Tóquio — A gritaria durante a comemoração foi tanta que Maria Clara precisou se explicar para um policial: “Minha namorada é campeã olímpica! Foi mal, foi mal”. O barulho naquele edifício do Rio de Janeiro — que enfureceu os vizinhos — era o perfeito contraste com o que se podia ouvir no Parque Marinho de Odaiba, em Tóquio, quando Ana Marcela Cunha cruzou a linha de chegada para conquistar o tão aguardado ouro na maratona aquática. O silêncio da prova sem público, medida adotada por conta da covid-19, foi interrompido timidamente pelos festejos da nadadora e a equipe que a acompanhava na noite de terça-feira (manhã de ontem no Japão).
Não que a comemoração dos brasileiros na capital japonesa tenha sido desanimada. Pelo contrário. Foi quase um desabafo de uma atleta que, aos 29 anos e após o quarto ciclo olímpico, finalmente conquistou o ouro que faltava na impressionante galeria de 11 medalhas em Campeonatos Mundiais de Esportes Aquáticos.
“Sempre acreditei nos meus sonhos. Mesmo não ganhando medalha em 2008, não me classificando em 2012 e sendo uma decepção para muitos brasileiros em 2016, sempre acreditei naquilo que estava guardado para mim. São 13 anos de espera. E medalha representa muito para mim”, comemorou.
Sem público, a mais nova campeã recebeu o apoio da equipe brasileira e as palmas dos voluntários. E assim tem sido em quase todas as instalações esportivas dos Jogos Olímpicos de Tóquio. A presença de torcedores foi liberada apenas em alguns eventos fora da capital.
Tinha gente nas arquibancadas do Estádio de Miyagi durante as partidas de futebol. A maioria eram crianças convidadas, sempre com a teórica obrigação de manter o distanciamento social e usar máscara. Por lá, apenas 10 mil ingressos foram disponibilizados. Poucas pessoas se interessaram. Somados, os públicos dos 10 jogos chegam a 30 mil pessoas — apenas 60% da capacidade (49 mil).
Por temor ao coronavírus, os organizadores estabeleceram uma espécie de “manual” para os torcedores — quando ainda havia a intenção de permitir a ocupação de até 10% das arenas. O documento estabelece algumas regras sobre o comportamento de quem fosse às competições. Tem que usar máscara e manter o distanciamento social. Não pode gritar. O incentivo aos atletas têm que vir das palmas.
Mesmo com o veto à venda de ingressos, as regras do manual foram mantidas e exibidas diariamente em placas e nos telões das arenas. A organização sabia que não haveria público externo, mas não conseguiria evitar a presença de torcedores. É o que se tem visto em quase todas as instalações olímpicas espalhadas por Tóquio.
Protocolo
Comissões técnicas, dirigentes dos comitês olímpicos nacionais e internacional, jornalistas, assessores, patrocinadores, políticos e atletas estão nas tribunas. Em cada modalidade, o perfil do torcedor é distinto.
Na região de Ryogoku, quase um museu a céu aberto numa das áreas mais tradicionais de Tóquio, fica a Kokugikan Arena. Monumentos espalhados pelo caminho rememoram Tokugawa Ieyasu, o primeiro xogum do Xogunato Tokugawa, e a Ponte Kototoi, cenário da devastação causada por uma bomba lançada pelos EUA durante a Segunda Guerra (em 1945), dão o tom do simbolismo do local, templo do sumô japonês. Mas o misticismo da arena foi ressignificado ao ser utilizada pelo boxe nos Jogos Olímpicos.
As conquistas de medalha de Beatriz Ferreira e Abner Teixeira foram embaladas pelo funk da caixa de som levada pelo treinador Leonardo Macedo e as orientações da equipe técnica. “Consigo ouvir. A gente tem essa facilidade por ter uma equipe olímpica permanente, então a gente se conhece bem. Está todo mundo trabalhando no dia a dia, então todo mundo sabe o que o outro faz. Nada melhor do que quem conhece a gente dar um toque para executar lá. Eu consegui escutar perfeitamente todos eles. É a confiança”, declarou a lutadora.
A cada luta, o espaço — o mais barulhento dos visitados pelo Correio em Tóquio — ganha as características dos países dos lutadores. “Set the tone, Tiger” (“comande a luta, Tigre”), gritaram, das arquibancadas, os torcedores do estadunidense Johnson “Tiger” Delante, derrotado pelo cubano Roniel Iglesias. O revés dos EUA no ringue se reproduziu nos assentos, e o inglês deu espaço ao castelhano com o anúncio do resultado.
Do outro lado, o silêncio
O barulho de algumas modalidades contrasta com o silêncio em esportes coletivos. Como todos estão em ação nas partidas, não sobram atletas de outras categorias para incentivar nas arquibancadas. Na natação, aqueles que disputaram, por exemplo, os 50m livre feminino, os 1.500m livre masculino e os revezamentos 4x100m livre em 30 de julho podiam chegar mais cedo para apoiar Bruno Fratus na busca pelo bronze nos 50m livre masculino, primeira prova do dia.
