Você deve conhecer a Mangueira por ser a orgulhosa casa da segunda escola de samba mais vitoriosa do Rio de Janeiro, com 20 títulos. O penúltimo, inclusive, em 2016, homenageando Maria Bethânia, um das vozes responsáveis pelo sucesso de Sonho meu, composta por Dona Ivone Lara em parceria com Délcio Carvalho, em 1978. O que talvez você não saiba é que a comunidade também é fábrica de talentos do esporte. Embora seja vizinho do Maracanã, o talento nota 10 da comunidade pertence aos saltos ornamentais. Aos 24 anos, Isaac Souza, bronze no Pan de Lima-2019, finalista do Mundial de 2023 e um dos representantes do país na Olimpíada de Tóquio, faz das piscinas a praia dele.
Isaac competirá em Paris-2024 ao lado da conterrânea Ingrid Oliveira, garantida na terceira disputa olímpica da carreira. A missão da dupla é brindar o Brasil com a inédita medalha no megaevento. Exagero projetar um final feliz? Não para quem está acostumado a mergulhar de cabeça nos objetivos há mais de uma década. Lá se vão 12 anos desde o primeiro capítulo da história entre o atleta e os saltos ornamentais. A modalidade, porém, não foi a primeira porta aberta por ele no esporte. O moleque serelepe das cambalhotas em casa foi lapidado na ginástica artística, por iniciativa dos pais.
A desenvoltura nas aulas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) lhe renderam a oportunidade de treinar no Flamengo. Ficou no clube por quatro anos, antes de deixar a prática devido aos desgastes da rotina. O alto rendimento ainda não era o objetivo. Isaac saiu da ginástica, mas escutou um conselho de migrar para as piscinas. Quem avisa amigo é. Ele experimentou e se viciou nos saltos. “A ginástica artística me deu desenvoltura e criou habilidades, como coordenação, noção corporal, aérea. Cheguei aos saltos com o terreno preparado. Adaptei algumas coisas simples”, compartilha ao Correio.
Isaac saltou para uma oportunidade não concedida à maioria dos meninos e meninas do país. Os saltos ornamentais estão longe de ser um esporte elitista, mas exigem estrutura. Por isso, sente-se privilegiado e em condição de inspiração. “Eu me vejo como um atleta que cria possibilidades para aqueles que estão começando, e outros na trajetória. Sou um exemplo não tão distante. Com meus resultados e meu comportamento, diminuo esse espaço entre o impossível e o possível”, ressalta.
“No mês passado, cumprimentei um menino no Pinheiros (em São Paulo), que estava tremendo. A esse nível (de admiração), eu nunca tinha chegado. Que bom que me enxergam com inspiração”, acrescenta o carioca. A posição de referência entre os jovens é reforçada pela baixa representatividade de negros nos saltos ornamentais.
“Quais são as casas que têm piscina? Foi um esporte que começou com pessoas brancas. É estrutural termos poucos negros em esportes aquáticos, mas me sinto muito honrado em poder representar uma parcela das pessoas pretas com tanta excelência, sendo finalista mundial, medalhista pan-americano e multimedalhista sul-americano”, discursa Isaac. Para ele, existe somente um caminho para a mudança de cenário: “Temos de nos expor e estar nesses lugares mesmo, fazendo com excelência e não porque somos pretos, mas porque queremos estar lá e temos habilidade e os mesmos direitos. É botar a cara, nos mostrar mais e estarmos mais presentes”.
A 70 dias da abertura dos Jogos de Paris-2024, Isaac Souza faz um diagnóstico da modalidade. Ele não se deixa levar pela euforia e destaca o protagonismo asiático. Afinal, sete dos oito ouros distribuídos em Tóquio-2020 foram conquistados por chineses. “Lá, eles têm tudo do bom e do melhor, do ginásio e do seco ao molhado. Os atletas são vinculados ao governo e se dedicam somente a isso. Com o apoio e dedicação exclusiva a isso, eles não obterão menos do que o ouro. Estamos distantes disso, mas estamos caminhando para uma evolução. O esporte brasileiro, especialmente os saltos ornamentais, estão evoluindo”, analisa, com base na vivência de treinamentos no país.
Outras nações aprenderam a beber da fonte chinesa. Para Isaac, o “segredo” está no intercâmbio. “Se for parar para pensar, vemos que os técnicos de outras potências são da China. Tivemos um em Brasília, mas por problema com a família, ele teve de voltar. Os chineses têm um livro antigo de saltos, com técnicas que usamos hoje. É tipo uma ‘bíblia dos saltos’. Foi bem legal ver a dedicação e seriedade que eles têm com o esporte, além do trabalho duro”, comenta.
A evolução do país nos saltos ornamentais tem participação de Brasília. Inclusive, o bronze conquistado por Isaac Souza na plataforma sincronizada 10m teve a colaboração de Kawan Figueiredo, paraibano radicado no Distrito Federal. O carioca enxerga a capital federal no caminho certo do desenvolvimento de talentos. “Acredito que daqui a duas Olimpíadas, pensando com pés no chão, o Brasil conseguirá mostrar outra geração, como a minha e da Ingrid, do César (Castro), do Hugo (Parisi) e da Julia (Veloso) novamente”, projeta.
Os sucessos dos atletas estão ligados aos esforços e, consequentemente, aos desgastes. É aí que entra o acompanhamento psicológico, fator primordial para Isaac. “Faço o meu acompanhamento semanalmente. O nosso esporte é muito mental, pois a mente dá o comando para o corpo. Em menos de três segundos caímos na água. É pouco tempo para pensar em muita coisa. Os dois precisam estar alinhados.”
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