ENTREVISTA

Luiz Marinho: empresário, em boa parte, tem uma visão retrógrada

Aliado de décadas do presidente Lula critica duramente o governo anterior, responsável, segundo ele, por uma "bagunça" no mercado de trabalho. Petista defende valorização do trabalhador e quer convencer setor produtivo a evitar abusos

Forjado no sindicalismo do ABC Paulista antes de ingressar na carreira política, o ministro Luiz Marinho deixa claras suas convicções em defesa do trabalhador. Aos 64 anos, ele volta a assumir um posto na Esplanada com a intenção de recolocar o Estado como figura importante na interlocução entre empregadores e empregados. Marinho é crítico mordaz de teses do neoliberalismo e de fenômenos como a uberização, considerada por ele nada mais do que uma forma de exploração de mão de obra.

Por essa razão, considera importante — e se diz otimista — com a negociação entre empresas e trabalhadores de aplicativos. Petista “raiz”, Marinho é deputado federal licenciado e ex-prefeito de São Bernardo do Campo (SP). Afirma que o ministério tem a missão de impedir abusos, e não de perseguir empresas. Guarda, porém, sérias ressalvas ao empresariado nacional. Acredita que parte dele mantém uma “visão escravagista”, que precisa ser superada. E é implacável com o “desgoverno” Bolsonaro. Considera, por exemplo, um “crime” a transferência de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para a Previdência Social.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

O Brasil tem condições de estabelecer uma semana de quatro dias?

Quando se fala em semana de quatro dias, é preciso entender que está se falando de jornada de trabalho e da semana eventual do trabalhador, não necessariamente da atividade econômica. A atividade econômica é contínua, 24 horas por dia. A jornada do trabalhador é que você tem que, eventualmente, regular se é em dias, se é em horas da semana, ou se pode ser diferente. O movimento sindical deveria refletir sobre esse assunto, até porque é necessário um debate de partes.

Quais partes?

Trabalhadores e empregadores. Não será uma ação do governo que vai encaminhar para o Congresso. Isso é uma ação típica da sociedade, no diálogo com o Parlamento. Foi assim em 1988, na Constituinte, quando a sociedade se manifestou sobre a necessidade de redução da jornada de trabalho, e o Congresso, então, aprovou a PEC de redução de 48 horas para 44 horas semanais, que é jornada máxima no Brasil hoje.

Já existem empresas em fases de testes...

Sim. Tem empresas do Brasil testando essa experiência, porque acham que pode agregar valor no ambiente de trabalho. Um ambiente de trabalho acolhedor evita doenças mentais, estresse, acidentes, porque há uma atenção melhor das pessoas em relação às suas atividades. O acidente é propiciado pela eventual má condição dos equipamentos e de falha humana. Quando se juntam os dois, a combinação é “imperfeita”. Por isso, ter pessoas que se sintam bem no trabalho é o melhor dos mundos para a produtividade, para a qualidade, para a relação com a família.

A discussão sobre a jornada pode avançar neste ano?

Neste ano, ainda não. As centrais e as confederações empresariais estão, neste momento, debruçadas sobre dilemas causados pelo desgoverno que passou recentemente, que criou uma bagunça e uma insegurança jurídica nas relações de trabalho. Eles estão focados nisso. Existe um grupo tripartite para o fortalecimento, a retomada e a valorização do instrumento da negociação coletiva. Na sequência disso, podem aparecer vários temas, entre eles, o debate da jornada de trabalho.

O que já deu para o ministério fazer em relação a essa “bagunça”?

Nós estamos reconstruindo literalmente o ministério nos territórios. Há a necessidade de concursos. Temos um primeiro certame aprovado pelos auditores, estamos reorganizando contratos de prestação de serviços. Há uma necessidade grande de se estruturar melhor a pasta. Nós pegamos, lá na ponta, um conjunto de gerências com dois servidores ou um servidor. Temos que nos reorganizar, e isso passa por concursos e contratação de terceiros.

