Visão Olímpica (Coluna)

Nas ruas de Tóquio, carregar o símbolo olímpico pode não ser boa ideia

Voluntários vestem duas camisas no calor de 34ºC para não expor a marca dos Jogos nas ruas e evitar retaliações da população

Havia apenas uma possibilidade oficial de sair da bolha olímpica durante os primeiros 14 dias em Tóquio. Para isso, era preciso assinar um documento que listava uma série de regras: não conversar, não beber, não tirar a máscara, evitar qualquer tipo de contato com outras pessoas e cumprir rigidamente as 70 páginas do protocolo estabelecido pela organização.

Era noite no meu 14º dia na capital japonesa. A partir do 15º, poderia, enfim, viver a vida real, ainda que parcialmente. A ansiedade por visitar outros espaços que não as instalações de competição da Olimpíada me fez aceitar a série de regras e participar do tour oferecido à imprensa.

“Reforçando: vocês não podem se comunicar com as pessoas normais”, avisou insistentemente uma das guias - ou vigilantes - do passeio. Nós, os visitantes anormais, tínhamos 30 minutos para conhecer e fotografar o caldeirão olímpico, aceso na Cerimônia de Abertura, há dez dias.

Com uma braçadeira amarela que nos distinguia dos demais, partimos ao local num grupo com dez pessoas em um ônibus com capacidade para 40. Tudo para manter o distanciamento social em tempos de COVID-19. Antes da saída, as guias registraram no papel onde cada visitante estava sentado. Nem aqueles que trabalham juntos e dividem outros espaços podiam ficar em poltronas lado a lado.

No caldeirão, dezenas de pessoas se juntavam para fotografar, de longe, o símbolo dos Jogos Olímpicos. Guardas com placas e apitos insistiam para que ninguém ficasse muito tempo por lá e, é claro, desrespeitasse o distanciamento.

Nós tivemos acesso privilegiado ao local e conseguimos nos aproximar mais da chama, sempre com cavaletes nos separando dos “normais” e vigilantes nos acercando para que o protocolo fosse cumprido à risca.

“Liberdade”

A visita em si não foi exatamente o sonho turístico de quem vai ao Japão pela primeira vez. Mas, ao menos, permitiu antecipar o que viria na manhã seguinte, segunda-feira, meu 15º dia no país. Foi como, finalmente, chegar a Tóquio.

Com seguidos exames de COVID-19 negativos, nós podemos utilizar o metrô a partir da terceira semana no Japão. Foi um misto de liberdade e preocupação, já que fazia quase dois anos que eu não pegava transporte coletivo - em Belo Horizonte, trabalho em home office e tenho cumprido o isolamento social durante a pandemia.

O silêncio do metrô cheio de Tóquio às 20h contrasta com a linha de ônibus que costumava pegar por volta das 19h na capital mineira. Por aqui, não há catracas. O passageiro cumpre um acordo de confiança, em que passa o cartão ou o celular nas leitoras localizadas em entradas e saídas de estação.

Por precaução, retirei a credencial olímpica do pescoço. Embora os Jogos Olímpicos sejam acompanhados diariamente na TV por mais de dois terços da população japonesa, a realização do evento durante a pandemia é criticada pela maioria.

Ostentar o símbolo da competição não pareceu uma boa ideia, especialmente após ouvir relatos de um voluntário. Ele (que terá a identidade preservada) afirmou que japoneses que se voluntariaram para auxiliar na realização dos Jogos Olímpicos têm sofrido retaliações públicas, ainda que silenciosas.

No calor de 34ºC do verão nipônico, há quem saia de casa rumo às instalações esportivas com duas camisas. Por baixo, o uniforme dos voluntários, com o símbolo dos Jogos. Por cima, uma outra peça - para que a de baixo não seja vista por outras pessoas durante o trajeto. É o medo de receber, nas ruas, críticas de quem é contrário aos Jogos.

 

* João Vítor é o enviado especial dos Diários Associados a Tóquio.