
A aquisição de terras por estrangeiros no Brasil é um tema que atravessa décadas de debates e mudanças legislativas, oscilando entre períodos de maior restrição e momentos de flexibilização. Ao apresentar um panorama dessa trajetória, durante o CB.Fórum: Cenário dos investimentos estrangeiros no agronegócio brasileiro, nesta terça-feira (25/3), o advogado e professor da FGV Direito Luciano de Souza Godoy descreveu-a como uma “evolução histórica esquizofrênica”, dado o vai e vem normativo que caracteriza a questão.
A legislação que regula o tema teve origem na década de 1970, durante o regime militar, com o objetivo de impedir a aquisição de grandes áreas por pequenos colonos estrangeiros, sob a premissa de evitar levantes camponeses semelhantes aos da Revolução Cubana. Contudo, com a promulgação da Constituição de 1988, esse cenário sofreu alterações, e interpretações posteriores flexibilizaram as restrições impostas pela ditadura.
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Nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, pareceres jurídicos afastaram parcialmente as limitações, permitindo que empresas com capital estrangeiro registradas no Brasil adquirissem terras sem restrições. No entanto, em 2010, sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, um novo parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) resgatou a lógica restritiva, buscando limitar a compra de terras por fundos soberanos e grandes grupos internacionais.
Godoy apontou a contradição dessa medida, destacando que um governo de esquerda recuperou normas da ditadura militar sob justificativas distintas, mas com o mesmo efeito prático: restringir a aquisição de terras por estrangeiros. A preocupação, segundo ele, sempre transitou entre questões de soberania nacional e interesses econômicos.
Outro ponto relevante levantado na palestra foi a falta de uma autoridade específica para regular o tema. Atualmente, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é responsável por fiscalizar essas aquisições, mas Godoy argumentou que a instituição tem sua origem voltada para a reforma agrária e o assentamento de trabalhadores rurais, não para o controle do agronegócio e investimentos estrangeiros. Ele defendeu, então, a criação de uma agência reguladora específica para lidar com o assunto.
Além disso, o professor destacou brechas na legislação que permitem que estrangeiros contornem as restrições. No Manual do Incra, por exemplo, há o reconhecimento de que contratos de direito de superfície e usufruto não são fiscalizados da mesma forma que a aquisição direta de terras, o que pode facilitar o acesso de investidores internacionais ao mercado fundiário brasileiro sem a necessidade de compra formal.
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A discussão se insere em um contexto mais amplo de soberania econômica e controle de setores estratégicos. Godoy comparou a questão fundiária com outros setores sensíveis, como telecomunicações, infraestrutura e distribuição de combustíveis, mencionando o impacto da greve dos caminhoneiros de 2018 como um exemplo do poder que determinadas áreas exercem sobre a estabilidade do país.
O debate sobre a aquisição de terras por estrangeiros no Brasil continua aberto, com forças políticas e econômicas pressionando em diferentes direções. Enquanto alguns defendem maior controle estatal para garantir a soberania nacional, outros argumentam que o país não pode abrir mão dos investimentos externos para o desenvolvimento do agronegócio. O desafio, segundo Godoy, é encontrar um equilíbrio que concilie interesses estratégicos sem inviabilizar o potencial econômico do setor.