O concurso da pasta já autorizado tem um dos maiores volumes de vagas, umas 900, correto?

Sim. É o segundo maior volume de vagas. O primeiro acho que é o do MGI (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, criado pelo atual governo).

O ministério estava desmontado?

Desmontado? Não existia. Chegou a ser fechado e passou a ser uma secretaria do Ministério da Economia. E a retomada da pasta só aconteceu para darem cargo para o Onyx (Lorenzoni). Agora, estamos trabalhando no processo de reorganizar a máquina do ministério. Para isso, temos um novo concurso, uma retomada de um olhar criterioso nas fiscalizações. Os números de trabalho análogo à escravidão e de exploração de mão de obra infantil falam por si.

Desde o início do ano, temos contabilizados resgates de 2.539 pessoas em trabalho análogo à escravidão. E, no trabalho de exploração de mão de obra infantil, deve estar em torno de 1.700. O presidente Lula sancionou uma lei que determina obrigatoriamente a igualdade salarial entre homens e mulheres.

Como o senhor vê essa questão no mundo do trabalho?

Eu vejo com tristeza a necessidade de ter uma lei que obrigue tratamento igual para as mulheres. Isso deveria ser naturalíssimo. Infelizmente, não é.

Haverá fiscalização em relação a esse ponto?

Estamos trabalhando aqui no Ministério do Trabalho, que é responsável por isso. Vamos ter um grupo interministerial, que está em formação. Vamos decidir em que periodicidade vamos soltar os relatórios. Esses relatórios, seguramente, cuidarão da sensibilização das empresas. Eu tenho dito aqui para os nossos técnicos que a nossa missão não é autuar a empresa. Não é resgatar trabalhadores em condições de trabalho análogas à escravidão ou de exploração de mão de obra infantil. A nossa missão é evitar que isso aconteça.

Isso é suficiente para mudar a realidade?

É preciso construir um movimento na sociedade, um envolvimento com o mercado, com os meios de comunicação, com as universidades, com as prefeituras, os estados e com os sindicatos de trabalhadores, de empregadores e com as confederações de trabalhadores e de empregadores. É preciso a construção de pactos que busquem essa mensagem. É obrigação dos empregadores zelar pela qualidade do ambiente de trabalho, respeitar os acordos coletivos, fazer a negociação coletiva.

É evidente que o corpo tem um pedacinho mais sensível nessa hora, que é o bolso. A autuação vem para sensibilizar a parte mais sensível do corpo da empresa, que é o cofre, por meio da multa, da autuação. Agora, essa não é a intenção do ministério, nem deve ser. Mas se a empresa insistir, depois dos relatórios, é porque ela quer ser autuada.

É possível identificar os setores com mais dificuldade?

Ainda não. Na hora em que esse observatório interministerial chancelar o conjunto dos relatórios, de indicadores de qualidade, creio que no ano que vem, vamos conseguir ter mais claro os setores que eventualmente estão com mais dificuldade nesse processo. Mas creio que a maturidade da sociedade brasileira, hoje, busca regular isso sem traumas.

E a questão de gênero e de cotas raciais?

Vejo da mesma forma, com tristeza. Não tinha que ter lei. Se, na sociedade, tem mais de 50% de mulheres do que homens, e se tem mais de 50% de negros e negras, essa presença deveria se refletir em todas as atividades econômicas. Assim como o trans, o LGBT, o indígena. Infelizmente, não é. Por isso, nasceram as cotas, primeiro, nas universidades, e isso produziu um efeito muito positivo: a presença de mais jovens negros nas universidades. Espero que um dia as cotas não sejam necessárias. Mas, neste momento, são.

Há iniciativas do ministério nesse sentido?

