eu gosto muito dessa palavra, porque a sexualidade das pessoas não interfere na competência.
Acredita que sua história pode servir de força para quem atravessa a mesma situação?
Quando eu conto a minha história, é justamente para isso. Hoje, o futebol brasileiro tem uma referência. Os garotos LGBTs que sonham em jogar futebol, que têm talento, podem olhar e dizer assim: 'se o Emerson pode, é sinal que a gente também pode'. E eu acho que dessa forma é também fazer com que o restante do futebol tenha respeito às pessoas, independente da questão religiosa, da cor, da sexualidade. A gente fala sobre respeito.
E se trata também de uma quebra de paradigmas...
Quando eu trago a minha história a público, de um goleiro que foi de Seleção Brasileira de base, que jogou em clubes grandes, que ganhou títulos nacionais relevantes, se tornou ídolo, mostra que, mesmo sendo um atleta LGBT, eu pude ter tanto sucesso e ser tão competente como qualquer outro. Não é isso que interfere. Desconstrói muitas máximas que são repetidas. Que gay não tem virilidade para ser jogador, o que é uma mentira. A virilidade não está na sexualidade. Eu conheço muito hétero que não tem virilidade para jogar. Precisa ser talentoso e ser competitivo. E outra máxima que é repetida que se tiver um jogador gay dentro de um clube, vai criar problema em um vestiário. É uma mentira. Fui atleta quase 30 anos, frequentei vestiários e nunca criei problema nenhum.
Os vestiários sempre foram fechados ao tema. Como você lidava com essa questão nos clubes em que jogou?
Foi bem complicado. Eu entrei no futebol com 8 anos na base do Grêmio. Desde antes de eu me entender como um homem gay, eu era atleta de futebol. O esporte veio na minha vida antes do entendimento da minha sexualidade. Logo percebi que, dentro do futebol, isso não era tolerado. Tive que montar um personagem para sobreviver.
Esse cenário tóxico te causava alguma frustração?
Eu até já falei algumas vezes: deixei de ser o Emerson para ser o Emerson goleiro e realizar meu sonho de criança de me tornar profissional. Eu precisei criar um personagem para sobreviver o dia a dia do futebol. Foi duro, foi solitário. Várias vezes tive depressão. Minha saúde mental foi prejudicada. Várias vezes pensei em abandonar, desistir. Mas eu segui sempre. Parei aos 35 anos, quando eu resolvi parar. Essa questão não me impediu, graças a Deus. E hoje eu posso contar a minha história de cabeça erguida, justamente porque enfrentei tudo isso. Mas não foi fácil, porque era como se eu fosse um elemento estranho naquele contexto.
Como era a convivência com os outros atletas?
Na época em que eu jogava, eu não tinha assumido e ninguém tinha certeza de nada. Mas era difícil. Eu acabava não acompanhando os outros atletas em baladas. Nunca apareci com namorada. Isso incitava comentários.
Acredita que houve evolução em como o futebol encara a questão?
A sociedade, em muitos aspectos, evoluiu. A gente não vive mais o que era na década de 1980, quando ser gay era considerado uma doença. O homossexualismo tinha classificação na OMS. Avançamos muito nesse entendimento. Temos governador de estado assumido (Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul). O futebol caminha dois passos atrás, mas tem avanços. Minha declaração é um deles. Até dois anos, não se tinha uma referência. O futebol atrai o que se vê na sociedade.
Após se assumir, algum atleta te procurou para se abrir?
Não. Eles não se sentem confortáveis para falar sobre. É tudo muito escondido. Quem é ex-atleta, não tem interesse em abrir isso depois de parar. Quem está na ativa, não se sente confortável. Se algum atleta em atividade assumir, a carreira corre sério risco de ser comprometida. Mesmo procurando um ex-atleta declarado, como eu, preferem o silêncio do que correr o risco de serem descobertos.
O fato de o Bahia ser um clube inclusivo e combativo em causas sociais te encorajou a concorrer em um cargo visado como a presidência?
Sou fã do Bahia não por ser tricolor desde que vim jogar aqui, mas o time entendeu primeiro que todos os outros clubes a importância de se posicionar e respeitar as escolhas. Por aí, o Bahia é um grande exemplo e referência. O posicionamento, que começou em 2018, ajudou a torcida a eleger um presidente LGBT. Começaram a educar a ponto de consolidar efetivamente com a minha eleição. Mas não foi isso que me motivou. Talvez, o ambiente respeitoso tenha ajudado, mas não foi o ponto. Foi mesmo uma reflexão pessoal de que eu poderia deixar um legado fora de campo também, trazer essa discussão e ajudar o futebol a evoluir de outra forma, que não fosse como atleta. Quando me assumi, não tinha claro a ideia de concorrer. Poderia até ter atrapalhado minha caminhada. Logicamente ajudou, mas não foi o ponto principal.
Qual mensagem gostaria de deixar à comunidade?
Volto a falar em respeito. As pessoas precisam fazer isso, independente das escolhas diferentes. O futebol precisa entender isso. A gente é competitivo nas quatro linhas, mas somos seres humanos. O ambiente não pode ser um cenário de guerra, em que se precisa matar o outro. Precisa competir e respeitar.
Seu coração está batendo mais feliz com a campanha do Bahia?
Muito feliz. O Bahia não ficava nas primeiras colocações há décadas. A última vez que ficou entre os 10 primeiros da Série A foi em 2001 e eu era goleiro do clube. Ficamos em oitavo. Desde o título de 1988, o Bahia não fica entre os primeiros. Estou muito feliz que esteja acontecendo durante o meu mandato.
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