A saga do Real Brasília na temporada 2023 tem uma receita caseira. Depois da saída de Adilson Galdino, o solitário representante candango na Série A1 do Campeonato Brasileiro Feminino conta com um nome nascido na capital federal para tocar o projeto do time quinto colocado na elite no ano passado, após figurar pela primeira vez nas quartas de final.
Camilla Orlando praticamente deu a volta ao mundo até regressar ao Distrito Federal na carreira à beira dos gramados. Foi do interior de São Paulo, onde treinou o Bragantino, ao Oriente Médio, assumir a seleção dos Emirados Árabes Unidos. A comandante das Leoas do Planalto fala sobre a jornada. Ao Correio, a dona da prancheta relata as últimas experiências, cita as inspirações de vida, projeta a Copa do Mundo, trata da volta para casa e projeta o confronto contra o Athletico-PR, neste domingo (23/4), às 15h, no Estádio Defelê.
Como foi a experiência de ser técnica dos Emirados Árabes Unidos? É uma seleção que exporta jogadoras?
Foi fantástico, ainda mais por ser a minha primeira seleção, fiquei muito feliz. Depois, por conhecer a cultura árabe, que é tão diferente da do nosso país e que tem pouca informação no mundo do futebol feminino. Enquanto no masculino vários treinadores brasileiros trabalharam por lá, eu fui a primeira treinadora a ter essa oportunidade. No feminino, ainda são atletas locais, então também é uma imersão em uma cultura, de entender como elas lidam. São apaixonadas por futebol e querem que tudo dê certo, mas ainda estão no início de um processo.
Em uma realidade mais fechada, como era o dia a dia?
Era uma preocupação, mas, na verdade, a gente (no Brasil) tem pouca informação e essas nem sempre chegam por completo. É, realmente, um país mais fechado, que acaba não se expondo tanto, mas não tive problema nenhum, foi tudo muito tranquilo, uma vida muito feliz e segura. Claro que tem coisas mais internas que não entrei, por respeito e porque não me cabe questionar, em algumas situações. Dentre essas, algumas que eu via no Brasil antigamente: um pai que não apoiava a menina a jogar e não por uma questão religiosa, mas sim uma questão cultural e do machismo, que existe no mundo inteiro. O Brasil passou por isso. Eu tinha amigas que o pai não deixava jogar. A gente, quando jogava, recebia apelidos pejorativos. Dentro da cultura árabe, não vi nada de mais. Claro que tem a questão forte do casamento, que direciona, não por uma obrigação, necessariamente, mas por uma opção da menina, de seguir uma vida de casada e acaba que a prioridade passa a ser a família.
Esse cenário mais machista para chegar ao profissionalismo persiste no Brasil?
Hoje, não. Acho que a gente vem evoluindo bastante e brigando por isso há anos, mais em relação aos atletas terem o apoio dos pais. Até hoje a gente vive uma ou outra (exceção), mas melhorou porque é profissional, então agora as meninas têm uma carreira. Antigamente, se falava: "Por que você vai jogar futebol, se é amador e não tem salário?" Hoje, não, somos todas profissionais e trilhamos um desenvolvimento na modalidade, também.
Como você relembra a passagem pelo Bragantino?
É um clube-empresa muito legal de trabalhar, muito interessante. A Red Bull tem uma característica peculiar de como gerenciar todo o processo. Foi uma experiência gratificante. Vivenciar a cultura de um clube como o Bragantino, de muitos anos. A construção de uma equipe campeã foi muito engrandecedora para a minha carreira, trabalhar com atletas ainda em projeção foi algo interessante. A conquista primeiro do acesso e coroar com o título da Série A2 (do Brasileiro) foi muito especial.
O fato de você ser de Brasília motivou a volta para casa no Real?
Com certeza. Sempre lutei pelo desenvolvimento do futebol feminino de Brasília como atleta, sempre tive muito orgulho de representar a cidade. Até mesmo fora fazia questão de compartilhar de onde eu vinha, porque, às vezes, a visão é um pouco diferente e Brasília tem muitos talentos. Hoje, fico muito feliz. Quando soube que o Real surgiu, eu já estava fora da cidade, na época, mas fico muito feliz de ver um clube profissional dando uma oportunidade de Brasília estar na maior divisão do Campeonato Brasileiro Feminino. Sem dúvida, pesou bastante. Na verdade, calhou de tudo acontecer no tempo certo, mas, com certeza, estou muito feliz de estar aqui.
