Na Bala e na Bola

Quando o inimigo é a própria organizada: a disputa brutal pelo poder

Na terceira reportagem da série, uma vítima de "fogo amigo" revela ao Correio por que foi apunhalado pelas costas em uma uniformizada. Os bastidores da batalha pelo domínio e poder dentro das facções. Saiba como o poder público tem se articulado para proteger os torcedores e combater a barbárie dentro e fora dos estádios de futebol do Distrito Federal e de Goiás

Quanto mais longe da bateria, menor o prestígio. Quem fica próximo é respeitado, aclamado e influente. A percussão simboliza o coração de uma torcida organizada. Supera o cântico. Expressa ideal, intimida os rivais e apoia os jogadores. Mas o fator “perto e longe” representa mais do que a distância calculada em metros. Na verdade, expõe a hierarquia provida de status, fama e violência. Na camaradagem entre os parceiros do mesmo grupo, um submundo regado por conflitos internos, relatos de ameaças e até agressões. São bondes contra bondes e comandos contra comandos. Na terceira reportagem da série Na bola e na bala, o Correio Braziliense detalha as guerras internas na Torcida Facção Brasiliense e na Ira Jovem Gama, orquestradas pelos próprios aliados.

As duas uniformizadas são compostas pelo líder geral e os chamados “puxadores”, que atuam como vices e são responsáveis por administrar os comandos (Facção Brasiliense) e os bondes (Ira Jovem Gama). Membros da cúpula, esses chefes das “filiais” convocam reuniões, repassam recados do alto poder aos torcedores, aplicam as punições e promovem ações sociais, festas e churrascos. Locais de confraternização, por exemplo, são mantidos em sigilo nas redes sociais até a véspera do evento — como a comemoração dos 17 anos da Facção Brasiliense.

A festa, em 10 de dezembro do ano passado, foi amplamente divulgada nos perfis oficiais da torcida, incluindo nas dos comandos. O ingresso individual custou R$ 40 (não sócios) e R$ 20 (sócios). O convite continha data e horário, dando a entender que qualquer pessoa poderia participar. No entanto, somente os associados tinham o direito de saber o local.

O endereço foi repassado pelos líderes em um grupo restrito de Whatsapp. Posteriormente, a reportagem descobriu que a confraternização aconteceu na Chácara dos Vaz, no Núcleo Rural Alexandre Gusmão, em Ceilândia. Ocultar informações como essas são normais, afirma um ex-integrante do Brasiliense ao Correio. “Além de rolar coisas erradas, como drogas, o medo é de os rivais descobrirem e aparecerem de surpresa, tomarem as bandeiras e gerar uma briga.”

Nos grupos, os membros precisam seguir as regras impostas pela diretoria ou estarão sujeitos a uma série de punições. A depender da gravidade da situação, o “castigo” é determinado pela liderança e pode variar. “Eles podem proibir de frequentar jogos, a sede, de usar material, podem suspender o cadastro, as viagens, as caravanas. Isso tudo depende. Essa restrição pode ser de dias, meses e anos”, relatou um ex-integrante da diretoria da torcida do Gama, que não terá o nome revelado. Em casos mais graves, uma nota oficial é publicada nas redes sociais. A Facção Brasiliense divulga comunicados de expulsão.

Apunhalado

Até onde a política interna imposta pelas atuais diretorias das organizadas incomoda os “parceiros”? As leis impostas nem sempre são bem aceitas no grupo. Quem discorda se queixa da vaidade, do status, do ego e da rispidez dos membros das cúpulas. Reclamam de não terem voz e apenas serem submetidos a um estatuto mal elaborado e injusto, afirmam ex-integrantes das duas torcidas. A Ira Jovem Gama e a Torcida Facção Brasiliense são ambientes hierarquizados, com chefes de setores, vices e funcionários. Os atuais diretores de ambas hesitam em abrir mão dos cargos para não perder os benefícios: lucros advindos da venda de materiais, além da ostentação.

O Correio conta, agora, a história de Wladson Alves Ferreira, ex-diretor da torcida do Gama. Dos 44 anos de vida, o educador físico dedicou 17 à Ira Jovem, mas saiu depois de ser agredido pelos próprios parceiros em uma confraternização do grupo, em 2019. Motivo? As desavenças em relação à administração da organizada. Naquela época, Wladson pretendia disputar a presidência da torcida, porém os responsáveis pela suposta agressão monopolizaram o comando e impediram o ingresso dele.

