O brasiliense Wendell Belarmino, de 22 anos, treinava para os primeiros Jogos Paralímpicos da carreira após um ano espetacular. Em 2019, o nadador estreou nas competições mais importantes do mundo. Terminou com o saldo de nove medalhas. Foram quatro ouros e duas pratas nos Jogos Parapan-Americanos de Lima, no Peru, além de um ouro, uma prata e um bronze no Mundial de Natação Paralímpica de Londres. Os resultados renderam vaga para disputar os 50m livre nas Paralimpíadas de Tóquio, de 24 de agosto a 5 de setembro de 2021, e o Prêmio Paralímpico de atleta revelação do ano. Com as expectativas em alta, Wendell teve o sonho adiado diante da pandemia de covid-19.
O brasiliense estava na delegação brasileira que viajou para o Norte da Itália para disputar o Circuito Mundial de Natação Paralímpica, que seria realizado entre fevereiro e março. O evento foi cancelado por causa do surto do novo coronavírus, quando os 19 brasileiros haviam acabado de chegar ao país. O que resultou em um bate volta de 24 horas dos brasileiros na Itália. Em entrevista ao Correio, Wendell comenta como manteve os treinos e que, mesmo diante das limitações impostas pela pandemia, melhorou os próprios tempos que lhe renderam as principais conquistas.
Com glaucoma congênito desde que nasceu, Wendell precisou passar por seis transplantes de córneas, mas, mesmo assim, a perda da visão segue gradativa. Em 2020, o desafio foi manter a motivação nos treinos sem poder competir. Tarefa que o acompanhamento psicológico ajudou a lidar. A falta de competições, porém, também adiou o encontro com a namorada da Ucrânia, que Wendell conheceu dentro da piscina como adversária na prova de revezamento no Mundial de Londres, em setembro de 2019. O primeiro reencontro após o evento será nesta semana. A namorada vem passar as férias no Brasil.
Você se preparava para os seus primeiros Jogos Paralímpicos após um ano espetacular, em que, inclusive, ganhou o Prêmio Paralímpico de atleta revelação de 2019. Qual foi o sentimento pelo adiamento do evento?
Quando começou a quarentena, eu e os atletas estávamos bem ansiosos por não termos como treinar. Estávamos adaptando as atividades em casa, mas não é a mesma coisa. Eu estava bem nervoso com isso e, quando chegou a notícia de que os Jogos seriam adiados, foi um alívio. Eu teria tempo de voltar ao ponto que estava antes da paralisação ou ir além após a retomada dos treinos. Apesar do alívio, também teve a ansiedade de esperar por mais um ano. Em compensação, o próximo ciclo paralímpico terá apenas três anos.
Você quebrou os próprios recordes em treinos neste mês. Como tem sido os resultados das tomadas de tempos recentes?
Fiz tomada de tempo há três semanas e os tempos foram bons. Nadei abaixo do que a melhor marca que eu tinha antes nos 50m livre e 100m costas. E fiz um tempo próximo do meu melhor nos 100m livre e 100m borboleta. Esses resultados têm me animado mais. Mesmo que ainda não tenha Paralimpíadas próximas, acredito que possa acontecer o Open de Natação em breve (ainda não há calendário nem previsão oficialmente divulgados pelo Comitê Paralímpico Brasileiro). Essa competição é classificatória para as Paralimpíadas e, mesmo eu já tendo a vaga, quero avaliar o que posso fazer.
A vacinação contra a covid-19 começou em alguns países e o evento teste de natação paralímpica foi marcado para 26 de abril, no Japão. Acredita na realização das Paralimpíadas de Tóquio em setembro?
Eu estou gerenciando expectativas agora. Existem muitas incertezas. Saiu a vacina, espero que funcione, mas, ao mesmo tempo, o Comitê Organizador do Japão disse que vai ter Olimpíadas e Paralimpíadas de qualquer jeito. Só que, se a pandemia se agravar, muitos países não vão querer ir. Eu espero que tenha. O Japão é um país que gosto muito e ir para lá nos meus primeiros Jogos Paralímpicos seria bem legal, assim como foi com a Inglaterra. Também era um país que eu queria muito visitar e acabei conhecendo no meu primeiro Mundial de Natação.
A Rússia foi banida dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos pelos escândalos envolvendo doping, e alguns países podem não disputar o evento por causa da pandemia de covid-19. Como analisa essas ausências?
Eu acho que a competitividade vai ser bem alta, como sempre. Pode não ter uma dessas grandes potências, como a Rússia, mas é uma oportunidade para novos nomes aparecerem e mostrarem trabalho. Não gosto de ver só o lado negativo. Claro que todo esse cenário pode afetar bastante o evento, não será aquela festa que dizem que sempre é, mas será um evento bom e o esporte tem um simbolismo de mostrar que tudo pode ser superado. É uma lição para o mundo também. A reestruturação depende de esforço e união.
Você defende a Universidade de Brasília (UnB) como clube. Como é representar uma universidade pública que teve papel importante com pesquisas e profissionais com papel de destaque em meio à pandemia?
Eu fico muito feliz de treinar em um lugar que contribui bastante na área de pesquisa e que foi evidenciada nas condutas contra a covid-19. Além de saber que é um lugar que apoia a minha carreira esportiva, apoia a recuperação da sociedade em meio a uma crise sanitária global como esta que estamos vivendo.
