Entrevista

'A inflação era como um vício, uma droga', diz Gustavo Franco

Um dos pais das mudanças, o economista faz um balanço dos 30 anos da moeda brasileira, fala dos riscos e desafios da reforma monetária e critica a nova meta contínua de inflação proposta pelo atual governo: "É trocar seis por meia dúzia"

Um dos pais do Plano Real, o economista Gustavo Franco, sócio-fundador e senior advisor da Rio Bravo Investimentos, participou do processo do desenho da reforma monetária coordenada pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, desde o início. Ao fazer o balanço desses 30 anos da atual moeda, ele conta que a sensação é boa, de dever cumprido. Ele lembra que o país conseguiu domar a hiperinflação e o plano conseguiu se manter.

"A inflação era como um vício, uma droga, que colocava o país numa espécie de transe e que distorcia, não só as coisas objetivas da economia, como também, os valores no sentido mais amplo da coisa", destaca o economista.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Qual é o sentimento ao fazer o balanço desses 30 anos de Plano Real?

É uma sensação muito boa. Cumprimos a missão (de combater a hiperinflação). Dá para dizer que a missão estava cumprida na altura do 5º ano e faltava só um teste para o novo arranjo institucional que nós criamos, que era a sucessão presidencial. Esse arranjo passaria a ser gerido pela oposição, o que aconteceu na virada de 2002 para 2003, e esperava-se que a oposição tocaria os arranjos, as instituições, exatamente como nós, ou com alguma diferença menor. E foi exatamente o que aconteceu. Isso era, assim, o toque final. O Plano Real já estava bem-sucedido. Não demorou 30 meses para a inflação cair abaixo de 10% ao ano, no acumulado de 12 meses, no começo de 1997. E, em 1998, no acumulado do ano, foi de 1,6%. Ou seja, em matéria de derrubar a inflação, podíamos dizer que o plano estava completo. Era preciso ajeitar os regimes cambial e fiscal, ou seja, mudar o mix e fortalecer esse mix para o restante da vida, o que ocorreu em 1999. E, quando chegou 2002, na hora da mudança de governo, estava tudo já resolvido, de tal sorte que o novo governo assumiu e não mudou nada, rigorosamente nada.

Como foram as reuniões para desenhar o Plano Real?

Em retrospecto, eu vejo que a fase de execução foi mais importante do que normalmente se considera. Há uma certa mistificação quanto à ideia de o plano ter sido concebido por algumas mentes privilegiadas, no fim de 1993, de que foi tudo pronto, era só apertar um botão e está tudo resolvido. Não é assim que funciona a vida real dos planos econômicos. É um processo muito mais complexo, onde, sim, ao longo do ano de 1993, nós tínhamos uma equipe de seis ou sete economistas vindos da PUC-RIO, que tínhamos muitas ideias pousadas sobre estabilização, misturando o Larida (dos economistas André Lara Resende e Pérsio Arida), que é um trabalho de 1984, ou seja, de 10 anos antes. Tinha as experiências de outros países com inflação parecida com a nossa, tinha coisas novas que ainda podiam ser tentadas. E a solução, alinhavada no fim de 1993, estava muito vaga e virou uma coisa mais concreta só no mês de fevereiro de 1994, em torno da escritura da medida provisória que criou a URV, a Unidade Real de Valor. Depois, foi uma encrenca atrás da outra. Você meio que refaz o curso, a jornada, todos os dias, várias vezes ao dia, às vezes.

O que levou a sociedade a aceitar rápido o uso da URV, da tabelinha de conversão e entender o processo de mudança?

A sociedade brasileira aprendeu muito com a experiência da inflação e com os planos fracassados. Não dá pra dizer que, em matéria de educação financeira, o Brasil é subdesenvolvido, ao contrário. Os nossos agentes, as donas de casa, os empresários, durante esse período da hiperinflação, tinham uma espécide de PHD em sobrevivência financeira. Todo mundo sabia funcionar, sobreviver em condições muito difíceis. Acho que o segredo do sucesso da URV foi aprender sobre como as pessoas faziam para viver com uma inflação tão absurdamente alta e, por aí, tentar desenvolver a reconstrução da moeda nacional.

Foi uma surpresa o fato de que, quando saiu o real, o dólar depreciou e passou a valer menos de R$ 1?

A gente esperava, sim. Na ocasião, o diretor da área externa do Banco Central operava diretamente a mesa de câmbio e sabia que o Brasil estava vivendo um momento de excesso de entrada de dólar. Tanto que, nos dois anos anteriores ao Plano Real, o Banco Central comprou dólar todos os dias. E, aí, a sensação era: no dia em que o Banco Central não comprar dólar, a taxa de câmbio vai derreter. Eu guardei esse pensamento comigo. E, quando o real entrou em circulação, não comprei dólar para ver o que acontecia. E aconteceu isso. O real se fortaleceu, o dólar caiu.