No próximo concurso para as 900 vagas, estou determinando que, além da cota das pessoas com deficiência — a lei fala em 5% —, seja elevada para 6%. Além disso, estamos criando uma cota para as pessoas trans, de 2%. Estamos criando uma cota para quilombolas e indígenas, de 2%, e elevando a cota racial para 45%. Vamos ter uma última conversa com a ministra Esther Dweck, responsável por coordenar os concursos, sobre essas 900 vagas. Espero que transcorra com naturalidade esse processo.

A partir de quando, efetivamente, o país, ou parte dele, vai enxergar essa questão com naturalidade?

É difícil prever. Espero que esses debates ajudem a produzir efeitos na sociedade, que é a responsável, como falei no dia da sanção presidencial da lei do salário igual. Minha mensagem é para os responsáveis em recursos humanos. São eles, na hora de selecionar uma das vagas, que podem influenciar na escolha do perfil necessário para determinada atividade. E veja que, muitas vezes, são mulheres responsáveis pelas áreas de recursos humanos.

A sociedade — homens e mulheres —, muitas vezes, no cargo de chefia, reproduz a visão masculina naquela função. Nós temos que oferecer a oportunidade para todos. Espero, estou cheio de esperança, que, um dia, a gente possa ver isso com muita naturalidade.

Como o senhor entende as relações de trabalho no mundo moderno, com a internet, o home office e tantas coisas novas?

Nós vamos ter que buscar interpretar este momento e criar condições. Veja, por exemplo, o trabalhador de aplicativos. O pessoal tem um debate falseado em relação à legislação trabalhista. Dizem que ela é muito rígida. Será? Se você faz o comparativo, ela é um tanto quanto flexível. Não tem essa rigidez que muita gente fala, há até um preconceito em relação a isso. Mas os trabalhadores autônomos podem ou não podem ter sindicatos? Hoje, rigorosamente pela lei, não podem. Portanto, nós temos que atualizar para permitir que tenham. Estamos também com a Uber na mesa, negociando. Foi difícil, mas não é impossível. Dá para fazer. Tem jeito.

E como estão essas conversas?

Conseguimos montar a comissão de trabalhadores. O lado empregador é mais fácil. Você sabe o endereço e sabe quem são as pessoas, e chamamos. E quem é a maior autoridade no processo de negociação? Os sindicatos. Então, autorizem-se os sindicatos. Se a rigidez interpretada até aqui impede, vamos retirar essa rigidez para dar liberdade às pessoas de se organizarem. Então, acho que tem coisas muito interessantes que vão acontecer em relação a esse mundo moderno a que vocês se referiram. E isso passa pelo debate da jornada de trabalho que falamos no início da conversa. Há uma revolução tecnológica que está acontecendo de forma contínua, e não é de hoje. Mas tem uma coisa que a inovação tecnológica não vai fazer: eliminar o trabalho. O trabalho vai se manter, diferente. Logo, é preciso preservar o trabalho, porque se inteligência artificial eliminar a mão de obra, o que fazer com as pessoas?
Aparentemente, estamos caminhando para o dilema do século.

Compensa que a tecnologia elimine totalmente o trabalho? Para que eliminar as pessoas do mundo do trabalho? O capital está se dedicando a quem? As tecnologias são para servir a quem? A quem deve servir o processo de transformação tecnológica? Para 1% dos proprietários da maior parte do capital ou para a sociedade? Esse é o debate necessário. O presidente Lula falou disso na ONU, falou disso com Joe Biden, e eu tenho reproduzido isso nos fóruns do Mercosul, do Brics, do G20, porque é preciso provocar.

Esse foi o sentido do encontro entre Lula e Biden?

Sim. A iniciativa Brasil-Estados Unidos é provocar para que o mundo reflita sobre o trabalho e suas condições. Com todo esse mundo moderno, como ainda pode haver trabalho escravo? Como pode haver exploração de trabalho infantil? Olha só a contradição que estamos vivendo! A criança, o jovem, precisam ser preparados para o mercado de trabalho e, para isso, pressupõe-se que o Estado dê oportunidade ao jovem para que ele possa sair do ensino médio, que gradativamente tem que ser transformado em período integral. Nesse ensino médio, ele precisa ter a capacitação profissional. Ele precisa sair de lá profissionalizado para atuar no mercado de trabalho ou para fazer sua universidade ou faculdade.

