Tóquio — O céu cinza da Tsurigasaki Surfing Beach instantaneamente sorriu e se pintou com as cores do arco-íris assim que Ítalo Ferreira saiu do mar. Na areia, o surfista era carregado nos ombros. Com os olhos marejados, olhou para cima e apontou para as nuvens, como se dedicasse a histórica medalha de ouro olímpica para alguém. Do alto, ele crê que vem a proteção dupla — de Deus e de dona Mariquinha, incentivadora, amiga e avó.
“Neste momento, muitas memórias vêm à minha cabeça. A minha família, a minha avó, que já se foi e que eu gostaria que estivesse aqui vendo tudo o que estou fazendo no esporte, crescendo como pessoa, ajudando aqueles que estão ao meu lado”, emocionou-se, já com a medalha de ouro no pescoço. Foi a primeira dourada que a delegação brasileira conquistou nos Jogos Olímpicos de Tóquio.
Aos 27 anos, Ítalo vive o auge da carreira, mas prometeu manter um ritual que iniciou ainda jovem. Sempre que ganhava um título, o campeão olímpico chegava à casa e mostrava o troféu para dona Mariquinha. E ele fará o mesmo com o ouro conquistado ontem, no Japão.
“Minha avó foi a maior figura. A gente sempre brincava, zoava um ao outro. Ela sempre me dava forças. Quando eu voltava dos campeonatos, a primeira coisa que eu fazia era mostrar o troféu para ela. Quando eu fui campeão do mundo, levei o troféu ao quarto dela, mas ela não estava. Mas continuei o meu ritual. Vou levar a medalha (olímpica) lá no quarto dela de novo. A gente tem que aproveitar cada momento, aqueles que a gente ama. Eu realmente aproveitei ela e só tenho boas memórias. De lá de cima, ela está muito orgulhosa”, disse.
Ítalo parecia viver um sonho que nem sabia que era dele. Nos anos 1990, aquele garoto filho de pescador improvisava como prancha de surfe a tampa do isopor em que seu pai levava os peixes para vender e nem imaginava que o surfe se tornaria esporte olímpico. Nas praias da pequena Baía Formosa, cidade do litoral leste do Rio Grande do Norte com menos de 10 mil habitantes, o menino pegava as primeiras ondas sem saber quão longe o mar lhe levaria.
No Japão, o potiguar enfrentou algumas adversidades. Ítalo não tinha a prancha ideal para as inesperadas altas ondas formadas no Pacífico. A expectativa era por menores — mais comuns durante o verão nipônico, marcado notadamente por ventos alísios, não tão fortes assim. Mas a chegada de um tufão mudou tudo: o sol intenso que fez ao longo da semana anterior subitamente deu lugar a um tempo nublado e ventoso.
E Ítalo, campeão mundial e primeiro medalhista de ouro da história da modalidade, foi quem melhor se adaptou às condições que se apresentaram. O começo da final foi tensa, quando a prancha do brasileiro quebrou. Mas houve tempo para se recuperar. Dominante, o campeão olímpico liderou grande parte da final contra o japonês Kanoa Igarashi e festejava a conquista antes mesmo do fim.
O choro de Ítalo ao falar da avó após sair do mar foi de gratidão, não de tristeza. “Eu não consegui me despedir, estava no Havaí quando ela faleceu. É um momento que eu gostaria de ter vivido. Mas a gente está aqui de passagem e tem que aproveitar todo mundo, respeitar e amar”, pregou.
Agora, Ítalo quer deixar a avó ainda mais orgulhosa. Depois de cumprir o ritual e mostrá-la o tão sonhado ouro, o surfista vai transformar a casa onde dona Mariquinha vivia num lar de caridade: “É no porto, exatamente onde a gente vai fazer o instituto para ajudar as crianças. Acho que ela vai se orgulhar”. Lá de cima, ela vai sorrir e colorir o céu de arco-íris em cada vitória do neto querido.
A praia ‘feia’ do Japão
A primeira mirada em direção à praia do surfe olímpico causa estranheza aos olhares acostumados ao litoral brasileiro. No céu, as nuvens escuras e a neblina insistente criam um clima quase hostil para o verão quase sempre ensolarado do Japão. No chão, a areia negra — fruto da ação vulcânica no solo.
Tsurigasaki Beach não é a praia das famílias ou dos fins de semana prolongados. Pelas características do mar, o local recebe, em média, 600 mil surfistas por ano. Os paraísos do Oceano Pacífico se fazem mais presentes nos arquipélagos ao Sul do país. Há as praias para surfe e as praias para as visitas das pessoas — que têm quebra ondas e, por vezes, salva-vidas. Há ainda aquelas que são frequentadas por grupos específicos da sociedade japonesa.
“As mulheres não vestem fio dental. Usar biquíni na praia é muito estranho na Ásia. As pessoas vão de calça jeans, bermuda. Rolê na praça e rolê na praia: a mesma coisa”, conta ao Correio Geovane Mansano, estudante brasileiro que viveu em Osaka durante um ano.