Por outro lado, no Estádio Nacional Yoyogi e na Arena Ariake, é possível ouvir, das tribunas de imprensa, o que dizem jogadores e treinadores nas quadras. “Faz a falta, faz a falta, p***”, gritavam do banco de reservas as jogadoras do handebol brasileiro no jogo contra a França, revés crucial para a desclassificação ainda na primeira fase.
No vôlei, a estrela é o DJ Stari, austríaco que sonoriza as partidas e conquistou a torcida do Brasil. Mas no confronto com a Seleção nas quartas de final de ontem do feminino, as jogadoras russas que estavam na reserva eram as torcedoras. Em todos os saques do time, batiam palmas e gritavam “ace, ace” ou outros cânticos incompreensíveis para quem não sabe a língua. Em resposta, os integrantes do Comitê Olímpico do Brasil (COB) da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) nas arquibancadas responderam: “Lê, leleô, leleô, leleô, Brasil!”.
Há, ainda, um outro fenômeno curioso nos Jogos de Tóquio. Em disputas de surfe, vôlei de praia, skate e canoagem — muito acompanhadas pelos brasileiros na tevê —, as arquibancadas ficaram vazias o tempo quase todo. Em alguns momentos, nem os jornalistas ocupavam os espaços reservados para a imprensa. O motivo não era um suposto desinteresse pelo evento, mas o fortíssimo sol que persiste desde o início dos Jogos.
A medalha de prata de Rayssa Leal, por exemplo, foi conquistada com uma sensação térmica superior a 40ºC no Parque de Esportes Urbanos de Ariake. Mais gente acompanhou o ouro de Ítalo Ferreira no surfe da sala de imprensa, com ar condicionado e boa visão para a prova, do que das raras tribunas disponíveis, todas longe do mar. A festa com o título olímpico na Tsurigasaki Surfing Beach foi grande, mas só de uns 15 a 20 repórteres e oficiais do Comitê Olímpico Brasileiro (COB). Barulho mesmo se ouviu em Baía Formosa, no Rio Grande do Norte, onde o surfista nasceu. (JVM)
Até Biles foi pra galera...
Os Jogos Olímpicos possuem eventos considerados de “alta demanda”. Portanto, há limite até para a quantidade de jornalistas presentes. A organização distribui ingressos para esse tipo de competição. São os casos das finais da natação, atletismo e ginástica artística, que ocorrem em algumas das maiores instalações esportivas da Olimpíada de Tóquio.
Por isso, nessas disputas, foi possível ver pela televisão a presença de mais pessoas e um ambiente ligeiramente mais parecido com o de tempos pré-pandemia. As finais do trio de ferro das modalidades nos Jogos foram muito visitadas também pelos atletas. Estrela do esporte mundial, a estadunidense Simone Biles pulava e gritava nas arquibancadas do Centro de Ginástica de Ariake em incentivo às compatriotas que se apresentavam.
Do outro lado das tribunas, jornalistas-torcedores batiam palmas ritmadas para Rebeca Andrade encantar e conquistar a medalha de prata no individual geral da ginástica ao som do funk Baile de Favela, do MC João. “Ouvi as palmas. Me deu muita força, é muito importante, porque é bom quando você vê que o público está gostando do que você está fazendo, sabe? A arbitragem vê que as pessoas gostam e curtem também, o que é muito importante”, afirmou a brasileira, depois da final do solo.
No suntuoso Estádio Olímpico, umas poucas centenas de pessoas vibraram, ontem, em momentos marcantes. Havia mais gente do lado de fora na fila para posar com os anéis olímpicos do que dentro da arena com capacidade para quase 70 mil torcedores. A maior prova dos 400m com barreiras da história — que terminou com o bronze de Alison dos Santos, o “Piu”, e tempos inacreditáveis dos corredores — deixou os presentes atônitos ainda pela manhã.
Já passava das 22h no Japão quando o sueco Armand Duplantis arrancou mais suspiros dos jornalistas e atletas que continuavam no local após um longo dia de competições. As outras disputas haviam acabado e só “Mondo” continuava em ação, na tentativa de superar os 6,19m — o que significaria um novo recorde mundial no salto com vara. Ele não conseguiu, mas protagonizou o segundo momento de maior exaltação do público naquela disputa.
O primeiro foi proporcionado pelo brasileiro Thiago Braz, que saltou 5,87m e conquistou a medalha de bronze. Em 2016, no Rio de Janeiro, ele contou com o apoio do Engenhão lotado para surpreender o francês Renaud Laviellenie. Desta vez, teve de se contentar com a motivação interna. “A torcida brasileira são outros quinhentos. Se pudesse ter público, seria muito legal, muito mais inspirador, mas acho que a mágica dos Jogos Olímpicos não deixou de acontecer”, disse. (JVM)