Por que ninguém quer viver de novo com hiperinflação? O senhor que estudou muito isso…

Eu fui para o exterior estudar essa doença, que é uma doença rara. Estudei muitos casos, em muitos países com hiperinflação, como a Alemanha, e a coisa que mais me impressionava, voltando para o Brasil, era que o país estava sofrendo uma hiperinflação, mas era proibido falar essa palavra. Eles diziam: a hiperinflação é quando vira bagunça. E eu disse: desculpa, não é não. É isso aqui mesmo que a gente está vivendo. Isso é uma hiperinflação.

Diga-se de passagem, com aquele monte de zeros cortados, carimbos nas cédulas…

Pois é. Tivemos esse truque que a Alemanha não usou. Poucos países usaram o nosso truque de cortar zeros, que é fazer uma reforma monetária onde não muda nada. A gente fez cortes de zeros, se eu não me engano, cinco ou seis vezes. Já perdi a conta. E, quando você começa a somar, dá tanto zero, que fica meio tonto.

Sobre o futuro do real, o senhor acha que ele consegue sobreviver por mais 30 anos?

Acho que sim, mas estamos sujeitos a riscos que qualquer país precisa enfrentar. São riscos normais. Não tem país neste planeta que não tenha alguma encrenca orçamentária e fiscal, que não tenha uma conversa sobre o excesso de endividamento público. A dívida pública é um problema intergeracional, é uma fórmula de gastar hoje e mandar a conta para os nossos filhos e netos. Todos os países do mundo têm esse mesmo problema, seja no Orçamento público, seja no desenho do sistema previdenciário. Não estamos vivendo nada muito diferente de outros países. Aqueles problemas superlativos da época da hiperinflação, felizmente, ficaram para trás.

A independência do Banco Central, algo previsto no Plano Real mas que só ocorreu no governo anterior, está ameaçada?

Esse é um assunto que esteve presente no Plano Real desde o início. E essa lei de 2021, a Lei Complementar 179, foi um sucesso. O que ela fez foi tratar o Banco Central como se trata todas as outras agências reguladoras, onde os dirigentes têm um mandato de quatro anos e que não necessariamente coincide com o mandato do presidente da República. E é assim que tem que funcionar, porque a agência reguladora é para ser tocada por técnicos e não por políticos, nem por gente amiga do presidente.

Qual foi o principal legado que o Plano Real deixou para a sociedade?

São muitos, tanto quanto eram os efeitos negativos da inflação sobre o organismo econômico. A inflação era como um vício, uma droga, que colocava o país numa espécie de transe e que distorcia, não só as coisas objetivas da economia, como também, os valores no sentido mais amplo da coisa. Ficamos um país mais malandro, buscando levar vantagem em tudo por causa da inflação. Era um ambiente que estimulava esse tipo de comportamento, deseducando as pessoas quanto aos valores, não apenas monetários como valores humanitários. Então, é incalculável o estrago que a inflação nos causou e também, da mesma forma, a sensação boa que veio depois que a inflação sumiu e muita gente descobriu como era ruim a inflação.

Como o senhor avalia a nova meta de inflação? Esse modelo de meta contínua é uma evolução do sistema atual ou vamos ter um retrocesso?

Eu acho que é um tremendo seis por meia dúzia.

Por quê?

Porque não muda nada significativo, apurar em 12 meses ou apurar no mês do ano calendário. Fica uma dúvida sobre quantas cartas de descumprimento o presidente do Banco Central, o recalcitrante, vai ter que assinar. Esses pequenos detalhes operacionais não são tão relevantes. Acho mais significativo o fato de esse governo subscrever o sistema de metas, inclusive, pretender aperfeiçoá-lo.

E como o senhor vê o papel do regime de metas? Desde 1999, houve sete cartas do BC, sendo seis de estouro do teto e uma de rompimento do piso. O regime está conseguindo sobreviver?

O balanço é muito bom. O rompimento de piso não devia ser um critério para determinar fracasso ou falha da ação da autoridade. O regime se estabeleceu sobretudo pelos seus primeiros anos, quando pegou a transição. Os primeiros anos foram anos em que internacionalmente o sistema de metas não estava estabelecido ainda. No meu tempo, não existia o sistema de metas de inflação. Era outra cultura. Precisou haver alguns anos de inflação muito baixa, como foram 1997, 1998, para que, em 1999, as metas de inflação pudessem ser adotadas com a inclinação correta.

 


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