Doha — Com o corpo todo coberto de preto e uma bolsa bege a tiracolo, Ekra Akter posa sorridente para uma foto em frente ao Estádio Internacional Khalifa. É uma rara tarde de sol coberto por nuvens quase transparentes na quente e cinzenta Doha. O celular apontado para ela está nas mãos de Raisul Islam, seu companheiro de longa data desde antes de se mudarem de Bangladesh para o Catar. Juntos, estavam a caminho das arquibancadas da imponente arena para quase 50 mil torcedores para assistir ao jogo decisivo entre Senegal e Equador, pelo Grupo A da Copa do Mundo. Ekra é só uma das milhares de mulheres que, de diferentes maneiras, participam do primeiro Mundial de futebol no Oriente Médio.
Ao notar a aproximação tímida, Raisul é receptivo. Ele veste uma calça social preta, uma camisa gola polo branca e aproveita o tempo ameno para deixar os óculos escuros escorados acima da cabeça. Assim que ouve do que se trata aquela abordagem, toma a dianteira da conversa e gesticula, enquanto a esposa desvia o olhar.
Raisul escuta o pedido de entrevistar Ekra sobre a participação feminina no maior evento do futebol mundial e gentilmente se dispõe a traduzir a resposta da mulher, que, segundo ele, não fala inglês. Depois que a pergunta é feita, ele troca umas poucas palavras com a esposa, fala longamente a resposta dela e se posiciona pelo casal. "Ela diz que tudo está bem. Na verdade, tudo é muito bom aqui no Catar. Nós vivemos há 15 anos aqui, estamos confortáveis e não temos problemas. Então, nós estamos confortáveis com isso no Catar", diz.
O encontro com os dois é simbólico nos mais variados aspectos da relação entre masculino e feminino para além do Oriente Médio, mas evidentemente não sintetiza a complexidade das funções desempenhadas pelas mulheres durante a Copa. Mais timidamente ou não, elas estão nas arquibancadas, em funções administrativas, entre os voluntários, seguranças e em campo.
O Catar tem menos de 3 milhões de habitantes, dos quais cerca de 350 mil são nativos. Em um país formado majoritariamente por imigrantes (70%), o papel socialmente atribuído às mulheres é uma grande área cinzenta. Há desde as famílias mais liberais, com regras menos rígidas, até aquelas ditas tradicionais, em que a religião cumpre função impositiva, que vai muito além da vestimenta.
A sharia, lei islâmica, tem interpretações e aplicações variadas em diferentes locais. O Wahhabismo Sunita é o fundamentalismo mais representativo no Catar, onde vigora um sistema de tutela masculina. Em resumo, as mulheres precisam de uma autorização formal de um homem para inúmeras decisões, como casamento, divórcio, viagens, estudo no exterior. Também é exigida aprovação para exames ginecológicos e tratamento de saúde reprodutiva. O tutor pode ser pai, irmão, tio, padrinho ou marido.
Relatório cita risco de violência
Em relatório da ONG Human Rights Watch (Observatório de Direitos Humanos, em português) publicado em 2019, a pesquisadora Rothna Begum escreveu que "a tutela masculina reforça o poder e o controle dos homens sobre a vida e as escolhas das mulheres e pode encorajar ou fomentar a violência pela família ou por seus maridos".
No mesmo documento, pontua que o sistema de guarda entra em contradição com a Constituição catari. "É uma mistura de leis, políticas e práticas em que as mulheres adultas devem obter permissão de seu responsável masculino para atividades específicas", publicou a HRW.
O relatório acumula relatos de mulheres que sofreram algum tipo de impedimento ou abuso em função do sistema. Em resposta, o governo do Catar afirmou que os relatos fogem do que prevê a Constituição e prometeu investigar os casos e punir infratores. "O empoderamento feminino é fundamental. No Catar, as mulheres ocupam papéis de destaque em todos os aspectos da vida, incluindo a tomada de decisões políticas e econômicas", defendeu a administração do país.
"O Catar lidera a região em quase todos os indicadores de igualdade de gênero, incluindo a maior taxa de participação da força de trabalho para mulheres, remuneração igualitária no setor governamental e o maior percentual de mulheres matriculadas em programas universitários", completou. Efetivamente, há movimentos de busca por igualdade no Catar e as mulheres, ainda que em menor número, têm passado a ocupar mais posições de poder.
Território de transformações
O ambiente masculino e machista do futebol se reproduz em proporções maiores na Copa do Mundo. Há mulheres como torcedoras nos estádios, mas em pequena quantidade. "Eu chamei a minha esposa para vir, mas ela achou que é um país meio complicado para mulher. Ela queria vir, mas achou melhor não", relata Denilson Ribeiro de Santana, 48, mineiro de Itaúna, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Entre os jornalistas que cobrem a Copa, raríssimas são as vozes femininas — sintoma da desigualdade de gênero que afeta o mundo inteiro. Ainda que em número inferior aos homens, há mulheres na segurança dos estádios, no programa de voluntários e na arbitragem. "Esta é a primeira Copa do Mundo com mulheres na arbitragem, certo? Não aconteceu nos Estados Unidos, não aconteceu no Ocidente, está acontecendo no Oriente Médio. Acho que isso fala por si só", defendeu Índigo Salah, muçulmana que vive em Londres e está no Catar para acompanhar a competição.
"Eu penso que as mulheres têm sido envolvidas em cada aspecto da preparação e do planejamento para a Copa do Mundo. Acho que isso é evidente, porque tem mulheres em cada atividade que você vai. Acho que fizeram uma escolha consciente para ter certeza de que as mulheres estejam envolvidas. Então, é legal ver isso", corroborou Fati Salah, britânica com origem nigeriana.
Entre as brasileiras, é clara a percepção de que as expectativas sociais são diferentes em relação ao Brasil. Kellen Lima, Carol Calmon e Lelia Lacerda saíram do Rio de Janeiro para viver da música em Doha. A convite da Fifa, elas têm tocado canções do Brasil em frente aos estádios nos momentos que antecedem os jogos.
"É bem diferente do Brasil, é claro. Em muitos casos, até é tranquilo usar a roupa que quero, com decote, mais curta por causa do calor. É claro que em alguns lugares eu prefiro evitar, como o Souq Waqif (mercado tradicional da cidade), por exemplo, porque não seria bem visto", disse Kellen, após cantar um samba, minutos antes de Argentina e México se enfrentarem.
Iranianas protestam e celebram
No Mundial, a participação feminina virou o centro da discussão nos jogos do Irã. Proibidas por lei de irem aos estádios no país onde nasceram, as iranianas compareceram em peso nas partidas da fase de grupos da Copa do Mundo. Nos arredores de Al Thumama, muitas andavam sorridentes, de rosto pintado com as cores da bandeira. "Estamos aqui para celebrar e protestar", disse uma delas, que saiu correndo antes de dizer o nome, porque estava atrasada para o duelo decisivo contra os EUA.
As manifestações iranianas são contra a supressão de direitos das mulheres no país. Jogadores da seleção chegaram a não cantar o hino em forma de protesto. O tema ganhou força especialmente como reação ao caso de Mahsa Amini, que apareceu morta aos 22 anos após ser presa por "uso inadequado" do véu islâmico. Cerca de 380 pessoas morreram desde que as manifestações começaram, em setembro, de acordo com a Iran Human Rights Watch.
Nas arquibancadas, torcedores vaiaram o hino do país no primeiro jogo. As bandeiras iranianas estavam exibidas lado a lado de cartazes e faixas com dizeres em defesa da vida e da liberdade feminina, em mensagens que se aplicam para além do Golfo Pérsico.