AGRICULTURA

Descoberta em Minas Gerais desafia a história do milho

Estudos sugerem que o cereal chegou à América do Sul há cerca de 6.800 anos e foi domesticado por indígenas da região

Manejo do milho pode ter se estendido para o hemisfério sul, desafiando visão que limitava as origens da planta apenas ao México -  (crédito: Flaviane Costa/USP)
Manejo do milho pode ter se estendido para o hemisfério sul, desafiando visão que limitava as origens da planta apenas ao México - (crédito: Flaviane Costa/USP)

O milho, com origem constatada no México, pode ter o início da domesticação também presente em Minas Gerais. Nova pesquisa realizada por estudiosos da Universidade de São Paulo (USP) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) encontrou amostras de milho semidomesticado em cavernas no Vale do Peruaçu, em Minas Gerais, que datam de 1.010 a 500 anos atrás.

Publicada na revista Science Advances, a descoberta indica que o processo de domesticação do milho se estendeu para a América do Sul, desafiando a visão tradicional de que a planta teria sido totalmente domesticada no México.

A pesquisadora e docente da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, vinculada à Universidade de São Paulo, e autora do estudo, Flaviane Costa, explica que, com a descoberta, é possível afirmar que os hábitos de indígenas sul-americanos firmaram o início da domesticação do milho na região de Minas Gerais.

Segundo ela, as teorias na academia acreditavam, até 2018, que o milho domesticado no México tinha sido completamente domesticado no país e que, depois de finalizado, é que o milho dispersou-se por meio das migrações humanas pelos outros países, através dos milênios.

“No entanto, em 2018, houve um estudo publicado na Revista Science, baseado em análises genômicas, arqueogenômicas, que compilou informações arqueológicas também, e ele já indicou evidências de que o milho teria chegado aqui semidomesticado, que esse processo de domesticação não se concluiu totalmente no México quando o milho chegou aqui na América do Sul”, explica a pesquisadora.

Revelação surpreendente

De acordo com Flaviane Costa, os registros mais antigos nas terras baixas da América do Sul, que envolve o Brasil e áreas adjacentes, apontavam para a presença de um milho que não havia passado pelo processo completo de domesticação. A teoria era sustentada por evidências genômicas e arqueológicas. Faltavam, porém, provas físicas, como amostras da planta.

A estudiosa afirma que esses achados arqueológicos identificados nas cavernas do Vale do Peruaçu, em Minas Gerais, “apontam que existiam milhos com características primitivas em grande quantidade”. Ela explica que, com base nessas evidências, “consideramos que esse milho iniciou seu processo de domesticação no México, mas, ao chegar à América do Sul, ainda estava parcialmente domesticado”.

Para a especialista, registros mais antigos indicam que “a presença mais antiga do milho nas terras baixas da América do Sul está no sudoeste da Amazônia, com amostras datando de até 6.800 anos”. Além disso, ela destaca que, inicialmente, o milho chegou a essa região e, em seguida, se dispersou por meio das migrações humanas, alcançando o Cerrado, o Mato Atlântico, o Pampa e a costa litorânea. “O início da domesticação ocorreu no México, mas ele chegou aqui de forma semidomesticada, perpetuando a lenda da domesticação em diferentes locais da América do Sul”, explica.

As amostras de milho identificadas em Minas Gerais apresentam características primitivas, como um número menor de fileiras de grãos (entre quatro e seis), semelhantes à planta ancestral, o teosinto, originária do México há 9 mil anos. Esses vestígios foram encontrados em cestos dentro de cavernas, localizadas em uma região que já era habitada há pelo menos 10 mil anos, muito provavelmente como oferenda aos mortos sepultados naqueles sítios. 

Pesquisadores como Flaviane Marques, analisaram espigas, grãos  e palhas, que  foram encontradas em 1994, chegando a algumas conclusões históricas

Pesquisadores como Flaviane Marques, analisaram espigas, grãos e palhas, que foram encontradas em 1994, chegando a algumas conclusões históricas

Flaviane Marques/USP

A partir desse momento, o grupo passou a analisar amostras de espigas, palha e grãos encontradas em escavações arqueológicas realizadas no Vale do Peruaçu em 1994, por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os estudos levaram à constatação de que a quantidade de fileiras de grãos seria um importante indicador do estágio de domesticação da planta. Plantas com menos de oito fileiras seriam consideradas primitivas. É o caso do teosinto, espécie forrageira que teria dado origem ao milho no México cerca de 9 mil anos atrás, e também das amostras encontradas no Brasil.

Importância científico-histórica

A presença dessas características primitivas em uma região tão distante do México, a cerca de 7.150 quilômetros, torna a descoberta ainda mais significativa. De acordo com a estudiosa, as amostras são as mais distantes do centro de origem da planta já encontradas com essas características primitivas.

