Apesar da atividade econômica ter surpreendido positivamente em 2023, o quadro fiscal piorou visivelmente e analistas demonstram preocupação com relação às contas públicas em 2024. O consenso entre os especialistas ouvidos pelo Correio é que a promessa de deficit zero — prevista na meta fiscal da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) deste ano — não será cumprida e, muito menos, até 2026, no fim do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Para os otimistas, é possível que o rombo fiscal seja zerado em 2027, já os conservadores não veem isso acontecendo antes de 2031 ou 2032.
Com as projeções de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) deste ano em torno de 1,6% — praticamente metade da alta de 3% prevista para o PIB de 2023 — , os desafios do governo para equilibrar as contas serão maiores, segundo os especialistas.
Eles lembram que não haverá a mesma licença para gastar de 2023, autorizada com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, que ajudou a inflar os gastos em mais de 2% do PIB. Não à toa, as previsões para o rombo fiscal deste ano variam entre 0,6% e 1,1% do PIB, menor do que os 2,1% do PIB contabilizados em 2023, ou R$ 230 bilhões — o segundo pior resultado nominal desde 2020, ano da pandemia da covid-19 — devido aos riscos fiscais que permanecem pelo caminho. Entre eles estão as medidas de aumento de gastos aprovadas pelo Congresso, como a volta da desoneração da folha de pagamentos — cujo veto presidencial foi derrubado pelo Congresso — e a medida provisória que trata da reoneração, MP 1202/2023, editada no apagar das luzes do ano passado e que deverá ser substituída para não ser devolvida pelo Legislativo.
De acordo com o economista-chefe da Warren Investimentos, Felipe Salto, mesmo com o governo cumprindo o arcabouço fiscal e melhorando, gradativamente, o resultado das contas públicas, o equilíbrio fiscal só deverá ser alcançado entre 2031 e 2032. "A dívida pública vai continuar crescendo, mas a taxas decrescentes. Isso já é melhor do que nada. Não é um cenário dos sonhos, mas é um cenário de controle, e, com a curva de juros melhorando a médio prazo, o custo médio da dívida diminui um pouco. Uma coisa puxa a outra", explica.
Na avaliação de Salto, se o governo Lula conseguir passar por 2024 "sem fazer nenhuma estripulia, ou seja, sem mudar a meta de 2024 e sem fazer mudança no arcabouço fiscal, por exemplo", é possível ter um resultado muito bom, que é ganhar a credibilidade do mercado e dos investidores", afirma. "O que é preciso é manter esse rumo. As pressões para sair do rumo, sair da rota vão ser grandes e vão estar constantemente presentes, inclusive o fogo amigo. Agora, enquanto o ministro (Fernando) Haddad estiver no comando, dá para a gente se preocupar menos porque foi colocada essa diretriz. Mas é claro que, na política, as coisas mudam muito rapidamente, ainda mais em um ano eleitoral", pondera.
Receitas incertas
Analistas lembram que o Banco Central tem mostrado nas atas do Comitê de Política Monetária (Copom) uma preocupação maior com o risco fiscal, em grande parte devido às incertezas em torno do lado da arrecadação.
No comunicado da última reunião, o colegiado voltou a defender o compromisso de cumprimento das metas fiscais quando decidiu reduzir em mais 0,50 ponto percentual a taxa básica da economia, para 11,25% ao ano. Fontes qualificadas do Banco Central estimam que, apesar da aprovação de várias medidas da agenda da Fazenda para ampliar receita, ainda faltarão R$ 90 bilhões para o governo conseguir cumprir a meta de deficit primário zero prevista na LDO deste ano.
Apesar de o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, e o ministro Fernando Haddad, afirmarem que será possível contar com os R$ 168,5 bilhões de receitas provenientes de medidas legislativas enviadas ao Congresso no ano passado para cumprir a meta fiscal deste ano, analistas alertam que apenas uma parte desse montante está garantida. Pelas contas da economista Alessandra Ribeiro, sócia da Tendências Consultoria, só será possível chegar a R$ 70 bilhões desse montante. "Vai demorar, na nossa avaliação, para eles (integrantes da equipe econômica) conseguirem estabilizar o resultado", diz a especialista. As projeções da consultoria apontam para saldo negativo de 0,8% do PIB em 2024 e que, apenas em 2028, o rombo fiscal será zerado.
Pelas contas do economista-chefe da Ryo Asset, Gabriel Leal de Barros, restará ainda um buraco de R$ 70 bilhões das receitas previstas nas medidas enviadas ao Congresso para conseguir zerar o rombo das contas públicas de 2024. Ele prevê rombos de 0,7% do PIB, neste ano, e de 0,6% do PIB, em 2025. "O governo só conseguirá equilibrar as contas a partir de 2027", aposta. Segundo ele, uma das medidas para ampliar a receita que deverá ser adotada pelo governo neste ano é a volta da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), que está zerada sobre os combustíveis. Segundo Barros, aprovar novas medidas pelo lado da receita e adicionar ações fiscais pelo lado do gasto cria o risco de fragilizar o arcabouço fiscal, "que é pouco restritivo de origem".
Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, acredita que o deficit fiscal só será zerado a partir de 2027, e portanto, há risco de novos resultados negativos até o fim do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. "Acho difícil novas medidas tributárias e essa discussão de mudança de meta fiscal vai ficar presente todo o ano. E, no ano que vem, a meta de superavit de 0,5% do PIB já vai ser bastante difícil de alcançar. Seriam R$ 350 bilhões a mais na arrecadação até 2026 para o governo fechar a conta, o que é muito difícil", destaca.