Voltando à questão dos aplicativos, ministro.

A negociação está indo bem. Existe um acordo. Não posso dar detalhes, mas está pré-acordado com as plataformas de transporte de pessoas, as bases para o acordo, que, conceitualmente, está feito. Resta fazer a redação, escrever, e botar no papel. Não vou anunciar antes. Tendo isso, vou levar ao presidente Lula, a partir daí, a gente anuncia, transforma em projeto de lei e passa a conviver com esse acordo. Esse acordo é no transporte de passageiros. Com os aplicativos dos empregadores, ainda não houve acordo. As empresas e os empregadores acham que isso vai destruir o seu modelo de negócio.

E vai?

O problema é que muitos que estão no tal “meu modelo de negócio” enxergam o trabalhador como mão de obra escrava, que tem que trabalhar 18 horas por dia para sustentar a família. Nós, como sociedade brasileira, vamos aceitar este modelo de negócio? Que as pessoas sejam exageradamente exploradas para trazer minha comida quentinha em minutos? Não acredito que a sociedade deseje um negócio desses. Tem que ter trabalho decente. O tema trabalho tem que virar uma referência para a sociedade debater. Se eu tenho uma diarista em casa, será que se ela somar os cinco dias eventuais de diária, ela consegue sustentar a família? Alguém que queira contratar alguém diarista tem que fazer essa conta. A diarista vai ter direito, vai ter necessidade de comer, de ir ao cinema, de educar bem seus filhos, de viajar...

Tinha ministro que era contra...

Aquela fala horrorosa, preconceituosa, repressora do ex-ministro Paulo Guedes (da Economia), sobre a “farra” das diaristas e das domésticas. Elas têm direito de ir para Miami. Eu iria para outro lugar. Eu viajaria pelo Brasil mesmo.

Vários países, especialmente na Ásia, se transformaram em poucas décadas. Há chance de um processo como esse ocorrer no Brasil? Onde é preciso investir em primeiro lugar?

Educação. Nesses países que se transformaram, os jovens foram tratados com todo cuidado para se educarem. Essas bases têm que ser dadas, desde a creche, passando pelo ensino infantil, pelo fundamental, pelo ensino médio, que é a grande base. A partir daí, a pessoa toca. Nós ainda não chegamos lá. O Brasil ainda não criou essas condições. É preciso avançar em relação a isso. Avançou no governo Lula, que investiu bastante no ensino superior.

O presidente Lula, sozinho, criou mais vagas em universidades do que a soma de todos antes dele. Precisamos fazer essa revolução no ensino médio. O ensino médio ficou a cargo exclusivo dos estados, inclusive chegando ao absurdo, no governo Fernando Henrique Cardoso, que retirou os institutos. Foi um grande erro, porque o ensino médio acabou ficando muito diferente de estado para estado e de região para região. Perdeu-se a unidade federativa.

Fala-se muito na necessidade de investir em ensino técnico em detrimento de outras especializações. Concorda com essa ideia?

É muita bobagem. A educação pressupõe criar cidadãos e cidadãs com visão de mundo. E, evidentemente, na educação, quando a gente fala em período integral, isso vai agregar mais coisas, inclusive, a questão mais técnica. Você tem que falar do português, da geografia, das ciências, da formação humana, e da história do Brasil, corrigir a história do Brasil — porque contaram um monte de mentira por longo período. É preciso formar a pessoa para ela ter uma visão de mundo. E tem que dar a ela a oportunidade de ter formação técnica. Se você fizer uma coisa e não fizer outra, você não está dando uma educação completa.

O ensino técnico entraria então no ensino médio?

