ENTREVISTA

Ana Moser apresenta diagnóstico do esporte no Brasil: 'Está malfeito'

Ex-ministra do Esporte agora preside executivamente a ONG Atletas pelo Brasil. Foco da gestão está na ampliação do acesso para além do alto rendimento e ajuda na correção de rotas

Ana Beatriz Moser. Certamente você se recorda dela. Em 1996, foi um dos pilares da geração responsável pela conquista da primeira medalha olímpica feminina do país no vôlei de quadra. No ano passado, chefiou o Ministério do Esporte por 248 dias. Antes disso, consolidou-se como uma das principais ativistas do Brasil em prol de melhorias na área. O que ela faz agora? Preside executivamente a ONG Atletas pelo Brasil, com objetivo de ampliar o alcance de oportunidades para além dos resultados e alto rendimento e ajudar a corrigir o que avalia como “malfeito”. Para ela, o esporte é muitas vezes tratado como dinâmica de troca política.

O diagnóstico da ex-ponteira é de falta de cultura e de cobertura em termos de acesso às diferentes modalidades por outras classes longe dos olhares de autoridades. Ana Moser se define como privilegiada por ter nascido “no lugar certo e na hora certa”, em 14 de agosto de 1968, em Blumenau (SC). Duzentos e trinta e cinco dias após a placa de substituição subir no Ministério do Esporte para a entrada de André Fufuca, a ex-titular abre o jogo e projeta a nova empreitada pela instituição com 18 anos de serviços prestados. Possibilidade de se candidatar à presidência ou vice do Comitê Olímpico do Brasil (COB)? Ela garante que não há. Possível confirmação do Brasil como sede da Copa do Mundo Feminina de 2027 e presença feminina em cargos de direção esportiva também estão na pauta da entrevista ao Correio.

Como resume a atuação da Atletas pelo Brasil?

Estudar a causa e a atuação do setor como um todo e pensar nas estratégias e na mensagem. A Atletas pelo Brasil é uma instituição de advogasse. Isto é, advogar e dar voz a causas. Usamos esse capital que atletas têm para defender a causa. Ao mesmo tempo, uma ação de crescimento e de participação dos atletas nas questões do esporte para a vida pública.

O que te levou a aceitar o convite da ONG?

Tenho a visão do esporte acontecendo no país. Conheço o esporte acontecendo nos projetos de prefeituras, para a ampliar a prática, engajadas no que querem fazer para fazer a diferença. Isso que levamos para o ministério. Durante o meu período lá, talvez a maior conquista, que ajuda nesse processo, seja um decreto publicado após a nossa gestão para financiamento e atendimento de esporte como atividade física para a população. Isso tem que ser intersocial. Existiu um avanço no período em termos de debate, especialmente para o debate público. O que normalmente só se fala são os resultados das competições esportivas. Não houve ainda o processo de construção de cultura. Não temos a cultura da atividade física e do esporte. Nossa nação é uma das mais sedentárias do mundo. Não temos a cultura e as políticas de acesso. É um momento de dar um passo além. A Atletas pelo Brasil tem essa visão e estamos fazendo o barco andar.

O que a população pode esperar da Atletas pelo Brasil?

A Atletas pelo Brasil não executa projetos de atendimentos. Não é uma instituição que atua na ponta. Diretamente, a Atletas pelo Brasil não vai atender aluno, seja criança ou adulto. Queremos criar esse movimento, facilitar e ampliá-lo. Existe todo um ecossistema que funciona. Tivemos muito pouco tempo para cuidar de ações, lidamos mais com planejamento (no Ministério do Esporte). Essa é a visão que já existe na sociedade. O que não deu para fazer no ministério está aí para tentar ser feito. O que pretendemos com essa agenda é dar visibilidade, fortalecer as ações, buscar apoiar, por exemplo, organizar ações, ter definição do que são as equipes dos municípios, definição de quais são as responsabilidades dentro do sistema de confederações de comitês. É buscar esse contato e continuar com a prioridade de que o esporte é além da competição, é saúde, participação, educação e fortalecimento comunitário. Essas são pautas fomentadas na minha passagem pelo ministério. Vejo como um movimento contínuo que ganhou um motor, um impulso para continuar crescendo e se organizando ainda mais.

Comente as relações de poder no esporte.

