Reportagem atualizada em 2 de agosto de 2021.
Em 2019, quando foi convocado pela primeira vez para a seleção brasileira, Yoandy Leal ainda media as palavras ao chegar ao time, após um longo tempo de espera por isso.
Ao ser questionado pela BBC News Brasil na época se ele seria titular em um time de craques, o cubano naturalizado brasileiro respondeu que a escolha caberia ao técnico Renan Dal Zotto.
"Ninguém ganha uma posição de presente, precisa batalhar. Somos companheiros de time, mas vou lutar para jogar. Todo jogador tem de ter esse pensamento", disse Leal na época.
"A seleção brasileira tem grandes jogadores, mas também sou um grande jogador. Se for merecedor, ficarei feliz."
Mas, ao ser questionado se merecia ser titular, ele finalmente deixou a modéstia de lado e exibiu a confiança que só o dono de uma das carreiras mais vitoriosas do vôlei da atualidade pode ter.
"Lógico que mereço. Fui titular em todos os lugares em que joguei."
Passados dois anos, essa confiança se provou mais uma vez acertada. Leal é o titular absoluto da posição e um dos principais nomes da seleção nos Jogos de Tóquio.
Está realizando assim o sonho de disputar uma Olimpíada, o campeonato que faltava para ele — e se tornou assim o primeiro "estrangeiro" a defender o Brasil no torneio.
A primeira convocação
Esse sonho começou a se tornar uma realidade quando Leal recebeu em 2019 uma ligação de Renan.
"Ele disse que queria me convocar e perguntou se eu tinha vontade de jogar pela seleção", contou Leal à BBC News Brasil.
É claro que ele respondeu que sim: "Estou pronto". Afinal, Leal esperava por isso havia quatro anos.
O cubano de 32 anos se naturalizou brasileiro em 2015 com a possibilidade de fazer parte da equipe nacional no horizonte.
Isso finalmente ocorreu na estreia do Brasil na Liga das Nações daquele ano — o campeonato anual reúne as principais seleções do mundo.
Foi a primeira vez em sete décadas de história da seleção de vôlei do Brasil que a equipe teve um atleta naturalizado, mesmo que alguns grandes nomes do esporte não aprovassem a presença de um "estrangeiro" no time.
"Ele é brasileiro", disse Renan taxativamente na época à BBC News Brasil. "É um jogador fantástico, que sempre atuou em alto nível. Se está legalizado e disponível para defender a seleção, não há por que não convocá-lo."
A decisão de trocar Cuba pelo Brasil
Uma das tatuagens de Leal é uma frase atribuída ao guerrilheiro argentino Che Guevara — "Não se vive celebrando vitórias, mas superando derrotas" — que ele tem como inspiração na carreira de atleta. Mas, em sua trajetória, ele teve muito mais vitórias que derrotas.
Filho único de um casal de professores, Leal começou no vôlei aos 12 anos, ainda na escola, em Havana. Um professor de educação física detectou o talento que o levaria à seleção de Cuba, pela qual jogou até 2010, quando foi vice-campeão mundial, após perder para o Brasil na final.
No retorno da competição, aos 22 anos, Leal decidiu deixar a seleção cubana e seu país de origem. "Em Cuba, não podia jogar como profissional, porque não há clubes, e o governo não deixa um atleta da seleção jogar em outro país", contou ele.
Na seleção, o jogador diz que ganhava US$ 8 por mês. "Não era um salário que permitia viver normalmente. Queria ajudar minha família a ter uma vida melhor com meu trabalho", disse Leal, que já era pai quando deixou a ilha.
Ele foi procurado na época pelo agente Alessandro Lima, que havia trazido outros jogadores cubanos para atuar no Brasil. "Apesar de jovem, ele já era reconhecido internacionalmente como um talento de uma geração cubana fora de série", disse Lima.
Da quarentena ao estrelato
A aproximação deu certo, e dois clubes brasileiros manifestaram interesse por Leal. Ele fechou com o Sada Cruzeiro e foi liberado para jogar pelo time após cumprir uma quarentena de dois anos imposta pelo governo cubano aos atletas que decidem sair da ilha.
Com a equipe mineira, Leal ganhou 25 títulos. Entre os mais importantes, foi campeão sul-americano, pentacampeão da Superliga masculina, a principal competição de clubes do Brasil, e tricampeão mundial.
O argentino Marcelo Mendez, ex-técnico do Sada Cruzeiro e atual comandante da seleção da Argentina, disse que Leal amadureceu nos seis anos em que trabalharam juntos. Aprimorou-se não só no ataque, sua especialidade, e, hoje, é um jogador mais completo, de qualidade "indiscutível".
"Ele melhorou muito em todos os aspectos técnicos, principalmente na recepção e na defesa. Aprendeu a tomar decisões em momentos importantes e foi fundamental em muitas finais", disse à BBC News Brasil Mendez, a quem o cubano-brasileiro se refere como um segundo pai.
"Ele é como uma criança grande, por sua bondade. É alguém que teve uma juventude muito difícil e superou isso para atingir seus objetivos."
Os três mundiais ainda são os títulos que Leal considera mais valiosos em sua carreira, mesmo após ter sido duas vezes campeão italiano com o clube Lube Civitanova, no qual jogou de 2018 até este ano (agora, irá jogar Modena, também da Itália), e da Liga dos Campeões, a principal competição de clubes da Europa.
