Revolução do mercado financeiro está distante para milhões de brasileiros
Para mais de 20 milhões de brasileiros sem acesso à internet o pix ainda é uma realidade distante. Uso da modalidade de pagamento on-line é apenas uma das faces da exclusão digital no país
Mariana Niederauer
Raphaela Peixoto
Yasmin Rajab
15/11/2024 05:55 - Atualizado em 15/11/2024 19:12
Compartilhe:
12min de leitura
Os pagamentos via pix revolucionaram o mercado financeiro brasileiro. Há quatro anos, a modalidade era criada, tornando transferências entre contas mais ágeis e simples. Esse novo universo de possibilidades, no entanto, segue inalcançável para milhões de brasileiros, seja pela falta de letramento digital, seja pela dificuldade de acesso à internet e a dispositivos eletrônicos.
Fatores como a idade dos usuários e a vulnerabilidade social são os desafios que se impõem para que a ferramenta se torne, efetivamente, democrática, assim como outras plataformas digitais que emergem no mundo globalizado.
De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) divulgados em agosto, mais de 22,4 milhões de brasileiros com mais de 10 anos de idade não utilizaram a internet em 2023, o que corresponde a 12% da população nessa faixa etária do país.
O número de usuários do pix, por sua vez, cresce exponencialmente a cada mês. Em janeiro, eram 159,6 milhões inscritos. No mês passado, subiu para quase 170 milhões (incluindo pessoas físicas e jurídicas). Já as chaves cadastradas ultrapassam os 805 milhões. Os dados são do Diretório de Identificadores de Contas Transacionais (DICT), disponíveis no site do Banco Central.
Mesmo estando tão popularizada, a ferramenta ainda passa à margem para uma parcela da população. A resposta do vendedor Rufino Ivaldo, 70 anos, para a recorrente pergunta “tem pix?” é um não. Ele vende balas e salgadinhos no mesmo local, em Ceilândia, há 14 anos.
Apesar de admitir que a escolha teve reflexo nas vendas, é categórico ao afirmar que não pretende mudar de ideia. “Vêm muitos clientes, mas eu dispenso. Não sei mexer no pix”, relata, demonstrando também desconfiança no modelo. “Como vou saber se entrou ou não? Meu menino quer que eu faça, mas eu disse que não. Estou nessa idade, para que mais? Agora é só esperar Deus me levar embora.”
Durante a entrevista, Nathanael Souza, 28 anos, tentou fazer uma compra com Rufino, mas desistiu ao saber que o comerciante não aceitava pix. “Nunca tive nenhum problema. Conheço pessoas que já tiveram, que depositaram em outras contas, mas recuperaram”, diz. O jovem trabalha em um lava a jato e, desde a criação da modalidade, decidiu incorporá-la às opções de pagamento do estabelecimento.
Destaques da Pnad
A proporção de pessoas com 10 anos ou mais de idade que utilizaram a internet no país passou de 87,2% em 2022 para 88% em 2023. Em 2016, eram 66,1%
O percentual de idosos (60 anos ou mais) que utilizam a internet subiu de 24,7% em 2016 para 66,0% em 2023
Entre as grandes regiões, Centro-Oeste manteve o maior percentual de usuários da internet (91,4%); Nordeste (84,2%) e Norte (85,3%), os menores.
Em 2023, 97,6% dos estudantes da rede privada e 89,1% dos alunos da rede pública utilizaram internet
O equipamento mais utilizado para acessar a internet em 2023 foi o telefone celular (98,8%). Em seguida, vinha a tevê (49,8%), pela qual o acesso vem aumentando continuamente desde 2016 (11,3%)
O acesso à internet via microcomputador recuou de 63,2% em 2016 para 34,2% em 2023. O uso por meio de tablet caiu de 16,4% para 7,6%.
Em 2023, 94,6% dos usuários acessaram a internet para conversar por chamadas de voz ou vídeo. Outras finalidades que se destacaram foram: enviar ou receber mensagens de texto, voz ou imagens por aplicativos diferentes de e-mail (91,1%); assistir a vídeos, inclusive programas, séries e filmes (87,6%) e usar redes sociais (83,5%).
