Os níveis de fome e insegurança alimentar seguem persistentes. De acordo com o relatório "O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo (Sofi)", divulgado na última semana pela Organização das Nações Unidas (ONU), o mundo retrocedeu 15 anos, com níveis de desnutrição comparáveis aos de 2008-2009.
Em entrevista ao Correio, o presidente do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida) da Nações Unidas, Álvaro Lario, destacou a importância de investir na agricultura, focada nos pequenos produtores, para combater esse quadro: "O caminho mais rápido para sair da fome e da pobreza é por meio de investimentos em agricultura em áreas rurais."
Ele advertiu que os países estão falhando nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, que tem o objetivo de erradicar a fome e a má nutrição. O pacto firmado entre 193 países deve ser cumprido até 2030. "Hoje temos até 757 milhões de pessoas passando fome, isso significa que uma em cada 11 pessoas no mundo, é muito alarmante", ressaltou, ao avaliar os desafios da agenda global.
Lario destacou a importância de incluir os pequenos agricultores no financiamento climático global. Ele comentou sobre o novo ciclo de investimentos globais do Fida entre 2024 e 2029, com um montante de mais de US$ 1 bilhão destinado para o Brasil. "A nova carteira continuará muito focada no Nordeste, no Norte, na Amazônia e sempre nos pequenos produtores. É muito cedo para dizer quais serão os novos investimentos, mas claramente o Brasil será um dos países mais importantes do nosso portfólio", adiantou.
O presidente falou sobre as expectativas perante a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, liderada pelo Brasil, que ocupa a presidência rotativa do G20 — grupo das 19 maiores economias do planeta, mais União Europeia e União Africana. A plataforma de cooperação, que recebeu o apoio do Fida, pretende ligar regiões com necessidade de financiamento a países e entidades dispostas a investir em projetos locais.
Ele avaliou ainda o sucesso do país na agenda de combate a desigualdade. "Acho que a principal diferenciação do Brasil em relação a outros países e seu sucesso, mesmo diante do aumento da fome e da pobreza no último ano, é o compromisso político", afirmou. Confira a entrevista completa.
Quais os principais apontamentos do relatório Sofi e os desafios para o enfrentamento do quadro da fome no mundo?
O Relatório Sofi deixa bem claro que ainda estamos muito longe de alcançar o ODS 2 e o ODS 1 (compromissos da Agenda 2030). Atualmente, as projeções são de que 582 milhões continuarão a sofrer de subnutrição crônica até 2030. Portanto, as projeções são bastante altas. Ainda assim, hoje temos até 757 milhões de pessoas passando fome, isso significa que uma em cada 11 pessoas no mundo, é muito alarmante. Do lado positivo, a América Latina tem melhorado. E também, a diferença entre a subnutrição e a fome das mulheres para os homens, que aumentou bastante. A diferença de risco após a pandemia de Covid-19 também está diminuindo, passando de uma lacuna de 3,1% para 1,2%. Isso também é uma boa notícia, mas as causas profundas da fome continuam presentes.
De acordo com o relatório, cerca de 14,7 milhões de pessoas deixaram de passar fome no Brasil em 2023. A insegurança alimentar severa, que atingia 17,2 milhões de brasileiros em 2022, caiu para 2,5 milhões no ano passado. Ao que podemos atribuir a melhora desse quadro?
Podemos ver que as políticas públicas atuais e o foco do governo estão na desigualdade, no combate à pobreza, no combate à fome. O apoio através de redes de segurança social, bem como o foco de muitos estados, são muito importantes. Esse trabalho envolve os programas de proteção social, apoio a áreas rurais, programas de alimentação escolar e uma série de transferências monetárias. No centro disso, para nós, está a agricultura familiar, que é como também podemos apoiar a agenda. Acho que a principal diferenciação do Brasil em relação a outros países e seu sucesso, mesmo diante do aumento da fome e da pobreza no último ano, é o compromisso político. Vimos aqui no G20 a liderança do presidente Lula, lançamos a Aliança Global para a Fome e a Pobreza, isso é uma prova do enfoque do atual governo na desigualdade e no combate à pobreza e à fome.
Qual o papel da agricultura familiar no combate à fome e à pobreza?
Está comprovado que o caminho mais rápido para sair da fome e da pobreza é por meio de investimentos em agricultura em áreas rurais. Os agricultores familiares, especialmente os pequenos produtores, são mais afetados pela inflação dos preços dos alimentos, dos fertilizantes e pelo aumento dos preços da energia. Isso torna mais caro para eles operarem. Eles estão passando por um momento muito difícil, principalmente por causa dos choques climáticos, quer estejamos falando de secas, quer de saúde do solo, que também é muito importante para eles. Esse ambiente é muito mais desafiador para se operar. É por isso que acreditamos que eles precisam estar na pedra angular de muitas das políticas públicas relacionadas aos sistemas alimentares e à agricultura. Em muitos casos, os agricultores familiares são também um importante contribuinte para o crescimento econômico, para o emprego e para o rendimento. Portanto, é importante continuarmos a apoiar o ecossistema e a apoiar muitas dessas empresas rurais, que geralmente são micro, pequenas e médias empresas.