Eu acho necessário. Com o tempo, a gente vai introduzindo, no ensino médio, a formação profissional.
O que fazer com a geração de jovens nem-nem, que nem estudam nem trabalham?
Isso é uma outra coisa que o neoliberalismo inventou. É nem-nem porque não tem oportunidade. A oportunidade é diversa, e tem que dar oportunidade também para a cultura. Desde o ensino fundamental, em vez de dar quatro horas de aula e depois mandá-lo para casa, você pode ter o complemento escolar. Temos que desenvolver para formar melhor e gerar oportunidades.

Quais áreas estão oferecendo essas oportunidades?

Estamos com uma parceria com a Microsoft para formar 5,5 milhões de pessoas até 2026. Não é só para o jovem. Evidentemente que o jovem tem muito mais a ver, mas isso também pode ser para o tiozinho, para o vovozinho, para quem quiser. Só a Microsoft vai fazer isso? Outras empresas também podem. Isso aqui, na verdade, é uma parceria feita no finalzinho do governo anterior. Quando cheguei, tinha menos de 100 mil pessoas. Hoje, tem mais de 1 milhão, entre pessoas que fizeram e estão fazendo os cursos.

Como funciona?

São sete trilhas: letramento digital, introdução à programação, avançado em TI, produtividade, profissionalizante, Dynamics 365, educação financeira, etc. Isso aqui é uma ferramenta a distância, mas nós temos estimulado o pessoal a propor a criação de cursos presenciais.

Isso levará as empresas a contratar?

Às vezes, o pessoal fala: é preciso incentivar a empresa a contratar o jovem. Ora, o que a empresa quer de incentivo para contratar? Subsídio. Resolve? Não. Não resolve porque vai demitir outro trabalhador para contratar aquele que você subsidia. Isso é patifaria. Então, o que resolve? Não tem milagre, é a economia. Se ela está indo bem, crescendo, gera oportunidades. Em 2003, quando Lula assumiu o primeiro governo, o estoque de trabalhadores contratados no mercado de trabalho não chegava a 22 milhões. Nós chegamos a 2014 com 42 milhões. Hoje, estamos caminhando para 44 milhões. Em 2003, o desemprego era, se não me engano, de 15,9%. No ABC Paulista, chegou a 25%. Em 2014/2015, o desemprego era 5 ponto alguma coisa. Naquele momento, todo mundo que estava no mercado de trabalho tinha colocação. Em todos os níveis. Faltou mão de obra.

O que isso tem a ver com os jovens?

O Estado deve oferecer educação e qualificação ao jovem. Nós estamos buscando fazer. Por outro lado, para gerar emprego, o Estado precisa oferecer projetos de investimento. É o Minha Casa, Minha Vida, o PAC, a modernização de aeroportos, das ferrovias, das rodovias. Isso é o que o Estado deve propiciar junto ao setor privado: é criar condições de investimento. É debater na hora correta a transição energética. É cuidar da Amazônia, cuidar do meio ambiente, cuidar do Cerrado — que está precisando. É discutir a reindustrialização. Veja o debate sobre o complexo industrial da saúde: por que nós temos que importar tudo? Nós importamos praticamente tudo.

De 2003 a 2014, o estoque de trabalhadores praticamente dobrou. De 2014 a 2023, estagnou. O que aconteceu?

Aconteceu o golpe (contra Dilma Rousseff). Aconteceu o Bolsonaro, que perdeu muitas oportunidades. Mas não foi só isso.

Como recuperar essa década perdida?

Temos que fazer o que estamos fazendo, as políticas que nós implementamos. E uma delas passa pela renda. Porque houve também uma brutal retração da renda. Não tem país desenvolvido com a classe trabalhadora na miséria. Tanto é que o Biden fala da importância da classe média, do trabalho, dos trabalhadores bem remunerados, etc. Se a gente embarcar nessa de que está tudo bem com o iFood, de que está tudo certo com a uberização, estamos lascados. Nós temos que ter trabalhadores bem remunerados. A má numeração não gera emprego. Muito pelo contrário. Se há má remuneração, a população consome menos. Se consome menos, precisa de menos gente para produzir. E se a produção diminui, diminui a compra. Se a empresa não vende, diminui a mão de obra. Demissão.

