Lisboa — O governo vai revisar as projeções para a economia brasileira neste ano e no próximo, levando em conta o quadro internacional mais adverso, agravado pela guerra entre Israel e o grupo Hamas, que inflama o Oriente Médio. Segundo o secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Guilherme Mello, os indicadores macroeconômicos do Brasil têm se mostrado resilientes, mas o cenário é mais desafiador hoje do que era seis meses atrás, sobretudo porque, além dos conflitos geopolíticos, houve um forte aumento dos juros nas economias desenvolvidas para combater a inflação.
"É evidente que sempre há algum tipo de impacto que nós temos de acompanhar, para entendermos como esses elementos externos vão colocar obstáculos ao processo de crescimento brasileiro. Hoje, ainda não temos clareza de quanto tempo vão durar os conflitos, qual será a dimensão deles, quanto tempo vai durar a taxa de juros elevada no mundo. Então, é muito difícil falar em impactos quantificáveis neste momento", diz Mello. Ele ressalta que as projeções atuais, que serão atualizadas ao longo de novembro, apontam para avanço de 3,2% no Produto Interno Bruto (PIB) deste ano, e de 2,3% no de 2024.
Cauteloso, para não adicionar mais lenha na fogueira das discussões sobre os rumos das metas fiscais traçadas pelo governo, o secretário assegura que, no entender dele, nada mudou em relação ao que foi anunciado logo nas primeiras semanas de governo pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de deficit zero no ano que vem. Há uma disputa aberta no governo entre Haddad e o ministro da Casa Civil, Rui Costa, que tem defendido junto ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva um deficit de até 0,5% do PIB em 2024, ano de eleições. Lula verbalizou essa proposta ao defender que não haja cortes no Orçamento da União.
"A nossa agenda continua sendo a de recomposição da base fiscal, combatendo distorções tributárias e benefícios indevidos e promovendo justiça fiscal, tributando aqueles muito ricos, que não contribuem na medida que deveriam. Estamos falando em retomar um nível de arrecadação, por exemplo, similar ao que aconteceu no ano passado, em que as receitas federais líquidas somaram 18,7% do PIB", explica Mello. Na opinião dele, se o governo estivesse com esse nível de receitas, o deficit nas contas públicas seria de 0,3%, no máximo 0,4%, do PIB neste ano. "Então, estaríamos muito próximos da meta zero", frisa, reforçando que recomposição de receitas não quer dizer aumento de impostos.
Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Correio durante o Fórum Futuro ESG, promovido pelo Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe).
Desde o início do segundo semestre, indicadores antecedentes têm mostrado desaceleração da economia. O mundo vinha com uma guerra entre a Ucrânia e a Rússia e, agora, há o conflito entre Israel e o Hamas, no Oriente Médio. Como isso pode impactar o crescimento do Brasil?
O cenário para o mundo, e também para o Brasil, é mais desafiador, hoje, do que era seis meses atrás. O acúmulo de conflitos geopolíticos e de guerras é um fator, mas não é o único. O próprio processo de estabilização inflacionária nos Estados Unidos, que tem se mostrado mais longo do que o inicialmente esperado, trouxe também o elemento das taxas de juros mais elevadas nos países centrais por mais tempo. Isso tem impacto sobre o fluxo de capitais, sobre as decisões de investimento e, eventualmente, sobre a taxa de câmbio. Os indicadores econômicos do Brasil têm se mostrado resilientes em meio a esse quadro desafiador. Mas é evidente que sempre há algum tipo de impacto que temos de acompanhar para entendermos como esses elementos externos vão colocar desafios e obstáculos ao processo de crescimento brasileiro. Ainda não temos clareza do quanto vão durar os conflitos, qual será a dimensão deles, quanto tempo vai durar a taxa de juros elevada no mundo. Então, é muito difícil falar em impactos quantificáveis neste momento.
Qual é a previsão atual do Ministério da Fazenda para o crescimento?
A última grade de parâmetros que nós soltamos previa 3,2% de crescimento para este ano e de 2,3% para o ano que vem.
O senhor acha possível manter essas projeções?
Possível é. Mas, principalmente no âmbito internacional, o balanço de riscos pendeu mais para o negativo do que para o positivo. O cenário internacional se agravou e cria mais dificuldades para as economias de todo o mundo crescerem. Estamos acompanhando os indicadores domésticos, mas também os internacionais. Quando soltarmos a nova grade de parâmetros, provavelmente neste mês, os números vão refletir esse novo cenário.
O Banco Central promoveu mais um corte nos juros, para 12,25% ao ano. Ainda é uma taxa alta para os parâmetros do Brasil?
É uma taxa elevada. A política monetária continua no campo contracionista e ficará assim por um tempo. O próprio Banco Central ressalta isso nos seus comunicados. Mas acreditamos que há espaço para o Banco Central trazer essa taxa para muito próximo da taxa neutra já no ano que vem. Agora, repito, toda a condução da política econômica tem de levar em conta o cenário global. Então, conforme vão aumentando os riscos lá fora, temos um trabalho mais refinado de avaliar o impacto de cada um desses riscos. Mas, me parece muito claro que ainda há bastante espaço para que a autoridade monetária avance na redução dos juros, sem que isso prejudique qualquer esforço, seja de estabilização inflacionária, seja na taxa de câmbio.