A maioria das pessoas que não usaram internet em 2023 tinham no máximo o fundamental incompleto (75,5%) ou eram idosos (51,6%). Não saber usar é o motivo mais apontado (46,3%)
Em 2023, 87,6% das pessoas de 10 anos ou mais de idade tinham telefone móvel celular para uso pessoal, crescimento de 1,1 ponto percentual em relação a 2022 (86,5%)
Fonte: IBGE
Faces da exclusão
O coordenador da pesquisa TIC Domicílios, Fabio Storino, desenha um panorama da universalização do acesso à internet no Brasil a partir de dados históricos da pesquisa, que tem como objetivo mapear o acesso às tecnologias da informação e comunicação nos domicílios urbanos e rurais do país e as suas formas de uso por indivíduos de 10 anos de idade ou mais.
Ele contextualiza que, em 2005, 24% da população brasileira com 10 anos ou mais eram usuários de internet. Este ano, a proporção de usuários chegou a 84% da população. “Até 2019, esse indicador cresceu todos os anos. Houve um crescimento mais acelerado durante a pandemia, quando muita gente precisou da internet para trabalhar, estudar, acessar serviços públicos e até mesmo fazer suas compras cotidianas. Desde então, o indicador de acesso à internet tem ficado mais estável”, observa.
O dado de exclusão digital obtido pela TIC Domicílios é ainda superior do que o da Pnad, e indica que 29 milhões de pessoas no país não têm acesso à internet. A maioria delas, destaca Storino, vive em áreas urbanas (24 milhões), tem até o ensino fundamental (22 milhões), se autodeclara preta ou parda (17 milhões), pertence às classes D e E (16 milhões) e C (12 milhões) e tem 60 anos ou mais (14 milhões).
“O perfil é de uma população mais vulnerável social e economicamente, o que aponta para um cenário mais desafiador de inclusão digital das pessoas que ainda não acessam a internet no Brasil”, analisa o especialista.
O desafio para que essas pessoas transitem para um cenário de inclusão digital é de dimensões continentais, como o país.
"Conectar todas as pessoas envolve desafios de diversas naturezas: comerciais, tecnológicos e de políticas públicas. Os indicadores da pesquisa TIC Domicílios mostram onde estão os não usuários e contribui para o desenho de estratégias específicas para cada um dos grupos digitalmente excluídos"
Fabio Storino, coordenador da pesquisa TIC Domicílios
Outro dado relevante da pesquisa é o de que há uma associação entre as condições de acesso à internet e o letramento digital. Ou seja, os usuários com as melhores condições de acesso — têm o próprio dispositivo e uma franquia de dados mais alta, por exemplo —- são também aqueles que apresentam níveis mais altos de letramento digital e consequentemente, um maior grau de instrução.
“Ou seja, o desenvolvimento de habilidades digitais passa por prover não apenas melhor qualidade de acesso, mas também educação num sentido mais amplo, dotando os usuários de internet de habilidades críticas para um melhor aproveitamento das oportunidades digitais — e mitigação dos riscos presentes no ambiente on-line”, reforça o especialista.
O Distrito Federal é a unidade da Federação com o índice mais alto de conectividade significativa: 31,8% da população estava no nível mais alto de conectividade, segundo a TIC Domicílios. O cálculo leva em conta os elementos de acessibilidade financeira, acesso a equipamentos, ambiente de uso e qualidade da conexão.
Transformação
O início oficial do pix ocorreu em 16 de novembro de 2020, quando o Banco Central disponibilizou a modalidade para todas as 734 instituições financeiras cadastradas. Nesse momento, porém, a ferramenta já encontrava um cenário favorável para seu sucesso entre os usuários, observado quando analisados os dados históricos da pesquisa TIC Domicílios.
O levantamento já havia mostrado um aumento significativo na realização de serviços financeiros pela internet em 2020. “Esse aumento foi observado antes do lançamento do pix, que ocorreu no fim daquele ano, e esteve associado tanto ao fechamento ou suspensão do atendimento presencial em agências bancárias quanto ao auxílio emergencial do governo federal, cuja movimentação do benefício se dava diretamente por meio de uma conta digital acessada por um aplicativo de celular”, observa Fabio Storino.