O que é preciso fazer?

Veja a reforma trabalhista, estimulando a história do custo... Qual é o custo? Você tem que ver o custo, claro. Mas não do valor da remuneração do trabalho. Você tem que trabalhar a modernização. Por exemplo: estamos fazendo o FGTS digital. As empresas vão economizar 34 horas em média/mês para a gestão do Fundo de Garantia. Calcule 4 milhões de empregadores vezes 34. Quantas horas dá no ano? Em 10 anos? Isso é modernizar, é discutir custo. Tem que reduzir salários? Não!

Mas e o custo de contratação aqui no Brasil?

Isso é balela. Vai ver quanto custa nos outros países.
O ex-ministro Paulo Guedes dizia que essa questão era destruidora de empregos em massa.
Ele gerou muitos empregos, né? Muitas conquistas. A única coisa que ele fez foi substituir mão de obra. A empresa demite um que ganha X para contratar um que ganha 70% de X.

Como o senhor enxerga os empresários hoje?

Com uma visão, em sua grande maioria, muito retrógrada. Com uma visão escravagista, em boa parte. E é isso que nós estamos buscando sensibilizar. Quando teve o resgate de trabalhadores em situação análoga à escravidão no setor de vinho do Sul, o orgulho gaúcho, eu fui lá pessoalmente. Pedi para chamar os empresários. Inicialmente, eles não queriam ir.

O que o senhor fez então?

Falei com o portador: liga lá e fala que eu estou aconselhando para eles virem. Porque eu vim para conversar. Se não vierem, eu vou considerar uma afronta e vou tomar as medidas que o Estado possa tomar. Eles vieram. Conversamos. E nos entendemos. E eles mudaram totalmente os procedimentos. Vão se tornar exemplo. Esse é o nosso papel: convencer o empresário de que ele pode fazer a coisa correta. O papel da fiscalização é este. Para convencer quem não quer ser convencido na dor. Mas nós preferimos convencer no amor. Tem esse pecado no mundo empresarial.

Houve conversas com outros setores?

Fizemos pacto com o pessoal do vinho, com o pessoal do café... Eu tenho certeza que nós vamos derrubar esses números alarmantes do trabalho escravo. Na conversa, no diálogo. Temos conversas com o setor de hortifrutigranjeiros, com o pessoal da cana. Queremos fazer com o pessoal da maçã, do algodão, do agro, do fumo. Ou seja, com todos os setores.

Qual a mensagem que vocês passam?

Nós dizemos o seguinte: olha, o Brasil pode ser muito melhor do que é — e fazendo a coisa certa. Não deve haver o Estado perseguidor das empresas. É preciso propiciar que as empresas possam crescer, porque não tem melhor coisa para o trabalhador do que trabalhar por uma empresa forte. Que tenha lucro, que tenha resultado para ela partilhar o resultado.

O que não pode é a empresa ter resultado e não repassar esse resultado para seus trabalhadores, para a sociedade. Não é pecado ter lucro. Pecado é ter miséria. É ter trabalho escravo, exploração de mão de obra infantil, ter gente dormindo na rua porque não tem oportunidade. Isso é que é pecado. O Lula disse isso bem para o Brasil e para o mundo. Não falta riqueza. Não falta alimento. O que falta é distribuição de renda. E qual é a melhor distribuição de renda possível que não seja pelo trabalho? Eu não consigo entender a lógica de quem fala: “Ah, o Brasil precisa reduzir”. Reduzir o quê? Precisa é aumentar os salários, e não reduzir os salários.

Isso passa a outro ponto, que a direita costuma criticar: os programas assistenciais. Eles são uma porta de entrada para o passo seguinte, que é oportunidade de emprego, não?