"Ganhar o campeonato italiano e a Liga dos Campeões foi importante, mas ser tricampeão mundial tem um significado maior. Poucos jogadores conseguiram isso", explicou Leal.
Com a experiência no Brasil e o veto do governo de Cuba à convocação de quem estivesse no exterior, o agente de Leal sugeriu que ele se naturalizasse para poder integrar a seleção brasileira.
O processo foi concluído em 2015. Foi então que Leal fez outra tatuagem: a bandeira de Cuba. "É onde nasci, o país que me deu uma bandeira que levarei comigo pelo resto da vida", diz.
Resistências
O passo seguinte para chegar à seleção brasileira foi cumprir os trâmites para se tornar atleta de outro país, o que incluía, além da permissão das federações brasileira e cubana, também a autorização da Federação Internacional de Voleibol (FIVB).
À frente do processo, Alessandro Lima disse que houve alguma resistência no início. "Havia um temor de que muitos atletas pedissem para jogar por outro país. Era um medo natural de que um país sem tradição no esporte naturalizasse vários jogadores", explicou o agente de Leal.
Isso era especialmente válido para jogadores de Cuba, país que fez história no vôlei, tanto no masculino quanto no feminino, mas hoje amarga a posição de coadjuvante após um êxodo de talentos.
"Nossa experiência diz que 99,5% dos jogadores querem sair de Cuba, não só porque as condições de ter uma carreira no país são inexistentes, mas também porque faltam recursos mesmo para quem joga pela seleção", afirmou Lima.
A cubana Taismary Agüero foi bicampeã olímpica e campeã mundial com a seleção feminina de seu país antes de se naturalizar e jogar pela Itália na década passada.
Osmandy Juantorena fez o mesmo e, hoje, faz parte da seleção italiana. Wilfredo León joga pela seleção da Polônia.
No caso de Leal, disse seu empresário, a resistência cessou após ser estabelecido que uma transferência de federação só seria concedida a jogadores que tivessem um vínculo com o país pela qual jogariam.
O cubano-brasileiro recebeu autorização da FIVB em abril de 2017. Como já havia jogado por Cuba, precisou cumprir uma nova quarentena de dois anos até poder ser convocado pelo Brasil, prazo que acabou no mês passado.
Neste meio tempo, alguns grandes nomes do vôlei nacional se manifestaram contra sua participação na seleção.
"Quem já jogou contra outra seleção não deveria poder se naturalizar. Não sei se a gente acaba incentivando isso acontecer com frequência", disse o bicampeão mundial Murilo Endres, em 2015, ao site Globo Esporte.
O campeão olímpico Lipe disse em 2017 ao programa Roda de Vôlei que a "seleção brasileira nunca precisou de estrangeiros".
"Ele é um jogador excepcional? Admito, é um ponteiro como poucos. Mas, se for para ganhar ou perder, que seja com brasileiros. Imagine que estamos tirando a oportunidade de um garoto que sonha com a seleção. Isso não tem o menor cabimento."
Procurado pela BBC News Brasil, Lipe disse que não comentaria o assunto. A assessoria de Murilo não retornou o contato até a publicação da reportagem.
"Não sei por que eles falaram essas coisas, não sei o que pensam sobre mim", diz Leal. "É verdade que nunca houve uma situação assim, um 'estrangeiro' na seleção do Brasil, mas cumpri todo o combinado. Mereço jogar na seleção tanto quanto eles."
De qualquer forma, o levantador e capitão da seleção Bruno Rezende garantiu na época que ele seria bem recebido.
"Se fosse há alguns anos, quando a naturalização era uma novidade e as pessoas não o conheciam, poderia ser diferente. Mas, hoje, é outro momento. Ele jogou praticamente toda sua carreira no Brasil. Não surgiu do nada. Aquelas críticas, um pouco infundadas, ficaram para trás", disse ele à BBC News Brasil.
Bruno e Leal — que foram e serão novamente companheiros de clube na Itália — conviveram bastante. "Mesmo sendo um grande jogador, ele nunca se comportou como estrela. Sempre foi tranquilo, humilde e generoso, sempre disposto a ajudar. Nunca quis ser mais do que os outros, e admiro isso."
O capitão da seleção considerou que a grande força física de Leal ajudaria a equipe a conseguir bons resultados. "É um jogador que, nos momentos importantes da partida, gosta de assumir a responsabilidade e pode virar um set a nosso favor."
De olho no título
Mas o começo de Leal na seleção não foi dos melhores. Naquela Liga das Nações de 2019, o Brasil acabou apenas em quarto lugar — pouco para um time que se habituou ao pódio.
Então veio a pandemia, a suspensão dos campeonatos esportivos, o adiamento da Olimpíada e toda a incerteza diante de uma crise global de proporções inéditas.
Mas o ano olímpico começou melhor para Leal, que ganhou em abril pela segunda vez o campeonato italiano.
Leal também subiu ao lugar mais alto do pódio com o Brasil na Liga das Nações deste ano, quando a potência dos seus saques e ataques foi decisiva para o ótimo desempenho da equipe na final contra a Polônia.
Agora, em Tóquio, as esperanças do Brasil passam mais uma vez pelas mãos — e pela confiança — de Leal.
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