Ed Alves/CB/DA.Press -
Ed Alves/CB/DA.Press -
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Ed Alves/CB/DA.Press -
Ed Alves/CB/DA.Press -
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Durante o evento, quatro associados desafiaram Wladson, revelam os autos do processo obtidos pela reportagem. Conforme consta no documento, um deles disse a Wladson: “Nós vamos respeitar o ambiente, mas nós vamos te pegar”, ameaçou. Os quatro partiram para cima do educador físico e o atingiram com socos, pontapés, chutes e murros. Em depoimento prestado à polícia na época, a vítima afirmou que o nariz sangrava e chegou a ser socorrida por conhecidos que estavam no local. “Eram pessoas que eu conhecia há quase 15 anos, exceto um deles, que eu conhecia há cinco. Eles frequentavam minha casa, conheceram minha família e eu, a deles, mas fui covardemente apunhalado pelas costas. Eles não foram homens para assumir em juízo”, declarou, em entrevista ao Correio.

A agressão resultou em uma espécie de “racha” na torcida. Enquanto parte dos filiados ficaram a favor dos envolvidos, outra defendia a vítima. O Ministério Público denunciou os quatro torcedores pelo crime de lesão corporal. No entanto, por falta de provas, a Justiça decidiu pela absolvição. Em defesa, os quatro negaram o envolvimento no caso.

Na Ira Jovem Gama, Wladson ficou na função de presidente, mas decidiu se afastar para ser funcionário do clube como preparador físico. Depois, voltou como diretor da organizada e entrou para uma chapa a fim de concorrer à presidência. Na época, segundo ele, deu início ao rompimento. “O estatuto da torcida não estava sendo cumprido. O que mais me incomodou profundamente foi a covardia de me agredirem por fatos de política interna”, lamentou.

Nas quase duas décadas como membro da organizada, Wladson participou de inúmeras caravanas e admite ter gastado dinheiro com drogas e bebidas, o que define como uma perda de tempo. O Correio apurou que outros episódios de agressão ocorreram posteriormente entre parceiros da Ira Jovem Gama. Em uma festa, um líder do Bonde da Asa Norte foi agredido. Em outra ocasião, num estádio, o líder do Bonde Santa Maria também foi alvo da ataques. Situações como essas são tratadas com insignificância. Por medo de represálias, as vítimas dificilmente levam o caso à polícia.

Mulheres

Engana-se quem acha que as rixas ocorrem apenas entre os homens. Os “bondes ou comandos femininos” são especificamente integrados por meninas, adolescentes e jovens. A vaidade, contatos com rivais ou até relacionamento amoroso com os membros são causas suficientes para as brigas. Ainda na Ira Jovem Gama, uma mulher relatou, sob anonimato, ter saído da torcida após sofrer represálias por conversar com um torcedor do Flamengo na escola. No geral, o Vasco está para o Gama e o Flamengo para o Brasiliense. Portanto, até mesmo o contato com simpatizantes de times de projeção nacional são rechaçados. “Eu sou apaixonada pelo Flamengo e sabia da rivalidade. Quando saí da torcida, saí brigada. Fiquei anos sem ir ver o jogo por medo. Até sair do estádio escoltada eu já saí”, afirmou.

Ela desabafa sobre o machismo escancarado envolto nas mulheres associadas. “Para os homens é mais fácil. Na verdade, para os caras, é bom ter contato com as meninas da torcida rival.” A regra é clara: nenhum integrante pode ter contato com o adversário.

O mesmo vale para a Facção Brasiliense. Além de escancararem notas de expulsão nas redes sociais, com direito ao nome completo e comando de que faz parte, os líderes impõem regras. Em caso de descumprimento, começa a desavença. “Imagina você tendo amizade, indo em casa, indo para festa tomar uma com um rival? Isso é inaceitável de todas as formas. Se alguém vê, você corre um sério risco até de apanhar”, detalha um ex-integrante.