A estrutura do esporte é muito mais antiga do que a minha passagem pelo Ministério do Esporte. É muito difícil, em nove meses, mudar a estrutura de décadas. Acho que sou parte dessa jornada, que continua independentemente, com desafios cada vez maiores. Ainda estamos em processo em termos de força feminina. Acho que tudo isso é uma lição para todos os setores. Muito desse processo, o esporte perdeu prestígio e se mostrou menos prioridade do que outras áreas. Isso se deve à realidade de quanto o esporte precisa avançar em organização, educação e classe, reconhecimento das questões e participação. O esporte sempre foi dessa dinâmica de troca política. Eu ouvia dentro do governo que havia esporte em todas as pastas. O esporte realmente é transversal, está em todo lugar, mas está malfeito. Se estivesse bem feito, não teria defasagem na nossa população ativa. Precisamos avançar em termos de prioridade, e aí tudo fará mais sentido.

Não poder desfrutar do desfecho da candidatura da Copa de 2027 te frustra?

Na verdade, não estou nem acompanhando. Eu sabia muito mais de bastidor e agora nem sei te dizer como estão as chances. Sei que sempre tivemos grandes chances, mas grandes adversários em termos de candidaturas. Torço para que sim. Eu acreditava na época que pode ser uma Copa do Mundo barata em termos de estrutura, pois temos muitas coisas já aí, não precisaríamos de grandes investimentos. Também faria muito mais sentido se tivermos uma estratégia larga para o futebol feminino. Continuo achando que o futebol feminino forte é o esporte feminino forte. Desejo toda a sorte do mundo.

O que acha de jogadores e jogadoras de vôlei se posicionarem cada vez mais politicamente?

Sempre nos posicionamos. Já pedi dispensa da Seleção por não concordar com o técnico. A Jaqueline vestia o uniforme ao avesso porque não recebia direito de arena, e era expulsa. Vivíamos totalmente uma participação política. O que acontece é que não havia mídia social. Hoje, há muito da comunicação na participação política. Acho ótimo fazer um código de conduta, mas ele não deve ser imposto. É preciso ser construído junto, em um processo com participação política. O combinado nunca sai caro.

Qual o valor das oportunidades?

Nós somos privilegiados pelo acesso ao esporte. Não foi o sistema que nos deu uma carreira esportiva, foi a sorte de ter nascido no lugar certo, na hora certa e com um caminho para a gente. Se eu tivesse nascido em outro lugar, não teria jogado vôlei.

A três meses da Olimpíada, te dá vontade de competir novamente?

Vivi muito bem. Faz tempo que competi já. Hoje, o meu desejo é ter tempo para fazer atividade física, surfar. Competição daquele jeito é para jovem. Agora é um outro ritmo para ter longevidade. Não é sprint, é maratona. Acho que hoje, com certeza, as bases são muito mais amplas do que as nossas.

Arrisca um palpite para o vôlei brasileiro em Paris-2024?

Ah, são 15 dias de campeonato e é meio imprevisível. O Brasil sempre apresenta um nível muito alto, mas a disputa é muito grande. Lógico que estamos sempre torcendo, pois somos os melhores em termos de conquistas. Ter menos de 100 dias (de preparação) não é problema para o Bernardinho. Tenho a tendência a achar o vôlei masculino mais forte, mas, na Olimpíada passada, foi a equipe feminina que conseguiu o melhor resultado.

O vôlei mudou muito? O Brasil ficou para trás nesse processo?

Acho que talvez haja uma renovação. Tivemos uma geração feminina muito boa, bicampeã olímpica, e muito alta. Não é fácil manter, não é nosso biotipo 100%, diferentemente das russas, que têm uma fábrica de mulheres de 1,90m de altura. Acho que o Brasil tem, hoje em dia, um ganho muito maior fora do país, com jogadoras atuando na Rússia, na Turquia. É outra época, mas o grande segredo nos esportes do Brasil é que é preciso ter campeonatos estaduais, com 10, 12 times. É preciso ter Campeonato Brasileiro com categoria A, B, C com 20 times cada, pelo tamanho que temos. Enquanto isso, lidamos com talentos que estão indo para fora muito rápido. Se tivéssemos uma confederação que desse treinamento de desenvolvimento para 50, 40 jogadoras de cada geração, talvez estivéssemos como os Estados Unidos, com um ambiente universitário competitivo. O Brasil tem muita qualidade, apesar de utilizar a escala de um décimo do que tem em termos de competição. Fala-se em Brasil potência olímpica, mas o caminho para se tornar potência é ampliar a base, oferecer mais acesso e ter o esporte mais presente culturalmente.

Sonha em assumir o COB?

Meu foco maior não é o esporte competitivo. Não tenho nada contra, mas acho que há muita gente cuidando. Para mim, não é preciso ter mais braço nessa área, mas, na outra, sim. Acabo indo mais para o lado de um esporte para todos, relação esportiva, esporte para toda a vida. Depois que parei de jogar, é isso que me move muito mais. Acredito que tem gente muito mais talentosa para um Comitê Olímpico.

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