Omar Figueiredo, 62 anos, trabalha como vigia de carros em Ceilândia. O único contato com o mundo digital é um celular antigo, que usa apenas para fazer ligações. O trabalhador não sabe ler nem escrever, e consegue se manter graças ao auxílio de R$ 600 concedido pelo governo federal e que ele saca diretamente na agência bancária, por meio da digital. “Tenho um cartão em casa, mas depois da digital só uso assim. Facilitou muito para a gente que não sabe escrever.”
A funcionária pública aposentada Eliza de Sousa Santos, 72 anos, precisa de ajuda para fazer transações bancárias. Acompanhada do genro, José Inácio, 56, ela conta que usa o celular apenas para se comunicar com os filhos. Ele, por outro lado, é adepto do pix. “Uso desde quando inventaram. Nem sei mais contar dinheiro”, afirma. “Hoje, não precisamos mais ir a banco para pagar uma conta. Conseguimos resolver tudo pelo pix”, finaliza.
Esse movimento mostra que a própria criação de infraestruturas públicas digitais fomenta a busca pela ampliação do acesso e ajuda a moldar a transformação digital do país. O pix é um dos exemplos desse processo. “Poucos anos depois de seu lançamento, a pesquisa TIC Domicílios mostra que o pix se tornou a principal forma de pagamento para compras on-line, tendo sido utilizado por 84% dos usuários de internet que compraram produtos ou serviços on-line nos 12 meses anteriores à pesquisa. E o crescimento em relação a 2022 (66%) aconteceu sobretudo entre as classes B, C, D e E, com menor acesso a cartão de crédito", afirma Fabio Storino.
Acesso de qualidade
A especialista em políticas públicas e gestão governamental Denise Direito ressalta ser importante observar também a qualidade do acesso da população à internet. “Ao decompor os dados e analisar a experiência de uso considerando fatores como velocidade e qualidade de acesso, tipos de dispositivos e custos, apenas 22% da população atende às condições consideradas satisfatórias, de acordo com os indicadores estabelecidos”, afirma ela, que atua no Departamento de Estatísticas e Estudos de Comércio Exterior do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Diest/Ipea).
"O quadro que emerge é que as tecnologias de informação e comunicação (TICs) sobrepõem mais uma camada de desigualdade aos excluídos de sempre. Assim, raça, gênero e território estão entre os fatores que ampliam o fosso. Urbanos estão mais incluídos do que pessoas que moram no meio rural, homens mais do que mulheres, brancos mais do que negros e ricos mais do que vulneráveis"
Denise Direito, especialista em políticas públicas e gestão governamental do Departamento de Estatísticas e Estudos de Comércio Exterior do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Diest/Ipea)
O primeiro ponto apontado pela especialista como essencial para mudar esse cenário é justamente o acesso, ou seja, infraestrutura de rede. “Para isso, é necessário dar continuidade às políticas públicas como Gesac (Governo Eletrônico - Serviço de Atendimento ao Cidadão, do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovações) e Escolas Conectadas, melhorando a articulação interfederativa — União, estados e municípios.”
Já no que se refere ao letramento digital o cenário se mostra mais complexo. Antes de tudo, é preciso que haja uma definição clara do que significa letramento, destaca Denise Direito. De habilidades básicas, como copiar e colar um texto, às mais complexas, como saber identificar fake news e criar planilhas: o que se espera da população brasileira?
Diante disso, a popularização do pix se torna um desafio pequeno. O modelo é de uso relativamente simples, conforme ressalta a especialista, além de o número de brasileiros bancarizados também ser alto. “Assim, todo esse processo de exclusão é menos perceptível ou tem menor impacto quando analisamos a questão do pix”, afirma. No entanto, as fraudes e golpes virtuais devem estar no rol de preocupações das instituições financeiras, alerta Denise Direito.
De olho nas oportunidades
O vendedor Maicon Bonfim dos Santos, 32 anos, trabalha no semáforo e usa um papel com os dados do pix para facilitar a comercialização. "Ficou mais fácil para vender. Às vezes não dá tempo de passar o valor, então levam o papelzinho para fazer o pix", conta. "Antes, não sabíamos do pix, por isso não usávamos. Víamos outras pessoas trabalhando e resolvemos nos cadastrar. As pessoas também pediam para fazer, pois era mais fácil."