De que forma a pandemia afetou o seu emocional e como você lidou com as limitações impostas por ela também na sua vida particular? O que você gostava de fazer fora da piscina que precisou mudar?
Foi um pouco complicado. No fim de semana, eu saia com a minha família para restaurante ou para o shopping e, do dia para noite, acabou tudo. Na primeira semana, achei tranquilo. Na segunda, comecei a ficar incomodado. Na terceira, bateu aquela inquietação de ficar perguntando quando isso acabaria. Não tive como encontrar a minha namorada, que é de fora do Brasil. A confraternização com amigos, que passou a não ter mais. Essa reestruturação social foi complicada, ainda mais por tanto tempo.
Da onde é sua namorada?
Ela se chama Marina, é da Ucrânia e é nadadora da classe S11 também. Ela nadou contra mim no revezamento do Mundial de Natação Paralímpica de Londres, em 2019. Foi lá que eu a conheci, depois começamos a conversar e acabou em namoro. A gente se encontraria nas Paralimpíadas de Tóquio e em campeonatos na Europa. Mas ela está de férias e chega no Brasil nesta semana. Vai ser o nosso primeiro encontro depois do namoro. A última vez que nos encontramos pessoalmente foi em setembro de 2019, quando nos conhecemos no Mundial.
Você fala inglês perfeitamente e tem uma lista de idiomas que pretende aprender, mas o russo virou prioridade depois que começou o namoro, certo?
Eu falo fluentemente inglês e estou aprendendo russo, mas espero aprender francês, italiano, alemão e japonês. O russo é difícil, mesmo, mas não é impossível. Tem muitas regras e exceções, igual ou pior que o português. E a minha namorada estava estudando português também. Ela gosta muito de idiomas. Se formou em italiano e inglês na faculdade. Então a gente conversa em inglês, com um pouco de russo e português junto.
Soube que você desenvolveu o hobbie de voar em um simulador de queda livre indoor em Brasília...
Eu sempre quis, mas não tinha tempo. Até que recebi o convite quando estava em casa, com a família, depois que voltei de São Paulo. Voei no iFLY de Brasília e gostei. É uma sensação totalmente diferente, a gente sente que está voando mesmo, não sei nem como explicar. Também por ser positivo para os treinos, porque ajuda a ter uma percepção corporal e sensibilidade maiores. Mas vou me divertir e desestressar. É bom fazer outra coisa que não nadar. De tanto eu ir lá, o dono me patrocinou dando meia hora de voo por mês, o que equivale a 30 saltos de paraquedas. Faço uma vez na semana, três vezes no mês. No terceiro ou quarto voo, perguntaram se eu tinha vontade de pular de paraquedas. Disse que só faltava a oportunidade. A mãe disse que era melhor pensar direitinho depois.
Quanto tempo e como se virou para manter a preparação física no início da quarentena com as piscinas fechadas?
Fiquei sem poder nadar de março até o fim de junho. Eu tinha uma planilha quinzenal ou semanal que o meu treinador passava, com exercícios funcionais, abdominal… Na minha casa também tem uma piscina pequena, onde eu nadava com um elástico preso em mim e na borda. Não acho muito confortável. Serve para ter uma avaliação biomecânica de força, mas é o que dava para fazer. Como eu dependo muito da sensibilidade da água, esse tipo de treino me atrapalha um pouco, não é a mesma coisa de nadar em uma piscina de 50 metros, mas ajudou a continuar tendo uma vivência na água.
Como e onde você manteve os treinos?
No fim de junho, fui para São Paulo e fiquei 10 dias nadando porque lá estava aberto. Depois fui para o Centro de Treinamento Paralímpico, que abriu com um protocolo bem rígido e eu estava no primeiro grupo para retomar os treinamentos, que incluíam medalhistas do Mundial de Londres em 2019. Depois de um mês e meio em São Paulo, voltei para Brasília. A UnB ainda está fechada, então estou treinando no Mackenzie enquanto espero a piscina da UnB abrir.
Como foi manter o ritmo sem competições em 2020?
Difícil. Eu fiz um acompanhamento bem forte com a minha psicóloga e com o psicólogo do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) para dar uma motivada a mais. Querendo ou não, é desanimador ficar treinando sem ter nenhuma competição por um ano. Surge a pergunta: 'Estou treinando para o que se não posso competir?' Por isso, tive esse acompanhamento psicológico. Quando voltei a treinar na piscina, me deu uma animada a mais. Depois, com a saída da vacina, a publicação das datas de eventos testes para os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, eu e meu treinador começamos a marcar tomadas de tempo. Então eu passei a ter um objetivo mais palpável.
Você completa seis anos de treinamento na natação em janeiro, aos 22 anos. O que é possível levar deste ano difícil de 2020 para o futuro da sua carreira?
Serviu para lembrar que, quando as coisas ficam difíceis, seja para treinar ou quando não sai um resultado legal, o problema pode ser temporário. É uma fase que pode passar, que, com treino, é possível recuperar os resultados. Depois da angústia que passamos no início da quarentena, agora estamos treinando normalmente na piscina, podendo ir à academia. É um aprendizado: pode ser o quanto difícil for, lembre-se que é passageiro.