Eles são minoria, mas suficientemente muitos para se infiltrar em torcidas organizadas e usá-las como braço do crime organizado. Duas das mais minuciosas pesquisas publicadas no Brasil no início da década passada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Salgado de Oliveira (Universo) alertavam que a violência entre torcedores no país é praticada por uma minoria de vândalos — de 5% a 7% das torcidas organizadas. Os trabalhos científicos reforçam: minoria de torcidas organizadas, não de torcedores em geral. "E isso considerando que as chamadas torcidas organizadas já são minoria, dentro do universo geral de milhões de torcedores", reforça o documento acadêmico.
O ódio no futebol não é fenômeno recente. Muito menos restrito ao Brasil, a Brasília ou a um bairro. O primeiro grande golpe sofrido pelo esporte mais popular do mundo aconteceu em 5 de abril de 1902, em Ibrox Park, casa do clube escocês Glasgow Rangers: 25 mortos e 483 feridos. Cento e vinte e dois anos depois, o Distrito Federal, inaugurado em 1960, contabiliza mortes em série causadas por facções rivais muito além do ambiente aparentemente ingênuo e pacífico das arquibancadas.
Brasília é um dos campos minados no mapa da violência no futebol no Brasil. Embora a história do clássico local entre Brasiliense e Gama tenha apenas 23 anos, o duelo disputado pela primeira vez em 2001 virou refém, um puxadinho do crime organizado, inclusive sob investigação da polícia. É o que mostra, a partir de hoje, a série Na Bola e na Bala. A reportagem do Correio foi ao submundo real e virtual das uniformizadas durante três meses acompanhar o modus operandi de grupos programados não para torcer, mas para matar. Nas próximas semanas, você conhecerá histórias de acertos de contas e relatos de famílias que perderam entes para a guerra entre supostos fãs dos dois times mais populares da capital.
Quero fazer parte
Assim como a maioria das torcidas espalhadas pelo mundo, as organizadas do Brasiliense e do Gama surgiram de reuniões informais entre amigos. O uniforme se tornou marca registrada dos torcedores. As bandeiras e faixas, ícones indispensáveis nos estádios, nas sedes (locais de encontros e reuniões), nas confraternizações e nas ações sociais.
O lábaro, as camisetas, as bermudas e os bonés são muito mais do que objetos representativos. Entre os rivais, roubar ou furtar algum item é tido como um troféu. Sinônimo de vitória. As peças "valiosas" são guardadas a sete chaves pelos membros das diretorias e líderes desses grupos. Frequentemente, os utensílios são migrados de casa em casa por pessoas da alta "confiança", inclusive por indivíduos armados, como mostraremos na próxima sexta-feira no segundo episódio da série Na Bola e na Bala.
Como uma empresa matriz, as duas torcidas têm filiais e chefes. No caso da organizada do Brasiliense, a sede fica na EQNM 23/25, em Ceilândia, e os chamados "comandos" funcionam como sucursais. São ao menos nove espalhadas por Samambaia, Chaparral (Taguatinga), P Norte, P Sul e Águas Lindas.
A sede do Gama está no Setor Oeste da cidade. Ao invés do nome "comando", são identificados como "bondes". Há filiais no Novo Gama, na Asa Norte, no Guará, no Gama e em Santa Maria. O Correio esteve nas duas sedes. Ambas funcionam como uma loja e ponto de encontro dos associados. Lá, são vendidos uniformes, além de acessórios, como chaveiros, bonés e copos personalizados. O local serve, ainda, para reuniões e eventos.
Em decorrência dos inúmeros episódios violentos protagonizados pelas duas torcidas, os jogos do Candangão 2024 entre as rivais ocorrem com torcida única, uma medida adotada pelas forças de segurança para evitar confrontos.
As duas sedes têm CNPJ registrado, mas na prática não podem funcionar. Em consulta ao sistema da Secretaria da Fazenda, o comprovante de inscrição e de situação cadastral de cada uma delas apresenta problemas. As duas organizadas são classificadas como "inaptas" perante o GDF por omitirem declarações. Isso ocorre quando uma empresa deixa de apresentar algum documento ao governo, o que a torna proibida de operar.
Alistamento
Filiar-se a uma torcida organizada não é difícil. Cobra-se uma taxa de inscrição para a confecção da carteirinha. Há planos a partir de R$ 10 (Gama) e R$ 20 (Brasiliense) para quem deseja associar-se. A inscrição disponibiliza benefícios ao torcedor, como descontos em caravanas pelo país, nos materiais das torcidas e ingressos para os jogos.
Vinculado, o torcedor pode participar dos frequentes encontros. Ensaia os gritos de guerra e pode disputar status no grupo. Antes, são submetidos ao "batismo" — o chamado corredor polonês. É uma passagem estreita formada por duas fileiras de pessoas alinhadas lado a lado. Ao caminhar pelo centro, o calouro é alvo de pancadas e murros. Isso ocorre também quando algum membro infringe regras.
Os eventos e confraternizações também são meios de aproximar os integrantes. Por um baixo custo, o associado frequenta festas, churrascos e ganha até bebida de graça. Porém, assim como nos estádios, o uso de drogas é prática comum. Nos jogos que o Correio acompanhou, no estádio, na primeira fase do Candangão de 2024, observamos torcedores em posse de maconha.
Vestir uma camiseta da organizada e sair pelas ruas é um ato de coragem e provocação. Na apuração, o Correio conversou com ex-integrantes de cada uma das torcidas. Por medo de represálias, eles preferem o anonimato. Eles justificam a saída por se depararem com "muita coisa errada". "A regra sempre foi clara. Entrou sabendo que pode acontecer tudo. Não pode vacilar na rua com roupas das torcidas, porque não é roupa de marca para desfilar. Se andar com uma camiseta dessa, você pode apanhar e os líderes não gostam que você perca o pano, porque é um prêmio para os rivais", revelou um ex-integrante da organizada do Brasiliense.
