Paracanoagem

Conheça paracanoístas brasilienses que vão ao Mundial tentar vaga olímpica

Introduzidos ao esporte de forma semelhante, Erisângela Toniolo, de 46 anos, e Luciano Lima, 42, representam a capital federal em torneios de elite. Em agosto, vão competir na Alemanha

A saga dos paracanoístas brasilienses por uma vaga inédita em Paralimpíadas é árdua, mas não somente devido à competitividade de um processo seletivo desafiador. Às margens do Lago Paranoá, no Clube da Aeronáutica, os representantes da Seleção de Brasília cumprem os desafios para representar o país e a cidade. Se reúnem quase diariamente, muitas vezes em dois períodos, para treinar e manter a forma. Erisângela Toniolo, de 46 anos, e Luciano Lima, 42, fazem parte desta rotina.

A dupla integra uma equipe de seis paratletas brasilienses classificados para o Mundial de velocidade da categoria, entre 23 e 27 de agosto, em Duisburg, na Alemanha. O Distrito Federal terá representantes no torneio pela primeira vez em oito anos e pode garantir vagas nos Jogos Paralímpicos de Paris-2024.

Eri, como é chamada pelos mais próximos, amputou a perna direita aos 16 anos após complicações de um tumor no joelho. Luciano ficou paraplégico devido a um tiro na lombar há nove anos. No entanto, os obstáculos não os impediram de remar em busca dos sonhos. Os dois encontraram o caminho após darem entrada na Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação.

Apaixonada por radialismo e formada em jornalismo após a mudança para Brasília, em 2000, Eri tinha paixão por esportes, mas tratava o sentimento apenas como hobbie. No entanto, após dar entrada na Rede Sarah como paciente para a remodelação do coto — parte inicial da coxa, restante da perna direita — conheceu o projeto esportivo da instituição e mudou a maneira como enxergava o passatempo.

“No meio da pandemia, fui apresentada ao projeto de esportes do Sarah. Tentei o badminton, mas acabei me apaixonando mesmo pela canoagem. Quando o Fred (professor da Rede Sarah) me colocou na canoa pela primeira vez, me apaixonei instantaneamente”, conta Erisângela. A partir daí, ela não parou mais. Após dar início à prática com seriedade, começou, aos 44 anos, a trajetória competitiva. A primeira participação foi no Campeonato Brasileiro de Paracanoagem na modalidade velocidade.

Luciano teve trajetória parecida e também lida com desafios para estar dentro da canoa fazendo o que ama. Assim como Erisângela, achou, no esporte, uma paixão. “Fui internado no Sarah e, depois de um tempo como paciente, fui apresentado ao projeto esportivo. Conheci várias atividades, como o tênis de mesa, o basquete em cadeira de rodas e a canoagem. E foi quando eu comecei a remar, que me apaixonei”, explica.

Após sair do hospital, teve contato com o projeto ‘Caiaque Comunitário’, da Universidade de Brasília (UnB) e, por ser o único local onde poderia remar sem a necessidade de pagar mensalidade, iniciou, de fato, a trajetória. “Lá, a Lucila (professora responsável) viu potencial em mim, até que cheguei ao Clube da Aeronáutica”, detalha o canoísta.
Dificuldades

As dificuldades, entretanto, são as mais variadas. Luciano se desdobrava todos os dias arduamente para chegar ao local do treino. Morador de Santa Maria, ele precisava pegar três ônibus para praticar o esporte. De pé às 4h, ia à parada mais próxima embarcar no primeiro. Descia na estação do BRT para ir à Rodoviária do Plano Piloto, e depois, acionava a terceira condução, com destino à Vila Planalto, onde ainda precisava se locomover, sob a cadeira de rodas, até o clube. Diariamente, eram duas horas para ir, e duas para voltar.

“Era uma viagem, duas vezes por dia. E isso me prejudicava. Ficava exausto, e aí acabava rendendo menos na água. Não estava dando conta de lidar com isso e comecei a procurar uma solução”, cita. Então, através da ajuda de Dona Raimunda, uma conhecida do tempo de escola, Luciano passou a morar de favor na Vila Planalto, ao lado do clube, e viu as performances melhorarem.

Erisângela explica que, apesar do desafio esportivo, os maiores percalços estão na vida pessoal. Além de atleta profissional, a caiaquista também precisa conciliar o trabalho como jornalista, na coordenadoria de rádio e televisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e a função de mãe. Eri tem dois filhos: Heitor, de 8 anos, e Nicolas, de 5. Na canoa, ela revela a necessidade de fazer valer cada minuto em que não pode estar com os amigos e com a família, assim como quando precisou fazer trabalho dobrado no serviço para ser liberada para competir. “Perdi até o meu aniversário para treinar. É tudo muito regrado, e ainda preciso dar atenção à família, aos meus filhos. Viver só do esporte ainda não é uma realidade para mim, assim como para muitos outros. Preciso me desdobrar em várias funções”, ressalta.

Acervo pessoal/ Luciano Lima - Paracanoísta Luciano Lima

Resiliência

Com tantos desafios, Erisângela revela ter alcançado a mentalidade necessária para lidar com os obstáculos, o que precisou fazer, inclusive, recentemente, devido a um dos maiores percalços da carreira na canoagem. Na véspera da participação da Copa Brasil de Paracanoagem de 2023, em Curitiba, em maio, Eri teve a canoa rasgada por um galho de árvore. O incidente foi durante o transporte dos objetos de trabalho. O ‘culpado’ pelo incidente havia sido podado e invadia a estrada por onde passava o veículo que transportava a canoa.