A falta de acesso econômico a dietas saudáveis continua sendo um problema crítico? Como enfrentar isso?
Mais de uma em cada três pessoas no mundo, cerca de 3 mil milhões, não podem pagar uma dieta saudável. Na África estamos falando de 71% da população, o que é extremamente preocupante. Em países de baixo rendimento, se você comparar isso com os países de alta renda, são 6%. É muito claro que a inflação dos preços dos alimentos, e muitas vezes algumas normas culturais e sociais, tornam mais difícil o acesso a alimentos nutritivos para os mais pobres, especialmente nas zonas rurais, onde não são realmente capazes de pagar por essa dieta saudável. Isso também tem consequências, em termos de custos de saúde, e em termos da capacidade global de levar uma vida digna, em termos de acesso a alimentos nutritivos.
O Fida deu início a um novo ciclo de investimentos globais, algum aporte deve ser destinado ao Brasil? Se sim, para onde será direcionado?
Atualmente nosso portfólio no Brasil ultrapassa mais de US$ 1 bilhão dos quais aproximadamente US$ 140 milhões vêm de financiamento próprio. Já estamos trabalhando com vários estados e com o governo para tentar ver qual será a nova pasta. A nova carteira continuará muito focada no Nordeste, no Norte, na Amazônia e sempre nos pequenos produtores. É muito cedo para dizer quais serão os novos investimentos, mas claramente o Brasil será um dos países mais importantes do nosso portfólio.
Quais projetos financiados pelo Fida já estão em andamento hoje no país?
Bom, nós temos uma série de projetos no Nordeste, no semiárido nordestino, especificamente. Eles estão relacionados à adaptação climática, às suas cadeias de valor. Começamos a nos envolver na Amazônia, na região da mata atlântica do Nordeste, e também em Minas Gerais. Esses serão alguns dos portfólios futuros e portfólios atuais importantes.
Quais são as expectativas quanto às sinalizações dadas pela Aliança Global contra a Fome e a Pobreza?
O Brasil tem demonstrado uma liderança e compromisso muito forte com o mundo, colocando essa Aliança Global no G20, que está sob sua presidência. E, como disse, centra-se muito na abordagem das desigualdades e na promoção da inclusão social. É claro que muitas das políticas que foram implementadas no Brasil, como o Bolsa Família, têm sido muito eficazes no combate às causas profundas da desigualdade e da pobreza. Agora seremos inspirados por essas experiências e também tentaremos garantir que possam ser implementadas muitas das lições aprendidas em outras partes do mundo. Vamos estruturar um novo secretariado e esperamos que quando a Aliança for lançada, em novembro, tenhamos detalhes mais claros e específicos sobre como isso será implementado em todo o mundo. O Fida é obviamente um dos principais parceiros. Todos os nossos programas cumprem muitas das características dessas características, que são de propriedade local, implementados pelo governo, centram-se nas comunidades mais vulneráveis e marginalizadas, nas mulheres rurais, nos jovens rurais e nos povos indígenas. Essas práticas também são do Fida, é assim que nossos programas estão sendo desenhados atualmente.
Num momento com grande enfoque na crise climática, como a agricultura regenerativa pode ser uma das respostas à questão ambiental?
Muitos dos agricultores familiares estão atualmente lutando para liderar o seu próprio negócio e a sua própria produção. O que é importante é que qualquer uma das medidas e qualquer um dos programas relacionados com a forma como a agricultura regenerativa pode apoiar o planeta e as alterações climáticas pode beneficiar também os pequenos agricultores. Acreditamos que a agricultura regenerativa e a agroecologia são duas formas de tentar aliar a produção alimentar a um apoio e defesa da biodiversidade, apoiando a redução das emissões no clima. Mas esses programas também precisam de se concentrar na forma como os pequenos agricultores rurais podem se beneficiar deles. Por exemplo, em termos de financiamento climático global, apenas 0,8% desse montante vai realmente para esses pequenos agricultores.
Quais os principais desafios para os produtores nesse cenário, visto que muitos não têm capacidade de se preparar para os eventos climáticos extremos?
Para nós, a adaptação é uma prioridade. Do nosso financiamento climático, 90% vão para a adaptação, e precisamos aumentar os investimentos dos bancos públicos de desenvolvimento, do setor privado e de outros parceiros para acompanhá-lo. Alguns exemplos dessas soluções são culturas tolerantes à seca, sementes resistentes à estiagem, sistemas de irrigação que se concentram na gestão da água, sistemas de alerta precoce, gestão dos solos de uma forma que também os torne mais produtivos, diversificando as culturas. Penso que a infraestrutura é resistente ao clima, por isso temos muitas soluções. O importante é que os vemos como investimentos que ajudarão muitos dos pequenos produtores a produzirem de uma forma melhor, que também apoie o planeta.
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