Em caso de ser encontrado pelo rival com a camiseta ou a bermuda da torcida, o associado arrisca ser espancado e deixado nu no meio da rua. Faz parte da "lei", afirmam fontes. Cada item furtado e roubado é divulgado nas redes sociais como troféu, pesquisou o Correio. Blusas, bandeiras, calças ou bermudas são queimadas ou colocadas em um varal.
Redes sociais
Os vários perfis dos "comandos" e dos "bondes" são voltados à divulgação dos eventos, fotos dos torcedores, notas de pesar de ex-integrantes ceifados e avisos, como as convocações gerais. Em um dos posts, publicado em 18 de junho de 2023 no perfil do Comando de Águas Lindas (GO), por exemplo, a Facção Brasiliense deixa público um número para o disque-balada. O canal serve para receber denúncias de jogadores do clube flagrados em eventos. Em tom de ameaça, eles deixam o recado. "Viu algum jogador em barzinho, balada ou em alguma festa? Nos avise. Vamos mostrar para eles que aqui não é brincadeira. Se veio para se divertir na capital do país, que meta o pé e vá embora. Para querer diversão, tem que mostrar trabalho. E isso está faltando em nosso time".
Chama a atenção a forma como os torcedores aparecem em fotos das redes sociais dos perfis das organizadas. São poucos os registros em que os rostos dos membros são expostos. Na maioria das fotografias, as faces são cobertas por algum desenho. Enquanto os membros da Ira Jovem usam o emoji pânico como símbolo, os do brasiliense exibem o jacaré ou o boneco chucky, do filme Brinquedo Assassino, como referência. "É, exclusivamente, para esconder qualquer possibilidade de serem reconhecidos pelos rivais e pela polícia. Em ações sociais ou eventos do 'bem' não tapam", indica fonte do Gama.
Abdicação
Ingressar em uma torcida organizada é como enfrentar um processo de reconstrução da identidade pessoal. A associação é quase uma abdicação das crenças, relações sociais, valores e costumes. Mudanças necessárias para "pertencer" ao grupo. Bruno*, como prefere ser chamado para manter o anonimato, entrou para a Ira Jovem Gama em 2008 por curiosidade. Assim como ele, muitos adolescentes e jovens não têm conhecimento sequer dos nomes dos jogadores do time, mas sentem-se atraídos pelos encontros e badernas. Ex-morador do Gama, Bruno queria sentir a "adrenalina". "Fiquei cinco anos e, nesse tempo, participei de bondes com alguns amigos", conta.
Questionado sobre como ganhou a confiança da diretoria para um cargo de liderança, Bruno testemunha a simplicidade do processo seletivo. "Fui morar no Entorno e comecei a chamar a galera para os jogos. O pessoal me viu arrastando os meninos e me deu esse voto. Mas não tinha regras. Era entrar no estádio, cantar os hinos", relata.
Associar-se a uma torcida requer obediência ao código de ética. Na Ira Jovem Gama e na Facção Brasiliense, os casos de expulsão ocorrem quando o membro não segue a ideologia. No caso do Gama, a depender da infração, aplica-se penalidades mais brandas, como a proibição de dias ou meses de frequentar os jogos ou eventos do grupo. A exclusão direta ocorre nas situações de assédio, ligação ou contato com torcedores rivais, roubo contra o próprio membro ou perda de materiais da torcida.
Cartão vermelho
A organizada do Brasiliense costuma publicar oficialmente as notas de expulsão. O comunicado exibe até o nome do ex-torcedor e o comando ao qual a pessoa era vinculada. "[Nome] está expulsa da nossa entidade por conduta inapropriada e falta de ideologia, que a mesma (sic) seja dada como exemplo aos demais. A partir da data presente, a mesma fica proibida de ir à sede e participar de qualquer evento que envolva a torcida. Ressaltando que a mesma não nos representa mais em nada", diz uma das notas postada em 22 de março de 2021.
Deixar o companheiro para trás durante um confronto também é sujeito a penalidades. "Se for Brasiliense e Gama, que é a rivalidade total, não pode correr, deixar o companheiro para trás. Isso é desrespeito e desonra. Acaba sendo covardia", diz um ex-integrante de uma organizada do Brasiliense. Ele ficou por mais de três anos na torcida do clube e revela que, mesmo com as ações de repressão da polícia, a ordem é não recuar. "É sangue no olho. A rapaziada não tem dó", testifica.
Os dois ex-integrantes do Brasiliense e do Gama abandonaram as respectivas torcidas e descrevem o período como "perda de tempo". "Hoje, se tornou até algo prejudicial aos jovens, porque não tem mais ligação com futebol. É rivalidade, briga e violência", afirma Bruno. O ex-membro do Brasiliense decidiu deixar a organizada ao se converter ao cristianismo. "Fiz muita merda. Briguei, bati, apanhei. Uma hora precisei parar."
Por inúmeras vezes, o Correio tentou contato com a liderança da Facção Brasiliense, mas em todas as tentativas negaram posicionamento. O espaço segue aberto para manifestações. A reportagem tentou contato com a diretoria da Ira Jovem Gama e aguarda retorno.
Na próxima semana
Na segunda reportagem da série Na Bola e Na Bala, o Correio trará detalhes das ocorrências policiais envolvendo as duas torcidas, os relatos de guerras no próprio grupo e entrevistas com parentes de ex-integrantes assassinados pela rivalidade.