Com o aquecimento global e a pressão pela descarbonização da economia, o setor da energia nuclear está confiante na liberalização do segmento no país e a constituição de parcerias público-privadas com o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a construção de ao menos nove novas usinas com investimento privado. Para o presidente da Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Atividades Nucleares (Abdan), engenheiro Celso Cunha, sem a ampliação nuclear, o mundo não conseguirá fazer a transição energética para a descarbonização da economia, mas o setor ainda enfrenta receio e desconhecimento do público.
Cunha aponta que o Brasil tem uma rara oportunidade de ocupar o protagonismo no setor, já que é um dos três países que dominam todo o ciclo nuclear, com tecnologia nacional e uma das maiores reservas de urânio do mundo. Ele entende que, sem mais usinas nucleares, o país enfrentará mais apagões, com a instabilidade das fontes eólica e solar. Comemorando a sexta edição do evento Brasil Nuclear Legacy, promovido pela entidade em Brasília, nos últimos dias 7 e 8, o engenheiro cita a participação não só do setor privado, mas também de ministros do governo Lula, parlamentares e do comandante da Marinha, almirante Marcos Olsen.
O Correio conversou com Cunha, que lembrou outras aplicações da tecnologia, como na medicina e na agricultura. Veja os principais trechos da entrevista:
O que o setor nuclear espera do governo?
Ainda temos muitas amarras. Hoje, só o setor público pode construir usinas nucleares, isso é um absurdo. O controle precisa estar no combustível, e isso o Brasil já tem. A construção de uma usina pode ter um mix entre construção, operação e exploração da iniciativa privada e do governo. Uma das nossas propostas é a flexibilização desse monopólio para a construção de mais usinas nucleares. Assim, em vez de o governo ter que botar dinheiro na construção de mais usinas, deixa para a iniciativa privada construir e explorar, podendo usar o dinheiro em outras prioridades.
De quantas novas nucleares o Brasil precisa?
O Plano Nacional de Energia 2050 aponta de 8 a 10GWh em novas plantas nucleares. Isso equivale a nove usinas com a potência de Angra III. Mas a construção vai depender do cenário elétrico nacional. Hoje ele está recessivo, com o consumo em baixa e a tarifa nas alturas. O mercado está altamente desregulado, é um problema grande. Esse negócio de subsídio (ao setor elétrico) é outro absurdo. Podemos falar, já que não temos nenhum. Alguém vai acabar perdendo e, dessa vez, não poderá ser o povo.
Mas não está sobrando energia?
Temos muita solar e eólica, mas elas oscilam e estão provocando pressão em um sistema que não foi preparado para isso. Com os linhões, mesmo se você escoar para Sudoeste e Sul, na hora em que oscilar lá no Nordeste, transborda para cá. Foi o que aconteceu no apagão de 23 de agosto, quando o sistema sofreu uma oscilação muito forte na rede e aconteceu um efeito em cascata. Voltou mais rápido no Rio de Janeiro, onde Angra segurou o tranco, as térmicas a carvão de Santa Catarina também aguentaram. Já as hidrelétricas, que estavam segurando a flutuação inteira, foram arrastadas. Nossas usinas não foram projetadas para isso, hoje, 40% delas têm mais de 40 anos, precisamos trocar essas turbinas antigas para aguentar esse tipo de tranco, mas isso significa alguns trilhões de dólares. Já uma usina nuclear, de 1.600MW, abastece uma cidade como o Rio de Janeiro e custa uns US$ 6 bilhões.
A nuclear é a solução para o Brasil?
Sem dúvida, nós poderíamos ter mais usinas no centro de carga, no Sudoeste, mais alguns reatores no Nordeste. No Norte, eu botaria algumas dessas pequenas centrais na Amazônia. A Marina (Silva, ministra do Meio Ambiente) vai querer me matar, mas para que construir aquela linha que a gente não consegue construir nunca se podemos botar um pequeno reator e resolver amanhã? A Marina e todos os ambientalistas mudaram para o nuclear, isso são declarações dela, isso não quer dizer que ela vai querer colocar no meio da Amazônia.
As outras fontes não são limpas?
Ninguém fala, mas o solar e o eólico têm mais dispersão radioativa que o nuclear. Não sou eu que digo isso, é a ONU. Para produzir os painéis solares e os rotores das eólicas, utiliza-se um material chamado terra rara. Você movimenta um volume de particulados imenso para extrair o material e essas partículas vão todas para a atmosfera como radiação pura. Então, quando você olha a cadeia produtiva como um todo, o nuclear é mais o bem-comportado de todos porque ele é controlado, os outros não têm controle no processo. O mundo precisa de energia firme, estável. A nuclear é o que nós chamamos de energia de base, as hidrelétricas, que foram feitas para ser base, mas, hoje, elas estão começando a ser uma grande bateria, porque estão fazendo essa compensação de energia no sistema, mesmo sem serem preparadas para esses trancos. Foi o que aconteceu no apagão de agosto. Isso é a dor do crescimento no uso de algumas tecnologias sem que o sistema esteja pronto. Os apagões virão.