Para Vale, o cenário fiscal será desafiador neste ano, mas não chega a ser trágico e ele também prevê que o governo vai ter frustração nas receitas. "Na melhor das hipóteses, em que com um conjunto de impacto via crescimento e esforço arrecadatório, o governo pode conseguir metade disso, R$ 90 bilhoes. Ainda assim, o deficit seria do mesmo montante, totalizando 0,8% do PIB. Dado que o impacto das commodities será muito menor do que foi nos ultimos três anos, o governo não conseguirá acelerar a arrecadaçao via royalties ou dividendos", alerta. Pelas contas dele, como o limite da meta fiscal e de um deficit até 0,25% do PIB, podendo chegar a R$ 28 bilhões, o governo precisaria ainda achar mais R$ 60 bilhões de arrecadação ou contingenciar um valor maior. "Ambas são opções difíceis", pontua.
Desafios
A previsão da Instituição Fiscal Independente (IFI) para o rombo fiscal deste ano é uma das mais pessimistas, de 1,1% do PIB, mas a diretora da entidade, Vilma Pinto, reconhece que os cálculos ainda são de novembro e as projeções estão sendo revisadas neste mês. "Os primeiros meses serão decisivos para o cenário das receitas, e aí vamos vonseguir ter uma ideia do sucesso ou não das medidas aprovadas no ano passado", afirma. Ela reconhece que o pagamento antecipado dos R$ 92,4 bilhões em precatórios no fim do ano passado poderá impactar positivamente na atividade econômica, aumentando a massa de rendimentos e, consequentemente, o consumo das famílias. "Se isso acontecer, poderá haver um impacto positivo no PIB e na arrecadação deste ano", explica.
José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator, ressalta, por sua vez, que os dados do resultado primário do governo central em 2023, com rombo de R$ 230 bilhões, foram agravados pelo pagamento de precatórios herdados do governo anterior. Mas, mesmo descontada essa despesa, o saldo negativo ainda foi elevado, de R$ 140 bilhões, refletindo o aumento das transferências como Bolsa Família, e queda da arrecadação de receitas não tributárias, como dividendos, concessões e royalties de petróleo. Por conta das dificuldades que o governo continuará enfrentando para equilibrar as contas neste ano, Gonçalves acha que o contingenciamento de despesas logo no início deste ano "é o mais provável". "Acho que o ministro Haddad vai buscar um pouco de meta nova e um pouco (menos) de contingenciamento", acrescenta.
O economista Rodolfo Margato, da XP Investimentos, também não prevê que o atual governo conseguirá entregar deficit zero até 2026. Em relação a 2024, ele ressalta que, no ambiente doméstico, há muita incerteza em relação ao Orçamento e sobre como se dará a execução das despesas. "O cenário é de incertezas em relação à questão fiscal e à atividade econômica", afirma ele, que estima avanço de 1,5% do PIB neste ano, metade do avanço previsto para o PIB de 2024. Pelas projeções da XP, o rombo fiscal do governo central neste ano será de 0,6%, um dos menores previsto pelo mercado. Contudo, para 2025, a perspectiva é de piora, pois o deficit subirá para 1,1%, do PIB, elevando a dívida pública bruta para 80,6% do PIB, bem acima dos 75,2% do PIB previstos para 2023.
O economista e especialista em contas públicas Guilherme Tinoco, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), engrossa o coro sobre os alertas de que será muito difícil conseguir o resultado primário zerado neste ano, "por mais que o ministro tenha e esteja se esforçando muito e tenha conseguido, em termos de aprovação da agenda no Congresso, um resultado muito bom". E enfatiza a "incerteza em relação ao potencial das medidas". "Tem a questão da judicialização, que pode aparecer em algumas delas e, além disso, mesmo se tudo entrar, também tem a questão do calendário", afirma.
Na avaliação de Tinoco, uma das principais medidas legislativas arrecadatórias, a que recuperou o voto de qualidade do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), só terá algum impacto positivo para as contas públicas a partir de 2025. "A receita esperada pode demorar, porque tem uma questão do calendário, que demora para cair. Portanto, seria mais para 2025 se for tudo do jeito que o governo pensou", ressalta. Ele alerta ainda para a questão da Previdência Social, que, mesmo depois da reforma de 2019, continuará com deficit crescente por conta do envelhecimento da população.
"Há desafio enorme dentro da despesa, tomando o limite de despesa como dado, independentemente de qual seja, existe uma agenda importante de análises de rubrica em rubrica e é bom lembrar que o Ministério do Planejamento está participando disso com a avaliação de alguns programas. É bom que ele comece a gerar resultado, para o governo poder direcionar recursos para programas mais eficientes e fazer políticas que sejam melhores para a população."
Felipe Salto, da Warren, lembra que a melhora da nota de crédito do Brasil pela Standard & Poor's, no fim de 2023, reflete a recuperação gradativa do ministro Haddad junto ao mercado. "Eu continuo achando que ele tinha um programa fiscal razoável e tem seguido essa direção. A melhora da nota de classificação de risco reconhece, de certo modo, os avanços do primeiro ano do governo. Mas o país tem um problema fiscal estrutural, que não vai ser resolvido a curto prazo. Mas a tendência, se for seguir a lógica da regra fiscal que foi aprovada pelo Congresso, é de que as contas públicas melhorem pouco a pouco", destaca. (Colaborou Edla Lula)
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