Ele mora no Assentamento Dorothy Stang, em Sobradinho, e ganhou um terreno, mas ainda não conseguiu construir. Por enquanto, vive com os vizinhos. "Às vezes, vendemos R$ 60 ou R$ 70, mas às vezes não vendemos nada. Tem vezes que dormimos na rua para trabalhar no outro dia para pegar o baú para casa", diz, ao lado de familiares que ajudam nas vendas. Letícia Honorato da Silva, 28 anos, está grávida e reconhece o predomínio do meio de pagamento. "Hoje em dia, ninguém mais tem dinheiro. Agora é tudo no pix."
Investimento em infraestrutura
André Miceli, coordenador do MBA de Marketing e Negócios Digitais da Fundação Getulio Vargas (FGV), concorda que um avanço no letramento digital da população depende, antes de tudo, de investimento na infraestrutura das redes de telecomunicações e fibra, para que elas cubram uma área maior do território.
“O governo precisa tratar de programas de inclusão digital, de curso e de treinamento que capacitem a população no uso dessas tecnologias digitais, nas implicações, nos riscos, todas essas questões de cibersegurança que acabam permeando esse tema”, elenca o especialista.
“Entendo que seja bastante difícil fazer isso sem incentivos e subsídios, redução de impostos e de custo de dispositivos, de serviços de internet. Enfim, o governo precisa se envolver no processo de prover o acesso para a população”, completa. “Não tem como uma população ser letrada digitalmente sem que tenha acesso aos dispositivos digitais.”
O uso de ferramentas mais simples, como o pix, contribuem para a inclusão digital e podem ser uma porta, avalia André Miceli, para recursos mais sofisticados. “O pix modernizou e facilitou as transações financeiras, beneficiou milhões de pessoas. Não é raro a gente encontrar população em situação de rua pedindo dinheiro com pix ou pessoas vendendo nos sinais recebendo por pix. Então há, sim, um processo de inclusão digital que beneficiou, mas há também uma exclusão digital que impede que uma parcela significativa da população aproveite as inovações”, resume.
Marconi Rodrigues, 58 anos, faz parte da população excluída do mundo digital. Trabalha como catador de latinhas no centro de Brasília. Ele vive na rua com a cadela de estimação Pantera e sequer sabe o que é pix. Para sobreviver, conta com a venda de latinhas e com auxílio do governo. “Recebo valores picados e tenho Bolsa Família, graças a Deus. Deixo guardado, pois, se acabar a ração da Pantera, eu compro.”
Causas da exclusão
Veja quais as principais causas da exclusão digital elencadas por André Miceli
Desigualdade socioeconômica: a falta de recursos financeiros para contratar o serviço de acesso à internet ou adquirir dispositivos eletrônicos é um dos fatores de exclusão digital, sobretudo em áreas mais afastadas dos grandes centros. A popularização do wi-fi e a diminuição dos preços de celulares são algumas ações para minimizar os impactos.
Infraestrutura inadequada: a infraestrutura básica para a operação de dispositivos e serviços de telecomunicações em regiões rurais ou periféricas das cidades é de baixa qualidade, o que dificulta o acesso à internet;
Baixo letramento digital: trata-se da falta de capacidade dos indivíduos de usar as tecnologias digitais, que é crucial para que as pessoas consigam usar plenamente os recursos on-line.
Custo: conectado ao problema de desigualdade socioeconômica, os altos preços tanto do serviço de acesso à internet quanto dos dispositivos impossibilita o acesso a uma parcela da população. Trata-se de um problema estrutural: há uma população mais pobre e dispositivos mais caros que em países como os Estados Unidos.
Amanhã, o pix completará quatro anos de existência, período em que se tornou ferramenta indispensável para muitos brasileiros. Virou parte da rotina de empresas, de famílias e até de grupos de amigos quando compartilham um presente para uma pessoa querida ou uma refeição. Para outros tantos, porém, marca o atraso e a invisilibilidade diante do universo digital.