A solução para os apagões é o uso da nuclear?
Sem energia de base, não se consegue estabilidade no sistema. As hidrelétricas podem fornecer isso, mas estão sendo deslocadas para fazer a compensação no sistema, e também as térmicas. Aí tem as térmicas a carvão, óleo, gás e a nuclear. Dessas, só a nuclear é limpa. Na geração de energia nós temos Angra 1, 2 e esperamos a conclusão de Angra 3. O Brasil está em um grupo de apenas três países que têm tecnologia, dominam o ciclo nuclear e têm o combustível, o urânio. A libra (pouco menos de meio quilo) de urânio bruto está na casa de US$ 75. Para se ter uma ideia do que isso representa, o Brasil tem a 5ª maior reserva de urânio do mundo, isso estudando apenas um terço do território. Já sabemos, sem mensuração, depois de análises por satélite que um outro terço do território também tem urânio. Com essas imagens já podemos garantir que somos ao menos a segunda reserva de urânio do mundo.
O Brasil quer ser uma potência nuclear?
O mais importante disso tudo é a gente saber que está faltando urânio no mundo. Durante a COP 26, saiu uma declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Agência Internacional de Energia Atômica (OIEA), dizendo que, sem nuclear, não tem transição energética, esquece. Não é possível produzir esse volume de energia com as demais fontes, para fazer a descarbonização do planeta. Hidrelétrica, por exemplo, o Brasil já não tem condições de construir mais, nos melhores lugares já foram construídas, a as pequenas centrais hidrelétricas são muito dependentes do fluxo dos rios, funcionam igual a um vaga-lume, uma hora tem, outra hora não. O mesmo acontece com a solar e a eólica. Não vamos mais conseguir grandes reservatórios mais, primeiro porque não tem onde, e um segundo motivo é que a questão ambiental está muito mais forte ainda.
E a mineração?
O setor de mineração de urânio foi flexibilizado no ano passado, com isso a iniciativa privada pode extrair urânio, mas tem que entregar para a INB (Indústrias Nucleares do Brasil), uma estatal, e só ela pode comercializar e produzir combustível. Mas só nisso já se ganhou muito, com mais gente cavando buraco, um buraco radioativo, porque se tira urânio dali, então não é qualquer mineradora que pode fazer. No Ceará, está para sair uma licença ambiental para a Galvani, em uma parceria com a INB, que é dona da lavra. A Galvani vai tirar o fosfato para agricultura, porque mais de 90% da mina é de fosfato e vai entregar em formato de royalty todo o urânio que sair da mina.
Qual o tamanho desse mercado?
Tem 52 novas usinas sendo construídas no mundo e mais 400 em projeto. Mas só na demanda de hoje temos um deficit de 6 mil toneladas de urânio. Estamos falando em algo da ordem de US$ 80 bilhões só em urânio. Nós somos, hoje, a 7ª maior reserva e compramos urânio de fora para beneficiar. Isso é um absurdo total. Eu sou contra vender minério bruto para fora do país. Se nós sabemos fazer o combustível aqui, vamos vender o combustível, adicionar valor agregado, vamos produzir aqui. Mas, para isso, precisa expandir a INB. Hoje a INB não é mais dependente do Orçamento da União, então, ela tem capacidade de gerar o seu dinheiro e ser ampliada. A empresa tem o monopólio de todas as lavras de urânio do país, mesmo aquelas ainda não descobertas.
E como ampliar o setor?
O deputado Júlio Lopes (PP-RJ) da Frente Parlamentar de Desenvolvimento de Tecnologias e Atividades Nucleares, está com uma proposta de impulsionar o setor com uma estratégia de securitização que ajudaria a financiar o desenvolvimento do reator, do submarino, terminar Angra 3, além de construir aquilo que chamamos de pequenos reatores modulares — a sensação tecnológica do mundo; o Brasil está na porta de entrada disso. É uma tecnologia disruptiva que vai trazer um volume de energia em pequeno espaço, pode nos ajudar a produzir o aço verde, se colocado dentro de uma siderúrgica um SMR (pequeno reator modular na sigla em inglês). Para isso, também precisamos alterar algumas regulações da mineração do urânio para ampliar essas possibilidades.
Pequenos reatores?