Em julho de 2017, um líder de um dos comandos da Facção Brasiliense foi baleado após uma festa em Taguatinga. A briga aconteceu entre a vítima, identificada como Pablo, e um adolescente, à época com 15 anos, membro da torcida. A discussão não foi em torno da organizada, mas por causa de uma mulher, que seria ex-namorada de Pablo. À época, o menor confessou que, após a discussão, percebeu que Pablo estava armado e foi em sua direção, pegou o revólver da mão dele e efetuou dois disparos contra a vítima.

Ações públicas no DF

Responsável por garantir o bom desenvolvimento das atividades desportivas e combater a violência nos esportes, a Procuradoria Distrital dos Direitos do Cidadão do Ministério Público do DF (PDDC/MPDFT) lida com uma série de impasses nas torcidas organizadas e busca assegurar os direitos do torcedor para evitar, principalmente, os confrontos em estádios. Em entrevista ao Correio, o procurador da PDDC, José Eduardo Sabo, afirma traçar estratégias para impedir ações violentas protagonizadas por rivais. Entre elas, a implementação de um sistema de reconhecimento facial na entrada dos estádios.

O MPDFT dispõe, ainda, da Comissão de Prevenção de Violência nos Estádios de Futebol do DF, que é integrada por cinco membros. Além do procurador, fazem parte os promotores de Justiça Paulo Binicheski, Bruno Vergini, Claudio João Medeiros e Marcel Nóbrega. A Comissão atua de forma integrada à Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) e a órgãos como a Polícia Militar, o Corpo de Bombeiros, o Departamento de Trânsito (Detran), a Polícia Civil e a Polícia Rodoviária Federal (PRF) e faz vistorias prévias nos estádios, além de fiscalizar os eventos esportivos para garantir o cumprimento do Estatuto do Torcedor.

É esse mesmo grupo de segurança que decide se um jogo será ou não com torcida única, sem torcida ou duas torcidas. Os critérios analisados para a decisão são fundamentados em jogos de anos anteriores. Uma briga entre rivais dentro do estádio, por exemplo, é suficiente para os responsáveis baterem o martelo e impedir um jogo com as duas torcidas, como em 7 de fevereiro, no clássico entre o Brasiliense e Gama. “Há algo específico no futebol, que são as torcidas organizadas. São difíceis de tratar e preocupantes, porque há rivalidade. E cabe a nós perceber essa rivalidade. O MP tem a obrigação de ficar ao lado do cidadão que vai ao estádio. Nesse caso das atividades em arenas, há uma série de preocupações de permanência, acesso, saída e visibilidade”, afirma José Eduaardo Sabo.

A Lei Geral do Esporte prevê a implementação de sistema biométrico para arenas com mais de 20 mil torcedores. Mas essa é uma providência já discutida no DF entre os órgãos de segurança. No entanto, segundo o procurador, manter um banco de dados com o nome de cada torcedor depende das diretorias de cada organizada, que devem entregar uma lista atualizada de cada membro filiado. “É uma dificuldade que temos, porque sabemos que eles acobertam muitas coisas. Nos reunimos várias vezes e estamos de portas abertas para as diretorias, mas notamos uma resistência. Pedimos que os clubes sejam aliados do MP para essa identificação, para evitar prejuízos”, frisa o procurador.

Em Goiânia

Especialista em torcidas organizadas, o promotor e coordenador do Grupo de Atuação Especial em Grandes Eventos do Futebol (Gfut) do Ministério Público de Goiás, Sandro Henrique Halfeld, define que, dentro das torcidas organizadas, membros se aproveitam do grupo e até usam os uniformes para cometer crimes. “O conceito de torcida organizada vem das pessoas que torcem pelo time e resolvem ir ao estádio para torcer de forma conjunta. Agora, enquanto torcida, há CNPJ, sede, estatuto, associados e membros. Mas a organizada vende livremente camisetas e qualquer um pode comprar”, explica.

A venda deliberada e sem restrição aliada à falta de controle sobre os torcedores favorece a entrada de criminosos. Consequentemente, a escalada de violência. Em Goiás, foi criada uma delegacia especializada para investigar crimes cometidos entre torcedores de organizadas. “Fazemos questão de perguntar aos acusados, durante o interrogatório, se eles sabem os nomes dos jogadores e muitos não sabem responder”, afirmou o promotor.

