Paris-2024

Raquel Kochhann mira terceira Olimpíada após tratar câncer

Atleta da Seleção Brasileira descobriu um câncer após interrupção das disputas no rugby para se recuperar de lesão grave no joelho. Após 19 meses de tratamento, a catarinense retorna aos gramados, celebra recuperação e ensaia próximas jogadas

Raquel Cristina Kochhann sempre encarou de peito aberto a marcação cerrada dos desafios da vida. Determinada a viver do esporte, a catarinense de Saudades, no oeste do estado, rompeu divisas, ganhou o Brasil, a América do Sul e desbravou o mundo do alto rendimento com garra e qualidade técnica no rugby. A história de mais de uma década dedicada à modalidade, porém, foi interrompida devido a questões que independiam da força dos braços e das pernas dela.

Para entender a adversidade vivida pela referência do rugby, é preciso voltar no tempo. Antes das Olimpíadas de Tóquio, em 2021, Raquel se consultou com médicos do Comitê Olímpico do Brasil (COB) e passou por baterias de exames que constataram a presença de um caroço na mama. Até ali, tudo bem. Não havia motivo para alarde. A catarinense defendeu o país nos três jogos na campanha de 11º lugar na Terra do Sol Nascente.

O problema veio depois. Em maio de 2022, o caroço passou de alerta à ameaça após dobrar de tamanho. Àquela altura, havia necessidade de cirurgia. Raquel adiou o procedimento para encerrar a temporada nos campos. A "teimosia" custou uma lesão no ligamento cruzado anterior do joelho (LCA). Mas, como há males que vêm para o bem, a capitã da Amarelinha aproveitou a pausa forçada para tratar os dois casos.

O caroço foi retirado e células cancerígenas foram identificadas em biópsia. Raquel estava com câncer desenvolvido no osso do esterno. A atleta se assustou com a notícia. Afinal, havia histórico familiar com o tumor da mãe na mama. "Fiquei com um pouco de medo, por ser um osso vital, que protege o coração. O ortopedista oncológico também me assustou ao dizer que um osso acometido pelo câncer poderia quebrar a qualquer momento. Mas Deus nunca nos dá desafios maiores do que podemos suportar e essa fé sempre me ajudou", destaca, ao Correio.

Raquel temeu pela continuidade no esporte e fez um apelo ao médico. Pediu sinceridade, caso não tivesse condições de retornar aos gramados. Paciência e respeito às etapas foram chaves após seis sessões de quimioterapia e três de radioterapia. "Encarei como se fosse 'outra lesão', respeitando o processo de tratamento, seguindo tudo possível. Tive excelente suporte com uma equipe multidisciplinar que me deixaram muito segura", comenta. Todo o tratamento foi realizado pelo plano disponibilizado pelo COB e pela Confederação Brasileira de Rugby (CBRU).

Foram 19 meses longe das competições. Durante o tratamento, não abandonou a atividade física. As sessões de quimio eram a cada 21 dias, sempre às quintas-feiras. Nas segundas-feiras, Raquel treinava conforme orientações médicas. Períodos na academia e até rugby — adaptado — estavam no cronograma. "Eu sentia cansaço e fadiga mais rapidamente. E uma grande preocupação foi não chegar à exaustão para não baixar a imunidade e não deixar meu corpo vulnerável", explica.

Uma das aliadas foi Lilian Monteiro, ex-companheira e atual vice-presidente do Charruas Rugby — clube pelo qual atua. A amiga também superou um câncer de mama. "É um exemplo de pessoa. Foi uma das minhas inspirações no início da carreira. Quando soube que eu precisaria passar pelo tratamento, conversei com ela para saber como o corpo dela tinha reagido, quais os desafios do processo, que me ajudaram a me preparar melhor. A troca de experiências foi de muito valor nesse processo", agradece.

Retorno

Mudanças de hábitos, como a alimentação, horários, sono e treinos colaboraram para o retorno. Hoje, sem o seio, Raquel se sente novinha em folha, com os aspectos físico e mental alinhados. Em dezembro, retornou às competições pelo Charruas no Campeonato Brasileiro. Acima de qualquer resultado, faz um brinde à vida e à nova versão. "Aprendi a valorizar muito as pequenas conquistas e ver o lado bom das coisas. Como atleta, melhorei na disciplina, pois ela é fundamental nas pequenas conquistas, além de ter sido fundamental para minha recuperação. Também valorizo cada chance de estar em campo."

Recuperada, Raquel evolui gradativamente e é observada de perto. Exemplo disso é o uso de uma proteção desenvolvida para o tórax, cujo objetivo é amortecer os choques. "Espero deixar de usá-la em breve. Passou por modificações e adaptações para ficar seguro para mim e as adversárias", esclarece. O foco de Raquel está na terceira etapa do Circuito Mundial com a Seleção, no fim de janeiro. Depois, ela planeja carimbar o passaporte para as Olimpíadas de Paris. A história das Yaras — como são chamadas as jogadas do país — nos Jogos se confunde com a da catarinense. Raquel esteve nas duas disputas olímpicas desde a reincorporação da modalidade ao programa.

"Depois de todo o processo, é uma conquista por vez. A primeira foi poder voltar a jogar em nível nacional. Agora, o próximo grande desafio é conquistar uma vaga no time principal e, com isso, disputar um jogo do circuito mundial. Tendo conseguido isso e ocorrendo tudo bem, aí, sim, posso pensar em disputar uma vaga no time olímpico. Mas um passo de cada vez. Um objetivo e um foco por vez", pondera.

O Brasil é a grande potência no rugby na América do Sul e conquistou títulos em todas as participações de disputas Sul-Americanas. O trabalho, agora, é para concretizar o projeto de expansão. Para Raquel, o progresso dos últimos anos libera sonhar com resultados mais expressivos em breve. "Evoluímos muito, principalmente na mentalidade em valorizar o 'nosso rúgbi', usar as nossas habilidades a nosso favor, ao invés de tentar seguir o modelo esportivo de outro país. Tivemos respostas positivas no desempenho, subindo para 8 colocado no ranking do circuito mundial, e esperamos que esse crescimento continue", projeta.

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