Você chegou em um momento não tão fácil, mas com bastante campeonato pela frente. Veio com alguma meta proposta para a equipe ou para você mesma?
O que propus é realmente conseguir colocar o clube e as atletas onde elas merecem. É um grande elenco, com jogadoras de altíssimo nível, qualificadas, que jogaram em outros países, passaram pela Seleção, e que subiram o Real para a primeira divisão. Elas merecem todo esse respeito. A ideia é de conseguir isso com muito trabalho e união para dar esses passinhos acima e sair desse momento em que estamos vivendo.
Como vê o jogo contra o Athletico-PR?
Vai ser um jogo bem duro. São os nossos adversários diretos, com a mesma pontuação. É um jogo fundamental, muito importante, sabemos disso e estamos felizes de fazer esse jogo em casa. Poder jogar com a estrutura e com a torcida são fatores que a gente tem que usar a nosso favor. Em uma partida de futebol é tudo muito imprevisível, mas o que a gente pode é tentar aproveitar essas oportunidades e fazer uma grande atuação e isso ser revertido em três pontos.
O que te inspira na carreira como técnica?
Sou ex-atleta e naquele momento eu vi que a gente poderia ter um respeito maior com as comissões técnicas e um incentivo maior na nossa formação, na nossa trajetória, não só como jogadora, mas como ser humano. Não quero falar mal, tive grandes treinadores, que me inspiraram muito e me ajudaram dentro do processo, mas vi que dava para ir mais, para ser mais profissional, para ter mais oportunidades. Então, o que mais me inspira é fazer tudo o que eu gostaria que tivessem feito por mim. É o que eu tenho feito pelas atletas, pelo clube e pelo futebol, dando o meu melhor, representando o meu lugar e o meu país. É o que tenho tentado fazer de grande, além de devolver tudo o que o futebol me deu: todas as minhas conquistas foram por meio do futebol, então o que eu posso fazer é dar o meu melhor de volta para o jogo.
Pia Sundhage é um espelho para você?
Com certeza. É uma grande inspiração, assim como outras treinadoras brasileiras, a Emily (Lima) e a Tatiele (Silveira) são mulheres que me inspiram, com conquistas, mas, sem dúvida, a Pia é uma das grandes do futebol feminino. Esteve entre as melhores treinadoras do mundo, disputou todas as Copas do Mundo e Olimpíadas, como atleta e como técnica, então ela é a história do futebol feminino. Nas oportunidades que tive de falar com ela, aproveitei para aprender um pouco e, claro, assistindo aos jogos dela, à forma dela pensar e imaginar as estratégias que ela utiliza no dia a dia.
Como você vê o Brasil no desafio do título inédito da Copa do Mundo?
A gente tem tudo para brigar entre as melhores do mundo e vejo que isso está acontecendo. Acho que essa última convocação mostrou a força do Brasil, que vem se desenvolvendo. É um trabalho, não tem como querer que uma árvore floresça em um dia: precisa de alguns anos, precisa enraizar alguns conteúdos, alguns princípios de jogo. Acho que a Pia tem feito isso muito bem, com uma boa resposta em campo. Vejo um grupo de atletas com respeito total às ideias de jogo e isso é muito importante em um grupo que está preparado para vencer, com jogadoras que vêm com uma formação melhor, por mais tempo, com base e campeonatos, então a gente torce para que seja o momento do Brasil, sem dúvida nenhuma.
Quais seleções considera como favoritas ao título mundial?
Os Estados Unidos, como maior vencedor do mundo, são muito fortes, assim como acredito que a França venha, a própria Inglaterra, com quem fizemos um amistoso (Finalíssima) em um jogo muito bom, muito parelho. A Alemanha é um time forte e brigador, mas mostramos (com vitória por 2 x 1 em amistoso) que a gente pode brigar com essas seleções. Vale olhar a Espanha e Portugal também, apesar desta participar pela primeira vez. Lá, do outro lado (do mundo), a Austrália, sede da Copa, tem tudo para fazer uma grande competição, além do Japão, que é outra seleção que observo bem.
*Estagiário sob a supervisão de Marcos Paulo Lima
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