A forma característica de mover os braços e o ritmo cadenciado pelo bumbo rapidamente contagiam a atmosfera dos estádios. Nas arquibancadas, o branco e o celeste são sempre dominantes. De olhos fechados, o Estádio Icônico de Lusail faz lembrar Núnez: "Estamos jogando em casa", sorriu Dibu Martínez. A frase de um dos grandes goleiros desta Copa do Mundo pode soar como demagogia, mas tem razão de ser. Pelas ruas do Catar, a "invasão" argentina chama a atenção há quase um mês - e tem se intensificado à medida que a seleção aumenta a esperança pelo sonhado tricampeonato.
Moradores da Argentina compraram mais de 60 mil ingressos para o Mundial, segundo a Fifa. Estima-se que pelo menos 20 mil nascidos por lá estão no Catar neste momento. Muitos deles vieram sem entrada garantida nos estádios, mas com a esperança de viver um momento histórico para o país, que não conquista a Copa do Mundo desde 1986.
Atravessar o oceano e chegar ao Oriente Médio, porém, não tem sido uma tarefa nada simples para muitos. "Fazemos loucuras para estar aqui. Hoje em dia, com a situação do país e o câmbio, é muito, muito difícil para nós", diz Adrian Vicário, torcedor do Boca Juniors, que saiu de Buenos Aires para apoiar a seleção no Catar.
Há relatos de quem tenha vendido carro e até mesmo apartamento para acompanhar a Copa do Mundo. A Argentina vive uma grave crise econômica, ao passo que o Catar realiza o Mundial mais caro da história - tanto para os torcedores, quanto em termos de investimento em infraestrutura. Passar dez dias no país custa pelo menos R$ 30 mil, considerando estadia, alimentação, passagem aérea e ingressos.
Para driblar as barreiras financeiras, muitos argentinos têm se hospedado em Barwa, uma área nas redondezas de Doha onde foram construídos prédios que futuramente servirão de moradia para trabalhadores imigrantes. São apartamentos padronizados, de custo mais baixo e infraestrutura básica, que também serviram de abrigo para muitos brasileiros durante a estadia no Catar.
A aventura para acompanhar de perto o Mundial é uma das mostras de que a relação dos argentinos com o selecionado nacional é bem particular. Há uma paixão intensa que se vive na pele, com tatuagens em referência a ídolos como Maradona e Messi, e nas vozes, com as tradicionais músicas que grudam na cabeça.
"A grande diferença é esta: a paixão, o sentimento. Há muitos países na América do Sul que tentam imitar os cantos, mas não sai de dentro, não sai do coração. Somos assim, apaixonados pelo futebol e pelo país, porque falamos de Maradona, falamos das Malvinas. Por isso soa diferente do resto do mundo", disse, sorridente, Adrian Pablo De Reatti, torcedor do River, também morador de Buenos Aires.
Ao contrário da maioria das torcidas, são muitas as canções que embalam a equipe. E todos as conhecem - da menininha de 12, 13 anos, que se empolga com a festa no metrô a caminho do estádio, ao senhor que se lembra dos tempos áureos da década de 1980.
Ir a um jogo da Argentina nesta Copa do Mundo é ter a certeza de que as canções repetidas à exaustão por uma torcida que não se cala nem um minuto lhe acompanharão na cabeça até a hora de dormir. O maior hit no Catar é "Muchachos, Ahora Nos Volvimos a Ilusionar" ("Garotos, Agora Voltamos a Sonhar", em tradução livre para o português).
A música provoca o Brasil pela derrota na Copa América de 2021, no Maracanã, e faz menção a Messi, Maradona e à Guerra das Malvinas, conflito perdido pelos argentinos contra a Inglaterra. Foi eleita pelo próprio camisa 10 como a composição favorita feita pela torcida.
Mas as vozes que "alentam" a Scaloneta nem sempre ecoam naquele castelhano platense, com o característico chiado de Buenos Aires. Pelas ruas da capital Doha, as camisas alvicelestes se multiplicam também entre pessoas nascidas em outros países, como Índia, Paquistão e Bangladesh.
Ao lado do Brasil, a seleção de Messi é uma das preferidas dos imigrantes, que compõem 70% da população de menos de 3 milhões de habitantes do Catar. Isso ajuda a explicar o domínio da Argentina nas arquibancadas em estádios para até 88 mil torcedores.
Barras
"Nossa torcida canta os 90 minutos, é uma loucura, não pára nunca", gritou um torcedor na saída do Estádio Icônico de Lusail, após o show - em campo e nas tribunas - na vitória por 3 a 0 sobre a Croácia. A intensidade alviceleste nas arquibancadas, porém, não se explica unicamente pela paixão de todo um povo. Alguns dos regentes da banda são bem acostumados a frequentar arquibancadas em jogos de clubes na Argentina.
Quem acompanha de perto o futebol local identificou mais de uma centena de barras bravas (integrantes de torcidas organizadas) nos estádios do Catar. Há torcedores ligados a gigantes como Boca Juniors, River Plate e Racing, mas também se fizeram presentes "hinchas" de clubes de menor expressão (Argentinos Juniors, Huracán, Chicago, All Boys, Atlanta, Belgrano).
A meses de a bola rolar, a Argentina fez um movimento político para evitar que torcedores com histórico de violência fossem ao Mundial. O governo do país sul-americano queria uma Copa sem barras. Para isso, o Ministério de Segurança enviou a autoridades catari uma lista com dados de mais de 6 mil argentinos e sugeriu que a eles fosse negado o Hayya Card, uma espécie de visto obrigatório para entrar no Catar no período de competição.
Metade dos "proibidos" são barras, enquanto a outra metade tem no histórico algum tipo de delito - nos estádios argentinos ou fora deles. Segundo a imprensa da Argentina, o entendimento do governo é de que fez sua parte ao enviar a lista. Dali em diante, a responsabilidade seria do Catar, que teve na segurança um dos pontos de maior atenção durante a organização da Copa.
Até aqui, não há relatos públicos de nenhum tipo de problemas sérios com nenhuma torcida do Mundial. Durante os jogos, foi possível ver algumas situações que incomodam parte dos seguranças - como quando os argentinos tiram a camisa para torcer, sobem em bancadas ou se amontoam atrás dos gols fora dos assentos previamente marcados -, mas nada que tenha de fato atrapalhado o espetáculo. Agora, eles se preparam para o grand finale.