O novo arcabouço fiscal tem encontrado dificuldades para ficar em pé desde a sua aprovação e, após a primeira alteração — antes mesmo de um ano de vigência da regra —, em abril de 2024, ganhou uma pequena sobrevida com a aprovação pelo Congresso Nacional do pacote fiscal, proposto pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no fim do ano passado.
Apesar de o governo seguir tentando conter os ânimos do mercado financeiro — maior credor da dívida pública — com o discurso de que tem o compromisso de respeitar o arcabouço, o consenso entre analistas é que um ajuste fiscal de verdade, se ocorrer, virá apenas a partir de 2027, em um novo mandato. A visão dos analistas é que a perna fiscal seguirá manca no tripé macroeconômico, criado desde o Plano Real para buscar o crescimento sustentável da economia.
De acordo com especialistas, as medidas previstas no pacote fiscal foram consideradas insuficientes pelo mercado e a previsão de cortes de gastos pelo governo ficou R$ 2,1 bilhões menor do que os R$ 71,9 bilhões estimados inicialmente. E, segundo eles, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva dificilmente fará algum corte mais drástico neste ano e no próximo. Essa certeza é que tem feito com que o dólar rompesse o patamar de R$ 6 desde a apresentação do pacote fiscal, no fim de novembro, diante da perspectiva de piora para a dívida pública bruta que poderá continuar crescendo enquanto o governo não retornar a registrar superavit primário.
O consenso entre as previsões para o fechamento das contas em 2024 é de que o governo conseguirá cumprir a meta do novo arcabouço, mas pelo piso, que permite um rombo de até 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB), e, mesmo assim com vários descontos de gastos que foram retirados da conta, como precatórios — dívidas judiciais da União, que foram pedaladas no governo anterior e ajudaram no fechamento das contas no azul em 2022, o único desde 2014 — e, socorro para as enchentes no Rio Grande do Sul e para as queimadas.
Demora
A economista Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), ressalta que o governo demorou muito para divulgar o pacote fiscal. E, quando o fez, anunciou também uma medida de renúncia de isenção do Imposto de quem ganha até R$ 5 mil, o que contribuiu para a perda de credibilidade do compromisso de reequilibrar as contas, o que fez o dólar disparar e o real desvalorizar quase 30% em 2024. Pelos cálculos da Unafisco Nacional, o impacto nas contas públicas dessa medida pode chegar a R$ 51 bilhões, mais da metade dos R$ 69 bilhões previstos com o pacote anunciado.
"Estamos convivendo com deficit nas contas públicas por um período prolongado e, como não há superavit, o rombo fiscal está sendo financiado com aumento de dívida. E, um país em que o governo é deficitário e tem uma dívida alta para cobrir os gastos para estimular a economia, no fundo, gera mais inflação", alerta a economista do Ibre.
Dívida Pública
Analistas alertam que quando a dívida pública bruta de um país emergente como o Brasil, com juros de dois dígitos, fica insustentável, se ultrapassa 80% do PIB. "Com esse quadro de deficit primário, o país é como aquela pessoa superendividada, que acaba gastando e não tem condição de sair do rotativo do cartão de crédito", compara Matos.
Vale lembrar que o quadro da dívida pública bruta é bastante preocupante. Em dezembro de 2014, conforme dados do Banco Central, a dívida pública bruta somava R$ 3,2 trilhões, o equivalente a 63,4% do PIB. E, em novembro de 2024, chegou aos inéditos R$ 9,1 trilhões, o equivalente a 77,7% do PIB — aumento de 184,4% em uma década. E, para piorar, analistas lembram que o ritmo de aumento da dívida está preocupante, pois acelerou para três a quatro pontos percentuais por ano. Por conta desse quadro, analistas alertam para o risco do forte crescimento da dívida pública sem que o governo consiga voltar a ter superavit primário.
A economista e especialista em contas públicas Selene Peres Nunes, uma das autoras de Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), demonstra preocupação com o atual quadro das contas públicas. "O quadro fiscal é muito ruim, e, por isso, o governo vem se contentando em cumprir a banda inferior da meta, e, mesmo assim, incluindo despesas em várias exceções. Logo, a dívida continuará crescendo, mas o país não suporta mais isso e, no cenário de referência do Tesouro, o governo depende de aumento de receitas que não estão muito bem explicadas", declara. "O governo está chegando no ponto em que cortar despesa discricionária não será suficiente e será preciso mexer na Constituição e rever as vinculações e outras despesas obrigatórias", alerta.
Deficit
Pelas projeções do Tesouro divulgadas no fim de dezembro, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não conseguirá fechar as contas públicas no azul antes de 2027. Já pelas estimativas da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, o quadro é muito mais preocupante no cenário base, que prevê superavit primário apenas depois de 2030. Para Alexandre Andrade, diretor da IFI, os desafios do governo seguem sendo aumentar a receita líquida em um ponto percentual do PIB e controlar o ritmo das despesas. "E, nas contas que atualizamos em dezembro, o primário necessário para estabilizar a dívida bruta passou para 2,4% do PIB", acrescenta.
Andrade reconhece também que, com a disparada do dólar e as perspectivas do mercado de uma inflação mais elevada neste ano, podendo ultrapassar 6% e a taxa básica da economia (Selic), atualmente em 12,25% ao ano, mas podendo ultrapassar 15% em dezembro, fazem com que o cenário pessimista da IFI, que é pior do que o básico, seja o mais provável. Nos dois cenários da entidade, a dívida pública bruta ultrapassará 80% do PIB neste ano. E, no pessimista, ultrapassará 100% do PIB em 2027, algo que só ocorreria em 2030 no básico.
Ajuste fiscal
O economista e especialista em contas públicas Manoel Pires, professor da Universidade de Brasília (UnB) e da FGV, alerta, também, que os cenários internacional e doméstico exigem que um ajuste fiscal seja feito pelo governo, mas há muitos desafios, após a atividade econômica ter crescido em 2024 acima do PIB potencial, o que gera mais pressões inflacionárias. No entanto, ele considera a reação do mercado financeiro com o pacote fiscal exagerado, pois, na opinião dele, o governo está fazendo o ajuste que é possível.
"A economia está pedindo que o governo faça um ajuste fiscal. E o governo apresentou um pacote fiscal, mas ele ficou abaixo do esperado pelo mercado, e ele reagiu mal. Mas existe uma crença errada do mercado, porque, desde 2015, estamos nessa batalha e nenhum governo conseguiu apresentar um pacote fiscal", afirma. Contudo, reconhece que o governo acabou contribuindo para essa reação exagerada do mercado ao misturar os anúncios da isenção do Imposto de Renda junto com as medidas de redução de gastos.
Luis Otávio Leal, economista-chefe da G5 Partners, considera que o pacote deu uma "sobrevida ao arcabouço". "O fiscal fica ruim, tanto pelo primário, que fica com um 'pequeno deficit', quanto pelo nominal, que fica comprometido pelos juros altos. Mas a solução desse problema não é baixar os juros", afirma.
Na avaliação de Leal, o governo precisa responder a pergunta sobre o motivo pelo qual os juros estão altos, apesar de o deficit fiscal de 2024 ser menor do que o de 2023. "O problema é como é alcançado esse 'pequeno deficit', uma vez que as receitas estão crescendo a um ritmo de 10% em termos reais, mas as despesas estão crescendo acima desse ritmo. E é isso que faz com que a economia esteja crescendo acima do potencial e a inflação esteja divergindo ao invés de convergindo", explica.