“A gente tentou consertar, colocou fita, mas a estabilidade fica diferente, não tinha jeito. Testei outra canoa que havíamos levado, mas as minhas adaptações e o meu banco não encaixavam nela. Precisei correr o risco de usar outra, emprestada, com a qual não estava acostumada”, relembra. 

A canoísta, no entanto, revelou ter usado uma técnica de resiliência mental ensinada pela psicóloga da equipe. Segundo ela, a terapeuta passou o entendimento de que a preocupação com situações posicionadas longe do controle da atleta não eram dignas de preocupação. “Não fazia sentido eu me preocupar com o que eu não podia resolver. Decidi, então, pensar no que eu podia controlar, que era entrar na canoa, e remar.” A tática deu certo e a jornalista ficou a apenas uma remada de distância da vitória, garantiu a segunda colocação, e a vaga para o Mundial. “Dei a volta por cima e fiz a minha melhor prova”, vibra.

Com o problema, Eri ficou sem canoa para realizar os treinamentos em Brasília. Um equipamento novo custa na faixa de R$ 15 mil. A ideia é arrecadar a quantia por meio de uma vaquinha ou de uma doação voluntária.

Esporte empoderador

Erisângela e Luciano encontraram empoderamento com o remo nas mãos e o controle total do caiaque. “Na primeira vez, não caí na água. Me senti bem, pois a maioria dos iniciantes vira. Eu amo isso. No meu primeiro campeonato, fui segunda. E, no mesmo ano, campeã Sul-Americana. É uma gratificação enorme”, compartilha com orgulho. “Me encontrei no esporte, pois passei a me sentir como eu novamente. Quando fiquei paraplégico, sentia vergonha de sair na rua e de que os outros vissem meu estado. As pessoas me viam como um coitado”, desabafou o colega.

“A vida é bela e oferece oportunidades para dar a volta por cima. Não é porque caí no chão, que não ia levantar. Então, resolvi sacudir a poeira e ir à luta”. Agora, o bi-campeão sul-americano se prepara, também, para ir ao mundial na tentativa de garantir vaga aos Jogos Paralímpicos. “Expectativa está a mil. É o mundo todo. Vamos ver, estou treinando muito”, garante.

Mariana Lins - 15/06/2023. Crédito: Mariana Lins/Esp.CB/D.A Press.Atletas Paraolimpicos,Clube da Aeronautica ,Na foto o Treinador Paulo Salomão.

O lapidador de talentos

O projeto iniciado em Brasília, causador de tantos resultados, como as conquistas de Erisângela e Luciano, por exemplo, não foram estruturados de qualquer jeito. Paulo Salomão, ex-atleta de canoagem e responsável pelas atividades no Clube da Aeronáutica, é referência da modalidade na cidade.

Além de técnico da Seleção Brasiliense de Paracanoagem é, também, presidente da Federação Brasiliense de Canoagem (Febracan) e membro do Comitê Brasileiro de Paracanoagem, e enxergou, ainda enquanto atleta, uma oportunidade de incrementar a cena da modalidade em Brasília.

“Conheci a canoagem durante uma prova e não larguei mais. Virei atleta e, depois de um tempo competindo, vi que Brasília possuía um cenário fraco na parte mais profissional do nosso esporte. Em 2015, fundei uma escolinha e comecei esse trabalho, para suprir essa falta.”

A iniciativa, porém, foi além da expectativa de Salomão. Ao juntar atletas para competir, enxergou, após um terceiro lugar na primeira etapa da Copa Brasil de 2018, e um título brasileiro na segunda etapa da competição do ano seguinte, a capacidade nas mãos de fomentar a prática na capital federal e sonhar cada vez mais alto.

“Formamos uma equipe ótima, estruturada, esforçada. Com nosso empenho diário, empilhamos títulos. Conquistamos a Copa do Brasil e por três vezes o Campeonato Brasileiro, em 2019, 2021 e 2022. Temos, também, a maior equipe da América Latina, com mais de 20 atletas federados ativos e competindo”, explicou Salomão, como é chamado entre os atletas.

Como a primeira aparição da paracanoagem nos Jogos foi em 2016, Salomão aponta o aumento do nível técnico da categoria como principal razão para a ausência de brasilienses em mundiais por tanto tempo. “Nós viemos, durante todo esse tempo, profissionalizando a paracanoagem em Brasília. Nos preocupamos em buscar auxílio físico, emocional e financeiro, por meio de patrocinadores, para poder oferecer o melhor, pois ser atleta não é fácil”, explica.

Agora, através da estrutura montada com dedicação, a vaga para o mundial foi alcançada. "Temos atletas que, às 7h, já estão na água. Eles têm tudo para ir bem no mundial e conquistar uma vaga nas Paralimpíadas”, finaliza.

*Estagiário sob a supervisão de Danilo Queiroz

Saiba Mais

Fotos: Mariana Lins/CB/D.A Press - Erisângela Toniolo conheceu a paracanoagem atráves de projeto da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação e se apaixonou à primeira vista
Acervo pessoal/ Luciano Lima - Paracanoísta Luciano Lima
Mariana Lins - 15/06/2023. Crédito: Mariana Lins/Esp.CB/D.A Press.Atletas Paraolimpicos,Clube da Aeronautica ,Na foto o Treinador Paulo Salomão.