Há nove anos, os capitães das seleções classificadas para as quartas de final da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, liam antes dos jogos um texto simpático redigido pela Fifa em uma cruzada contra o preconceito: "Rejeitamos qualquer tipo de discriminação de raça, orientação sexual, origem ou religião. Por meio do poder do futebol, podemos ajudar e livrar o nosso esporte e a nossa sociedade do racismo. Assumimos o compromisso de perseguir esse objetivo e contamos com você para nos ajudar nesta luta".
Nascido em 12 de julho de 2000, em São Gonçalo, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, e criado no bairro do Mutuá, o negro Vinicius Junior tinha 14 anos. O adolescente era uma joia da base do Flamengo. O juramento dos donos das braçadeiras na Copa poderia ter tornado o ambiente do atacante menos hostil à prática da profissão escolhida na infância. Só que não.
Vinicius Junior acaba de comprar a maior briga com o sistema do futebol desde o Caso Bosman, quando Jean-Marc Bosman peitou a Federação Belga, a Uefa e a Fifa em uma guerra silenciosa até a sentença para ter liberdade de trabalho. O engajamento pessoal revolucionou o direito do trabalhador à livre circulação na Europa e mudou radicalmente a formação dos elencos no Velho Continente. Em vez de três estrangeiros, os times passaram a contratar quantos achassem necessários.
A cruzada de Vinicius Junior é para tirar do papel os belos politicamente corretos discursos contra o preconceito no sistema do futebol. Vítima de injúria racial 11 vezes desde o desembarque na Espanha (leia página 20), a última delas domingo, na derrota do Real Madrid para o Valencia, por 1 x 0, no Estádio Mestalla, pelo Campeonato Espanhol, o atacante de 22 anos usou novamente as contas nas redes sociais para reforçar o ativismo e se comprometer com a causa.
"A cada rodada fora de casa uma surpresa desagradável. E foram muitas nessa temporada. Desejos de morte, boneco enforcado, muitos gritos criminosos... Tudo registrado", lembra. Mas o discurso sempre cai em 'casos isolados', 'um torcedor'. Não são casos isolados. São episódios contínuos espalhados por várias cidades da Espanha e até em um programa de televisão", desabafa.
Protagonista do Real Madrid na temporada, Vini continua: "As provas estão aí no vídeo. Agora, pergunto: quantos desses racistas tiveram nomes e fotos expostos em sites? Eu respondo para facilitar: zero. Nenhum pra contar uma história triste ou pedir aquelas falsas desculpas públicas", ironiza um dos candidatos a melhor do mundo nas próximas edições da Bola de Ouro e do Fifa The Best.
Vinicius Junior cobra ações imediatas do sistema do futebol. "O que falta para criminalizarem essas pessoas? E punirem esportivamente os clubes? Por que os patrocinadores não cobram La Liga? As televisões não se incomodam de transmitir essa barbárie a cada fim de semana?", questiona o texto.
Há quem apoie — ou ignore — a cruzada de Vinicius Junior. "Está claro que é mais fácil falar do que fazer, mas temos que fazer e apoiar um processo de educação", afirmou o presidente da Fifa, Gianni Infantino. Ele cobrou aplicação do Padrão Fifa nesses episódios. "O jogo é interrompido e o caso é anunciado. Os jogadores deixam o campo. O locutor anuncia que, caso se mantenham os ataques, o jogo será interrompido. O jogo é reiniciado. Se as agressões seguirem, para e os três pontos vão para o adversário."
Pressionado pela possibilidade de Vinicius Junior deixar o Campeonato Espanhol em represália aos insultos racistas. O Real Madrid acionou a Procuradoria-Geral do Estado por crime de ódio e discriminação. O presidente do clube espanhol, Florentino Pérez, se comprometeu em uma reunião particular com Vinicius Junior a ir às últimas consequências para defendê-lo e mostrou-lhe todos os passos jurídicos para preservá-lo.
Em contrapartida, dirigentes controversos como o presidente da Liga Espanhola, Javier Tebas, e o dono do Valencia, o cingapuriano Peter Lim, não se posicionam com veemência. Ambos têm personalidades polêmicas (leia quem são eles com perfil dos cartolas).