Sancionada pelo presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva no mês passado, em 3 de julho, a Lei 14.614/2023 alterou a Lei Geral do Esporte (14.597/2023) "para garantir às atletas gestantes ou puérperas, no âmbito da Bolsa-Atleta, o respeito à maternidade e aos direitos que as protegem". Na prática, o texto assegura o pagamento das parcelas da Bolsa-Atleta durante o período da gestação, mais seis meses após o nascimento da criança. Pela regra anterior, o benefício era concedido por um ano, sem exceções.
A inovação é bem-vinda, mas, no caso de algumas atletas, demorou demais a sair do papel. A realidade para a marchadora atlética Elianay Pereira, de 39 anos, era muito diferente. Mãe do Arthur, de oito anos, ela não era blindada legalmente quando engravidou do filho, em 2015. Consequentemente, passou aperto.
Ajudada por duas bolsas de auxílio financeiro, uma ofertada pela Federação de Atletismo do Distrito Federal (FatDF), por meio do GDF, e a outra pela Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt), via governo federal, a atleta perderia os dois benefícios caso interrompesse os treinamentos e as participações em competições.
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"Acabei engravidando em um momento não planejado, e isso foi duro. Fiquei mal. Sabia que isso iria me prejudicar, pois perderia as bolsas. Elas só eram oferecidas para quem prestava contas, ou seja, explicasse exatamente o que fez no esporte no ano anterior, para receber no ano atual. Mas como eu ia treinar ou competir grávida?", relata Elianay em entrevista ao Correio Braziliense.
A marchadora descobriu a gravidez durante um torneio na China. Depois do evento, o exame apontou oito semanas de gestação. Por conta da necessidade de manter-se em atividade para receber o auxílio financeiro, Elianay não se afastou das competições.
"Eu competi até os oito meses de gravidez. Era horrível, pois eu estava claramente fora de forma. Não estava nas condições ideais para me manter ali, mas precisava das bolsas. Logicamente que não no mesmo ritmo, mas eu precisava ter condição e ir. É igual a uma lesão, pois muda o corpo demais", testemunha.
Elianay teve Arthur em um parto cesárea e fez uma breve pausa. Vinte e três dias depois da cirurgia, a atleta voltou a treinar no estádio Augustinho Lima, em Sobradinho. Na sequência, embarcou novamente rumo à China. Competiu quatro meses depois de dar à luz.
"Eu faço normalmente 20km, que são 50 voltas (na pista de atletismo). Depois de voltar da gravidez, eu fiz 3, só para provar que eu estava competindo, pois a regra para prestar contas era de que você estivesse treinando e competindo. Não interessa se você tinha feito cirurgia, se ficou grávida, você precisa ter competido nesse período", detalha. "Eu engordei 22 kg. Aí fiquei esses 23 dias para prestar as contas e voltei a competir em outubro, quatro meses depois, na China, em um tour com quatro dias seguidos de prova. Tive uma performance horrível, 20 minutos acima da minha marca", recorda.
Para ir à Ásia, Elianay precisou deixar um pequeno estoque de leite para o filho de quatro meses. Paralelamente, foi aos Estados Unidos. "Lá, precisava ficar entre as três primeiras do ranking para não perder a bolsa ofertada da Confederação Nacional, e por um milagre, consegui. A terceira colocada tinha 1h43min04s, e eu passei com 1h42min59s. Se me encontrasse nessa situação hoje, não teria ido", argumenta.
Ela coloca o momento da gravidez como o mais complicado na missão pela manutenção do recurso financeiro. "Quando você é mãe, precisa aderir a uma rotina super cansativa. O Arthur mexia demais na barriga e tinha refluxo durante a noite. Eu chegava exausta para treinar de manhã, mas tinha de ir de qualquer jeito. Quando ele nasceu, pensei muito em me aposentar. Não sabia como faria. Mas acabei resistindo e continuei".
Rei Arthur, o amuleto
Apesar do risco durante a gestação e a "licença-maternidade", Elianay Pereira define o filho Arthur como um amuleto na sequência da carreira depois da gravidez. Antes de ter o bebê, ela só participava de competições nacionais e sul-americanas. Depois do nascimento, foi para campeonatos mundiais e Jogos Pan-Americanos. "Ele me deu forças", orgulha-se.
Segundo Elianay Pereira, antes da sanção da lei, as atletas não treinavam nem competiam por causa da gestação e perdiam o direito às bolsas por causa de denúncias de terceiros. "Foi por isso que eu continuei, mesmo grávida. Se alguém fosse me denunciar, diria que estava grávida, mas que não deixei de me manter ativa. Foi o que falei quando fui prestar contas. Se não comprovar que competiu, você precisa devolver o dinheiro da bolsa. É preciso explicar exatamente o que foi feito nesse meio tempo", detalhou.
A atleta sente orgulho da forma como enfrentou o desafio e venceu, mas destaca a importância da Lei e lamenta não ter usufruído da proteção quando engravidou. "Eu não precisaria ter me esforçado da maneira que fiz, na situação em que estava. Eu corri riscos de saúde. Poderia ter sofrido lesões. Se eu tivesse a bolsa, eu teria voltado apenas no ano seguinte. O grande benefício dessa nova lei é que o atleta volta apenas quando está apto a competir em alto rendimento", lamenta. "Fico feliz porque a lei realmente mudou, e agora todas as atletas poderão ter filhos e filhas tranquilas, pois não perderão a bolsa", pondera.
Elianay tem no currículo quatro títulos nacionais. Esteve duas vezes entre as oito melhores marchadoras em Campeonatos Sul-Americanos, uma entre as oito melhores nos Jogos Pan-Americanos; ficou em 16º lugar na prova de 50km do Campeonato Mundial de Atletismo de 2019, em Doha, no Catar, e ensaia o fim da carreira.
"Se eu estivesse mais perto da minha melhor forma, acredito que estaria mais motivada. Estou buscando a classificação para o Mundial. A essa altura do ano passado, eu estaria classificada. Estou ficando mais velha e tendo muitas lesões. Fiz cirurgia, tive problema no menisco e no ciático. Não tem lógica fazer cirurgia na idade em que estou. Vou ver como vai ser o restante deste ano e o próximo para saber se ainda vou continuar", finalizou.
O que mudou na lei?
Anteriormente, a Lei 14.597, conhecida como a Lei Geral do Esporte, ofertava a Bolsa-Atleta apenas para atletas que comprovassem as atividades esportivas, realizadas ano a ano, dos devidos esportes/categorias disputados.
Após passar a conceder os benefícios pelo período de um ano, independentemente do período de gestação e recuperação pós-gravidez, foi sancionada pelo presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, e publicada, em 3 de julho passado, pelo Diário Oficial da União, a nova Lei 14.614, que assegura o pagamento das parcelas da Bolsa-Atleta durante o período da gestação, mais seis meses após o nascimento da criança.
A nova lei é resultado do projeto de lei (PL) 1.084/2023, do Poder Executivo, que altera a Lei Geral do Esporte (Lei 14.597, de 2023). A matéria foi aprovada em junho pelo Senado, com relatório favorável da senadora Leila Barros (PDT-DF), de acordo com a Agência Senado. O texto passa a dispensar a comprovação da atividade esportiva durante a gestação ou o puerpério. Caso não possa haver comprovação, a renovação do benefício levará em conta o resultado esportivo obtido no ano antecedente à gestação ou ao puerpério. A regra também passa a ser válida para adoções.
*Estagiário sob a supervisão de Marcos Paulo Lima
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