Nas investigações conduzidas em Goiás, os policiais e promotores identificaram supostos membros de torcidas que eram traficantes, o que o promotor classifica como “intercessão com o tráfico”. Sandro fala sobre a conivência da diretoria. Se os líderes não participam, no mínimo apoiam a ilegalidade. “Eles (diretores) precisam ter uma postura mais firme e contrária. Assumir uma postura mais radical, de não aceitar, ficar passivo e se afastar.”

Alinhamento

Torcida única, mista, separada, sem torcida e um forte esquema de segurança são consequências das brigas orquestradas pelas organizadas. Dia de clássico com apenas uma torcida é a frustração de qualquer fanático pelo clube. Mas, desde que as rixas, os espancamentos, as tentativas de homicídio se alastraram nos grupos, a Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) criou uma estratégia para manter longe as organizadas.


O monitoramento feito pelo órgão se ajusta conforme os jogos e considera as peculiaridades dos times envolvidos. São promovidas reuniões de alinhamento para estabelecer os parâmetros operacionais, abordando questões específicas relacionadas ao monitoramento desses grupos, informou a SSP-DF ao Correio.

As forças de segurança são responsáveis pela implementação de medidas de policiamento desde os locais de concentração das torcidas até os estádios onde ocorrem as partidas. Nos estádios, não há grandes modificações estruturais. As equipes se adaptam às exigências das forças de segurança, que são responsáveis, entre outras atribuições, pelos laudos. Um exemplo disso é a instalação de grades para separar torcidas no acesso aos jogos.

Definir se será torcida única ou não é uma decisão das autoridades de segurança, que se baseiam nas características físicas do estádio, o histórico de confrontos entre as torcidas, e o monitoramento das redes sociais, entre outros. “É importante ressaltar que o policiamento é realizado de acordo com um planejamento específico da Polícia Militar, que mobiliza efetivos regulares e especializados para garantir a segurança, tanto nas áreas externas quanto internas dos estádios e suas proximidades”, destacou a SSP.

Relato de um ex-integrante da organizada do Gama

Nesse nosso meio tem várias pessoas que fazem coisas erradas, muitas vezes são incentivadas por líderes de quebradas e por diretores. Tem gente que ameaça os outros e muitas vezes o próprio presidente incentiva as porradas. Usa vocabulário de bandido no intuito de coagir. Sempre dizendo que coloca o cargo dele para quem quiser, mas na verdade não é bem assim. A frente da torcida é composta por mais ou menos 75% da família do presidente, e os outros integrantes foram convidados por ele. Não aceitam sugestões. Você não pode discordar da opinião deles, se não começam a perseguição. Bondes como o Ingá, Santa Maria, Guará, Asa Norte e R3 cobram mudanças e prestações de conta. Simplesmente, eles zombaram e, às vezes, mandam comprovantes de pagamento de água e luz, sem a verdadeira prestação de contas. Quem paga o aluguel da sede? Um político? Lavagem de dinheiro? Por que, em 20 anos, nunca trocou de presidente? O Ministério Público deveria abrir uma investigação sobre. O diretor-geral da torcida está foragido. Está vivendo com qual dinheiro? Integrantes brigam entre si, declarando que se vê fulano vai bater, vai matar etc… Mulheres brigam entre elas também. Recentemente, observei várias ameaças vindo das líderes do feminino para outra líder mais velha, ameaça no teor de tentativa de homicídio. Temos também um caso antigo de integrante que foi brutalmente espancado por membros da torcida e diretoria. Teve até um processo rolando. Hoje, esse ex-membro é proibido de chegar perto. Teve sua vida, de amigos e psicológico destruídos e a dignidade jogada no lixo. Tivemos um caso de uma ex-integrante que diz que sofreu uma tentativa de estrupo. E tem um caso de uma outra moça mais velha que também envolve o assunto de estrupo. Como ex-integrante, posso te afirmar: não devemos discordar dos membros da diretoria, tem que seguir o ritmo imposto por eles, o ritmo do general por trás dele. Tem outras pessoas que mandam por baixo dos panos, parece uma ditadura. Temos medo de falar sobre isso

 

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