O Plano de Transição Energética é a maior aposta do Brasil a longo prazo para liderar a indústria verde e atrair investimentos privados, mas o país tem uma série de desafios para avançar na "agenda de ouro" e corre o risco de perder a oportunidade de ser protagonista nesse mercado. A avaliação é de Leonardo Euler de Morais, vice-presidente para Assuntos Regulatórios e Institucionais da Vestas na América Latina, empresa dinamarquesa e a maior companhia mundial produtora de turbinas de energia eólica.
Morais presidiu a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), entre 2018 e 2021, acompanhando a chegada do 5G ao Brasil, e, agora, está à frente das transformações no setor de energia. Em entrevista ao Correio, o executivo aponta os principais empecilhos para que o país consiga concretizar as metas de se tornar referência no mercado. "O Brasil está correndo o risco de perder o timing (tempo). Não é sobre você ser o mais competitivo potencialmente, é sobre ser o mais rápido neste momento de colocar uma estrutura de incentivos que vai gerar esse ciclo", alerta.
O vice-presidente destaca que o setor enfrenta, hoje, uma série de distorções que fazem com que o país perca em produtividade na indústria local: "O governo deve priorizar isso. Caso contrário vai acontecer o que aconteceu com a energia solar, vamos ser meramente um importador de equipamentos".
De olho no aumento exponencial de geração de energias renováveis devido ao iminente início da produção de hidrogênio verde, no Complexo do Pecém (CE), a empresa dinamarquesa analisa a ampliação da fábrica da companhia no estado, localizada em Aquiraz, na região metropolitana de Fortaleza.
O executivo conta sobre as expectativas para a cadeia de hidrogênio verde e a geração de energia eólica offshore (no mar), que, segundo ele, deve enfrentar problemas de infraestrutura. "Eu não vejo esses leilões acontecendo antes do fim de 2026, acho difícil e desafiador. Considerando isso, cinco anos depois, já estamos falando de projetos começando a operação para depois de 2031", afirma. Confira a entrevista completa:
Quais são as demandas do setor de energia eólica?
O que a gente precisa é, primeiro, de uma política estruturante para esse novo salto que essa cadeia pode dar, mas, em segundo, também estancar algumas sangrias e endereçar incentivos que estão distorcidos nessa discussão. E um deles que estamos discutindo com o governo e apresentamos formalmente ao vice-presidente Geraldo Alckmin é a questão das turbinas importadas. Hoje em dia, as turbinas importadas têm um tratamento preferencial, ou distributário, em relação àquelas que são fabricadas aqui no Brasil. Qualquer turbina com potência superior a 3.3 megawatts (MW) entra no Brasil sem nenhum tipo de exportação, e a menor turbina fabricada no Brasil é justamente da Vestas, que tem 4.5MW. Nós pagamos todos os impostos para fabricar aqui e, para os 20% que não importamos, ainda pagamos imposto de importação. Mas, quando vem a turbina toda de fora, pagamos zero.
Hoje em dia, para você localizar no Brasil uma nova fábrica, do ponto de vista ortodoxo, é bem questionável. A pergunta é sempre por que não importar, pois vale muito mais a pena. Essa foi uma das razões para que a GE (General Electric), fabricante mundial de aerogeradores, encerrasse seu processo fabril no Brasil. A Siemens Energy hibernou a fábrica deles, recentemente, na Bahia. Por exemplo, uma fábrica de torres de energia eólica não consegue adaptar seu processo fabril para produzir para outro setor, porque o segmento tem suas especificidades. Com uma suspensão temporária ou o encerramento de uma fábrica, todo esse elo começa a sofrer. Isso desmobiliza o movimento dea cadeia e, depois para recuperar, é muito mais difícil.
O governo deve priorizar isso. Caso contrário, vai acontecer o que ocorreu com a energia solar: vamos ser meramente um importador de equipamentos. O Brasil, apesar de ter bons ventos, concorre com outros países por esses recursos a oferta de aerogeradores. Apesar de o país ter a vocação abençoada por natureza, ela não é suficiente nem para eu conseguir consolidar a cadeia para o mercado ter acesso às turbinas. Essa é a mensagem que temos levado para o governo, porque distorções como essas precisam ser endereçadas até para podermos dar um novo salto.
O Brasil corre o risco de ficar para trás na transição energética?
Essa é exatamente a mensagem. O Brasil está correndo o risco de perder o timing (tempo). Não é sobre você ser o mais competitivo potencialmente, é sobre ser o mais rápido neste momento de colocar uma estrutura de incentivos que vai gerar esse ciclo.
E isso pode acontecer mesmo com o Brasil tendo um potencial exportador?
Quando olhamos dados bem interessantes da Bloomberg, por exemplo, do custo nivelado de produção de hidrogênio no Brasil, somos os mais competitivos do mundo, depois, vêm Chile e Argentina. A América Latina está muito bem. Só que isso, por si só, não é uma condição suficiente, mas é um bom ponto de partida. E, para além disso, quando o Brasil conseguir se consolidar e escalar a produção, há uma chance, até mesmo, de exportar aerogeradores. Aqui, o nosso processo fabril é em Aquiraz, no Ceará. De lá para La Guajira, no Caribe colombiano, é quase a mesma distância que para o sul do Brasil. Por que eu não vou exportar para Argentina e Uruguai, que têm os ventos, mas não têm escala e indústria? Temos uma oportunidade muito grande batendo à porta, mas corremos o risco de perder o timing.