Isso é uma grande aposta, a gente vem conversando muito com o Mdic (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços) para trazer estes pequenos reatores nucleares. A grande vantagem é que esses reatores são pequenos e você produz em fábricas, igual a uma geladeira, mal comparando. Eles vêm certificados é só colocar no local. É uma usina nuclear de pequeno porte, alguns nem precisam de água na refrigeração. E o tempo de reabastecimento, é de três anos, com alguns modelos em que se troca apenas a cada 10 anos, então, a disponibilidade dele passa de 98%. Esses reatores geram subprodutos e são capazes de produzir, além de eletricidade, o hidrogênio, podem ser usados para dessalinizar a água além de produzir calor. A primeira utilização deles é na siderurgia. Se aproveita o calor e a energia elétrica dentro de uma siderúrgica, com uma pegada de carbono zero, pode se produzir o aço verde, o que agrega valor ao produto.
Quanto custa um gerador destes?
Custa aproximadamente US$ 1,5 bilhão para 300MWh. Com um reator desses, a energia vai estar abaixo dos US$ 40 (por megawatt hora), que é o valor na solar e eólica, já com os subsídios. Os empresários da siderurgia estão altamente entusiasmados com a solução. Acabamos de fazer um seminário e trouxemos um empresário que tem 12 siderúrgicas nos Estados Unidos. Ele disse que vai instalar em todas as unidades. Nós estamos trabalhando bastante com o Mdic para possibilitar a construção no Brasil desses micro reatores. Isso seria uma solução para abastecer cidades inteiras, em especial, em regiões isoladas, como na Amazônia.
Além de eletricidade?
A medicina nuclear é outro foco nosso. Todo o tratamento e diagnóstico do câncer, por exemplo, é feito por radioisótopos. Nós não produzimos o molibdênio no Brasil, que é o material básico para produzir a maioria dos radioisótopos. Mas conseguimos, agora, convencer o governo e a ministra de Ciência e Tecnologia (Luciana Santos) liberou recursos do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para construir o RMB (Reator de Multipropósito Brasileiro). Ele vai ter a capacidade de produzir os radiofármacos no Brasil e, depois, distribuir para outras empresas, que fazem os desdobramentos do molibdênio em vários outros fármacos.
Qual o investimento e quando fica pronto?
Esse vai ser um reator público, deve custar uns US$ 500 milhões (cerca de R$ 2,5 bilhões) e ficar pronto em seis anos. Vai ficar em São Paulo, em Iperó, próximo da área onde a Marinha está desenvolvendo o protótipo do reator de propulsão do submarino nuclear. Com esse reator, seremos independentes da importação. Durante a pandemia, esses produtos não chegaram, pessoas morreram por causa disso. Temos ainda muitos problemas na distribuição desses fármacos, alguns têm uma meia vida muito curta, de duas, quatro ou seis horas, então tem que ter uma logística muito afiada. Com o reator podemos trabalhar na interiorização desses tratamentos. Ele, no início, irá atender a toda a nossa demanda, mas não por muito tempo, assim precisamos manter as pontes internacionais. Ainda são poucos os países que têm esses reatores, como Argentina, África do Sul, Holanda, Rússia. O do Canadá estava fechado e reabriu, a Ucrânia tinha, não sei se ainda tem.
O que muda produzindo esse material médico aqui?
A partir do urânio, você gera essas radiações e constrói outros elementos que se desdobram em diversos isótopos de uso médico. Em seis anos, com o reator já funcionando, o problema de ter que importar acaba, e os tratamentos, que hoje temos basicamente no Sudoeste, poderão ser ampliados para regiões mais remotas do país. Trabalhamos em um programa chamado “Tempo é Saúde”, porque a gente entende que se o paciente esperar muito, pode morrer.
Há outras aplicações?
Nós não falamos da agricultura. Você pega uma batata que dura na sua cesta três semanas, no máximo, irradia ela na hora, mata todos os patógenos, atrasa a germinação, e você tem batatas por seis meses. O efeito no ser humano é zero, não fica nem traço da radiação dada a dose. O transgênico, eu tenho as minhas dúvidas, mas o irradiado, eu não tenho. Tem diversas outras utilizações, por exemplo, a igreja da Sé, em São Paulo, teve uma grande restauração de obras de arte que estavam infestadas por cupins. As peças foram todas irradiadas para tratar a praga.
O governo Lula vai abraçar esse projeto nuclear?
Já avançou na construção do Reator Multipropósito (RMB), seria um contrassenso ele não avançar com Angra 3 e com o submarino nuclear, que foi ele que iniciou. A discussão sobre Angra 3, para mim, é toda falsa, é só uma questão de quem vai conduzir politicamente o processo, até porque Angra 3 já está 64% feita. Você gastaria muito mais para desativar do que para terminar a usina. E a perspectiva do mercado nuclear no Brasil é de crescimento, o evento que fizemos em Brasília demonstrou isso. Todas as grandes empresas estavam lá no evento, o governo, ministros, o Legislativo, eu acho que o crescimento não é a galope, porque o Brasil ainda precisa ajustar muita coisa, mas a ainda assim é muito grande e vemos isso na confiança das grandes empresas que prestigiaram nosso evento.