O BC vem ressaltando nos comunicados do Copom — e reforçou isso nesta quarta-feira — a importância de se manter o ajuste fiscal. Mas está claro o debate no governo sobre abrir mão do deficit zero em 2024 e permitir um rombo de até 0,5% do PIB. Como vê essa questão?
Eu acho que, na questão fiscal, nós endereçamos a nossa estratégia e o nosso esforço desde o início do novo governo do presidente Lula. Nas primeiras semanas, o ministro Fernando Haddad comunicou qual seria a agenda, a recomposição da base fiscal, combatendo distorções tributárias e benefícios indevidos e promovendo justiça fiscal, tributando aqueles muito ricos, que não contribuem na medida que deveriam.
Mas essa agenda está mantida?
Essa agenda prossegue. A agenda está no Congresso Nacional. A grande discussão que se tem junto ao mercado financeiro e na sociedade como um todo é sobre a velocidade do processo de recuperação das receitas. E, aqui, enfatizo a palavra recuperar, recompor, porque não estamos falando em aumento. Estamos falando em retomar um nível de arrecadação, por exemplo, similar ao do ano passado, em que as receitas federais líquidas somaram 18,7% do PIB. Se tivéssemos isso neste ano, o nosso deficit seria de 0,3%, no máximo 0,4%. Então, estaríamos muito próximo da meta zero. Nós estamos querendo recompor, mas não na base do aumento de tributos e, sim, na base de fechar os gargalos, corrigir distorções e promover a justiça tributária.
Então, não haverá aumento na carga tributária?
Exato. No passado, o Brasil já teve períodos em que houve aumentos expressivos de carga tributária, de cinco, seis pontos percentuais do PIB, para promover um esforço de recuperação das contas públicas. Não estamos tratando de nada disso, mas de retomar um nível de arrecadação que tivemos muito recentemente. Em vez de retomar isso com receitas extraordinárias, queimando patrimônio, queremos retomar a arrecadação de maneira estrutural, ao mesmo tempo em que se promove justiça fiscal e que se combate as distorções do sistema tributário.
É possível realmente seguir na direção traçada, de recomposição das receitas sem elevar a carga tributária?
Se conseguirmos avançar nessa agenda, estou muito tranquilo de que vamos caminhar no sentido da recuperação do superavit primário ao longo dos próximos anos, que é exatamente o nosso plano. E o país vai sair, além de mais estável do ponto de vista macroeconômico, mais competitivo, menos desigual. Então, é uma agenda de ganha-ganha, digamos assim.
Independentemente de ter deficit de zero ou de 0,5% do PIB no ano que vem, o que importa é a trajetória das contas públicas ao longo do tempo?
O que eu reforço aqui é sempre o plano de voo, que está mantido exatamente como a gente falou desde o início, que é recompor a base fiscal do Estado, combatendo distorções e privilégios, inclusive fazendo uma reforma tributária que vai melhorar a eficiência e a competitividade do Brasil. E fazer isso sem precisar afetar negativamente as políticas sociais, as políticas públicas, e encontrar, ao longo do tempo, a necessária estabilização da dívida pública a partir de um maior equilíbrio entre essa base arrecadatória, recomposta de maneira justa, e a preservação e o fortalecimento das políticas públicas.
O governo está trabalhando em um projeto para atrelar o hegde (seguro) cambial a projetos de investimentos com compromissos ambientais. Como será isso?
É um instrumento que reputamos como muito importante para viabilizar a atração de investimentos internacionais para os projetos de transformação ecológica. Todos sabem que o Brasil tem muitas vantagens comparativas em vários setores. Porém, temos de viabilizar, num mundo em que há cada vez mais competição por investimentos, os instrumentos que realmente garantam que esses projetos sejam realizados e que nós consigamos utilizar o vetor da transformação ecológica como um pilar fundamental do processo de desenvolvimento econômico e social no Brasil.
Como vai funcionar esse hedge?
Os detalhes operacionais o ministro ainda vai anunciar no momento propício, mas a ideia fundamental é que se consiga minimizar, para os investidores, os riscos extremos de volatilidade cambial. Agora, como isso vai ser constituído ainda está em debate com as equipes técnicas.
O Brasil está preparado para enfrentar os impactos da mudança climática? O senhor mesmo diz que o mundo chegará, ainda neste ano, ao aumento de 1,5 grau na temperatura média, o que estava previsto para 2030.
Existe uma possibilidade, que não é pequena, de você alcançar esse número, se não neste, nos próximos anos. E o Brasil colocou a agenda da transformação ecológica no centro da agenda do desenvolvimento, exatamente para o país se preparar do ponto de vista de oportunidades que se abrem para novos setores, novas tecnologias e mais emprego de melhor qualidade. Também visa preparar o Brasil para os impactos que já estamos vivendo: enchentes no Rio Grande do Sul e, agora, no Paraná; seca no Norte, no Nordeste.
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