Em nome da dignidade

Oito anos depois de expulsar o Grêmio da Copa do Brasil por ato racista de torcedora, o futebol nacional lida com possível discriminação dentro de campo. Perícia de leitura labial avaliará, a partir de hoje, a denúncia de injúria feita por Edenilson

Em 2014, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) surpreendeu ao tomar a decisão mais contundente na história do combate ao racismo: excluiu o Grêmio da Copa do Brasil por unanimidade (5 x 0) nas oitavas de final devido às injúrias raciais da torcedora tricolor Patricia Moreira contra o goleiro negro Aranha, do Santos, na Arena, em Porto Alegre. Oito anos depois, a medida educativa se mostra inócua. As injúrias continuam dentro e fora das quatro linhas. A última delas foi denunciada no empate de sábado, por 2 x 2, entre Internacional e Corinthians, no Beira-Rio. O volante colorado Edenilson acusa o lateral-direito português Rafael Ramos de tê-lo chamado de "macaco" na etapa final da partida.

O caso foi parar na 2ª Delegacia de Polícia Civil da capital gaúcha. Está aberto o inquérito. A delegada Ana Luiza Caruso acionou o Instituto Geral de Perícias (IGP) para a realização de leitura labial a fim de avaliar as imagens do momento em que Rafael Ramos se dirige a Edenilson. "Foram ouvidos tanto os envolvidos como o árbitro (Braulio da Silva Machado). Vamos contar com a perícia para ver se consegue fazer a leitura labial para dar seguimento ao inquérito. Em pouco tempo, teremos a finalização dele, remetendo ao Judiciário", explicou a delegada em entrevista à Rádio Gaúcha.

O episódio aconteceu por volta dos 30 minutos do segundo tempo. Nas imagens da transmissão do Premiere não é possível detectar nenhuma manifestação de Rafael Ramos em direção a Edenilson. Preso em flagrante no vestiário do Beira-Rio, o lateral alvinegro pagou fiança de R$ 10 mil em espécie e foi liberado no início da madrugada de ontem. O jogador, inclusive, viajou com a delegação do Corinthians para Buenos Aires. O Timão enfrentará o Boca Juniors, amanhã, no Estádio La Bombonera, pela quinta rodada da da fase de grupos da Libertadores.

"Por nós, da Polícia Civil, o atleta do Corinthians não será mais chamado, em princípio. Ele depôs e não temos mais interesse em ouvi-lo. O Judiciário talvez o chame. Vamos distribuir o inquérito para a 14ª Vara Criminal, que fica responsável por tudo que ocorre dentro dos estádios. Então, possivelmente, ele pode ser chamado. Mas isso não o impede de continuar jogando nas competições. Pode ser ouvido, inclusive, em outro Estado, por meio de uma carta precatória. Não tem a obrigatoriedade de aguardar em Porto Alegre", esclarece a delegada Ana Luiza Caruso.

Versões

Enquanto os investigadores trabalham, há uma guerra de narrativas. Embora tenha recebido Rafael Ramos no vestiário e conversado com o suposto agressor depois da partida, Edenilson sustenta a denúncia e registrou a queixa. "Eu sei o que ouvi, realmente eu não reagi provavelmente da forma que deveria, pois foi a primeira vez que isso aconteceu comigo e me incomoda o fato de ficar chamando atenção de outra forma que não seja jogando futebol", escreveu no perfil pessoal nas redes sociais.

O capitão do Inter esperava pela retratação, porém diz que isso não aconteceu. "Eu procurei o atleta para que ele assumisse e me pedisse desculpas, afinal, todos erramos e temos direito de admitir, no meu modo de ver as coisas. Mas o mesmo (Rafael Ramos) continuou a dizer que eu havia entendido errado. Eu não entendi errado, o procurei pelo respeito que tenho por alguns integrantes do Corinthians e para que ele pudesse se redimir".

Em nota oficial, o Internacional manifestou-se em defesa de Edenilson. "Mais uma vez, um lamentável caso de racismo é registrado no futebol nacional. Desta vez, em nossa casa, contra um jogador do Internacional. É inadmissível que ainda ocorram fatos desse tipo em 2022, não há espaço para o racismo em nossa sociedade. O Clube do Povo reitera que repudia todo e qualquer ato de preconceito e apoia o seu atleta", diz o texto.

No Corinthians, Rafael Ramos reforça a versão de que não cometeu injúria racial. "Estou com a consciência e cabeça limpa para explicar o que aconteceu. Foi puramente um mal entendido entre mim e o Edenilson. No fim do jogo, estive com ele e tivemos uma conversa tranquila. Expliquei o que tinha acontecido. Ele explicou o que realmente entendeu, que não é verdade. Eu expliquei a verdade daquilo que eu tinha dito. Foi isso que aconteceu. Ele mostrou receio de se passar por mentiroso, e aí eu falei que ele não é um mentiroso, apenas entendeu as palavras erradas. Apertamos a mão e desejei-lhe boa sorte", declarou.

O árbitro catarinense Bráulio Machado registra na súmula da partida que nenhum dos lados atestou o episódio. "Aos 31 minutos do segundo tempo, no momento em que a partida estava paralisada, fui informado por Edenilson que seu adversário, Rafael Antônio Figueiredo Ramos, havia proferido as seguintes palavras para ele: 'Foda-se, macaco'. Chamo os jogadores para relatarem o ocorrido. Edenilson confirma. Rafael Ramos nega e diz ter proferido 'foda-se, caralho'. Devido a distância dos atletas e o barulho da torcida, nem eu, nem outro integrante da equipe de arbitragem consegue ouvir ou perceber qualquer das palavras citadas. Então dou continuidade à partida", relata.

Gerson

A denúncia de Edenilson se assemelha à do volante Gerson. Em 20 de dezembro de 2020, o então volante do Flamengo acusou o colombiano Ramirez, do Bahia, de dizer "cala boca, nego", na partida disputada no Maracanã pelo Campeonato Brasileiro. As câmeras de transmissão também não captaram as ofensas que teriam sido ditas contra ele. Atual técnico do Inter, Mano Menezes minimizou e acusou Gerson de "malandragem".

À época, os auditores do
STJD poderiam ter tomado atitude histórica se a injúria racial fosse comprovada. No entanto, estavam em recesso para as festas do fim do ano. Houve atraso na análise. O caso se estendeu até 3 de fevereiro de 2021. Gerson nem a testemunha, o zagueiro Natan, compareceram ao STJD para depor e esvaziaram a denúncia.