A pesquisa também indica que o milho encontrado em Minas Gerais tem parentesco com a raça brasileira Entrelaçado, presente nos Estados do Acre e de Rondônia. Segundo Flaviane Costa, os próximos passos incluem análises arqueogenéticas para determinar com maior precisão a relação entre o milho encontrado no Brasil e outras variedades da planta na América. Assim, essa etapa da pesquisa poderá revelar mais detalhes sobre a história evolutiva do milho e sua dispersão pelo continente americano.

Ainda para a docente da USP, a descoberta evidencia a importância da ação indígena ancestral na agricultura atual. “Isso mostra a importância das populações indígenas do passado, que selecionaram, manejaram e fixaram características que deram origem às raças de milho atuais da América do Sul. Seus descendentes continuam realizando esse trabalho ainda hoje, contribuindo para mantermos nossos recursos genéticos”, explica a pesquisadora.

A descoberta do milho semidomesticado no Brasil, além das implicações científicas, também coloca em foco a importância da agricultura indígena para a conservação da agrobiodiversidade e segurança alimentar. “Existem várias iniciativas que precisam ser fortalecidas, especialmente para apoiar os sistemas agrícolas de agricultores tradicionais indígenas, que promoveram esse processo, e que conservam, até hoje, variedades locais para determinar o grau de domesticação do milho, os pesquisadores se basearam em evidências encontradas na literatura científica. Uma delas, publicada em 2018 na Revista Science, mostra evidências genéticas, em plantas atuais, de que o milho poderia ter finalizado sua domesticação também na América do Sul e raças nativas”. Segundo ela, “o fato permite que essas espécies continuem se adaptando ao ambiente, principalmente no cenário atual de crise climática, como o aumento de temperatura e estresse”, ressalta a Flaviane.

Variedade brasileira e diversidade

As amostras de milho semidomesticado encontradas em Minas Gerais, além de suas características primitivas, apresentam um parentesco genético com a raça brasileira Entrelaçado, presente nos estados do Acre e de Rondônia. Essa raça, encontrada em regiões distantes do Brasil, é considerada uma das que se originaram na América do Sul a partir da seleção de outras populações de milho.

A relação entre o milho semidomesticado encontrado em Minas Gerais e a raça Entrelaçado sugere que o processo de domesticação do milho na América do Sul foi complexo e envolveu a interação entre diferentes grupos indígenas e variedades da planta. Como explica Flaviane Costa, “a gente vê que existem raças nativas em diferentes locais que têm características diferentes, têm usos diferentes, então esse processo é muito diverso – por isso existem tantos tipos diferentes de milho ao longo de toda a América”.

A descoberta desse parentesco reforça a importância de se estudar a história evolutiva do milho na América do Sul e o papel das populações indígenas nesse processo, que resultou na grande variedade de tipos de milho presente no continente.

 

A domesticação de plantas é um processo milenar em que comunidades humanas moldam características das plantas para atender às suas necessidades e preferências

A domesticação de plantas é um processo milenar em que comunidades humanas moldam características das plantas para atender às suas necessidades e preferências

Acervo Flaviane Marques/USP

O que é a domesticação de uma planta?

A domesticação de plantas é um processo milenar em que comunidades humanas moldam características das plantas para atender às suas necessidades e preferências. O processo envolve a seleção cuidadosa de variedades com atributos desejáveis, como maior rendimento, sabor aprimorado e resistência a doenças, o que altera a composição genética da planta ao longo de gerações. Segundo a bióloga e professora, Maria Cecília de Freitas, a domesticação envolve um processo de evolução orientado pelas ações humanas.

De acordo com ela, o processo ocorre “por meio da seleção artificial de traços específicos, com a finalidade de adaptar plantas e animais às necessidades humanas”, de maneira contínua, que dita a relação do ser humano com o ambiente. Isso porque o fenômeno pôde interferir na migração e interação das comunidades levando à troca de plantas domesticadas, contribuindo para a difusão de culturas agrícolas e a diversificação de alimentos. Dessa maneira, as plantas domesticadas apresentam modificações genéticas quando comparadas aos seus ancestrais selvagens. É o caso da domesticação do milho, iniciada há cerca de 9 mil anos no México e que, após chegar à América do Sul já parcialmente domesticado, foi adaptado pelas populações indígenas, resultando em diversas raças adaptadas às condições ambientais do continente.

  • Pesquisadores como Flaviane Marques, analisaram espigas, grãos  e palhas, que 
foram encontradas em 1994, chegando a algumas conclusões históricas
    Pesquisadores como Flaviane Marques, analisaram espigas, grãos e palhas, que foram encontradas em 1994, chegando a algumas conclusões históricas Foto: Flaviane Marques/USP
  • A domesticação de plantas é um processo milenar em que comunidades humanas moldam características das plantas para atender às suas necessidades e preferências
    A domesticação de plantas é um processo milenar em que comunidades humanas moldam características das plantas para atender às suas necessidades e preferências Foto: Acervo Flaviane Marques/USP
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postado em 22/10/2024 09:21
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