Como estão as operações de vocês no Brasil e qual a importância do estado do Ceará e do Porto do Pecém na transição energética?
Nosso processo fabril está localizado lá, e não é só o Ceará, mas o Rio Grande do Norte, o Piauí e a própria Bahia são estados que têm entendido a transição energética como uma oportunidade única para o desenvolvimento do Nordeste. Depois do ciclo da cana, acho que é a grande luz de desenvolvimento da região e da industrialização. Apesar disso, há vários desafios locais que não são só do governo federal, mas do próprio estado também. A logística precisa melhorar muito nesses estados. Hoje, a nossa menor plataforma tem uma pá de 74 metros de comprimento, do tamanho de um Boeing 777 ou de um Airbus 380. Não é trivial essa logística, então, os estados também precisam contribuir muito nas rodovias. Muitas vezes, existem problemas de pontes em que não é possível passar e é preciso dar uma volta de 500km, a logística é pesada.
E quais as expectativas para a escalada da energia eólica offshore, gerada em alto-mar?
Se, em algum momento, vingar o offshore, que será só a partir da próxima década, com certeza, vamos precisar de um processo fabril totalmente diferente. A nossa turbina standard offshore, que já foi produzida e testada é de 15 megawatts. Uma turbina que uma pá dela tem 116 metros e ela, em pé, é do tamanho da Torre Eiffel. É uma magnitude enorme, por isso, a importância da questão logística. No ponto de vista tecnológico e de expertise, estamos muito preparados. Mas existem algumas diferenças, no onshore (em terra). Quando eu fecho com um cliente, vou entregar o parque daqui a 18 meses, ou em dois anos. E, no offshore, não, temos que entregar esse parque em até cinco anos. A complexidade desse projeto é muito maior, as instalações no mar, por si só, já são mais difíceis, os navios de instalação são caríssimos e muito escassos no mundo. É preciso adaptar a zona portuária, entre outras coisas, um mundo muito diferente. Mas não é porque é mais complexo e demora mais tempo que o Brasil pode perder tempo em se preparar. O marco legal que tramita no Congresso, acredito que vá ser aprovado ainda neste ano na Câmara, mas o projeto, em si, vai conferir o direito de uso do prisma ou do polígono no mar, porque aquele espaço é um bem público e o direito de uso dele precisa passar por uma concorrência por meio de um leilão. O projeto de lei é muito mais sobre isso, sobre diretrizes desse leilão e das próprias receitas derivadas, mas depois de ele aprovado tem toda essa regulamentação infralegal. Eu não vejo esses leilões acontecendo antes do fim de 2026, acho difícil e desafiador. Considerando isso, cinco anos depois, já estamos falando de projetos começando a operação para depois de 2031.
Nesse mesmo sentido temos a produção de hidrogênio verde…
Essa demora para a materialização dos offshores não é ruim necessariamente. Acho que, até lá, esse mercado de hidrogênio verde vai ganhando massa e corpo. E, nesse momento, o offshore vai ser muito importante, porque permite uma escala totalmente diferente para produzir o hidrogênio verde. Espero também que esse mercado, mundialmente falando, compreendido pelos estudiosos como um dos vetores energéticos mais promissores, possa ganhar tração para que, com a chegada do offshore, ganhe uma nova escala. A partir disso, você produz a amônia verde, NH3, podendo dar um carimbo sustentável para os biofertilizantes, além de poder produzir metanol. É uma oportunidade de se tornar um polo logístico importante com energia e molécula verde. A partir disso, eu trago mais empresas para cá e muito mais do que energia, isso se torna um projeto de país. Por isso, é um grande ensejo, apesar do que o Roberto Campos já falava: "o Brasil não perde a oportunidade de perder uma oportunidade".
Sobre o apagão que ocorreu em agosto, tivemos inicialmente a suspeita, descartada pelo ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), de que teria sido causado por uma sobrecarga de fontes intermitentes. Como é que o setor de energia eólica avalia essa questão para a expansão do segmento?
Há muito espaço ainda para a participação de energias renováveis de fontes intermitentes, em particular, de eólica, que tem um fator de capacidade maior do que a solar. Acho que esse evento mostra que os modelos do ONS vão precisar se adaptar a essa nova conformação da matriz elétrica. Não adianta também eu querer fazer modelos que representam algo que não é a realidade. O problema não é a intermitência, acho que o desafio é a atualização desses modelos e é o ONS que está fazendo isso.
Quais os principais desafios para que o Brasil deslanche na transição energética?
Primeiro, evidentemente, precisamos de marcos regulatórios previsíveis, tanto para offshore, mercado de carbono… Segundo, precisamos mais rapidamente endereçar essas assimetrias, do tipo das máquinas importadas que têm tratamento preferencial a máquina produzida aqui, não faz nenhum sentido. Não é pedir protecionismo, é isonomia para competir. Em terceiro, acho que o governo precisa endereçar iniciativas para você aumentar a competitividade dessa cadeia no Brasil, endereçando iniciativas a partir de um estudo de valor. Ainda não temos uma visão mais estruturante, é preciso dar uma sinalização melhor para essa cadeia.
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