Perfeitamente. Foi essa a lógica do pacto com o pessoal do café. Suponha que a família do seu Luiz está no CadÚnico. A família é de baixa renda, ou não tem renda, eu trago para o Bolsa Família. Aí o café fala: eu preciso contratar gente. E o seu Luiz responde: “Olha, não me registra não, senão vou perder o Bolsa Família”. Tem de resolver isso, e nós resolvemos.

O que foi feito?

O benefício é vinculado à família, e não somente a seu Luiz. Se na família a renda per capita é muito baixa, seu Luiz pode trabalhar e pode receber o Bolsa Família porque não atingiu a proteção total da família. Entrou o seu Luiz, e entrou o filho. Atingiu uma renda. Opa, então começa a fazer a transição. Mas é a transição, que não reduz integralmente. Reduz parcialmente, até que ele se fortaleça no mercado de trabalho, e cria condições de sair do benefício.

Mas uma vez que entrou no CadÚnico, nunca mais sai. Porque vamos imaginar que ele está trabalhando e tal, mas aí perdeu o emprego. Ele volta automaticamente. Então, o processo é a porta de entrada para você navegar para o mundo do trabalho, para poder sair do Bolsa Família. É criar as devidas condições. Dar proteção social.

E como rebater a crítica de que muita gente vive apenas de benefícios, ao invés de procurar um emprego que pague um salário mínimo, por exemplo?

É como diz o Biden ao empresário que reclamou que os trabalhadores não queriam aceitar a proposta: “É porque você está pagando pouco. Paga mais, que ele vai aceitar”. É disso que se trata. Quando lançou o Bolsa Família, teve gente que chegou ao absurdo de falar: “Ah, agora o pessoal não quer trabalhar mais”. Não quer trabalhar mais porque se sujeitava a trabalhar por um copo d’água e um prato de comida! Escuta, me pague mais. Me pague pelo que eu valho, pelo que o meu trabalho vale.

E o imposto sindical?

O Supremo tomou uma decisão dizendo que a cobrança sindical é constitucional. Mas não modulou – o que eu acho certo. Quem tem de modular é o Congresso Nacional. O que eu defendo é que os sindicatos de trabalhadores e de empregadores tenham direito a duas fontes de receita principais: a mensalidade e a contribuição negocial.

Como seriam?

A mensalidade, o nome fala por si. A opção negocial também; ela avisa como será feita. Tem que ter uma negociação. Você remete à lógica da prestação de serviço dos sindicatos, tanto de trabalhadores quanto de empregadores. Qual a principal prestação de serviço de um sindicato? É dar garantia jurídica a partir do resultado da negociação. Quando você faz um acordo, você pode aprovar uma contribuição em assembleia. Mas aí a direita fala: “O trabalhador tem direito a oposição; pode mandar um zap ao sindicato dizendo que não quer pagar”. Ora, organização coletiva se decide coletivamente. Não é individual.

Por quê?

Pegue o exemplo do condomínio. Os condôminos se reúnem em assembleia. O síndico apresenta uma proposta de investimento no condomínio. A assembleia pode decidir que não vai ter investimento. Mas se a assembleia definir que vai ter investimento, se eu falei que sou contra, eu posso não pagar o que faz parte do rateio? Tem que pagar. É uma organização coletiva. O sindicato é a mesma coisa. “Ah, não quero pagar”. Você abre mão do seu aumento real? Abre mão da participação do resultado? Ah não, o acordo é para a categoria. Se o acordo é para a categoria, é coletivo. E se é coletivo, tem contribuição. Ponto. O empresário vem com essa conversa: a empresa pode se recusar a contribuir para o sistema S? Não, não pode. Então por que é que o trabalhador pode? Negociação coletiva é conceitual. Então essa coisa esquizofrênica da ultradireita de dizer que pode, que não pode, de direito individual... Que conversa é essa? O direito individual está garantido. Eu tenho direito a religião, a torcer, a ir e vir. Agora, quando se trata de organização coletiva, a decisão é coletiva. Não é individual.

O que o senhor defende, então?

A lei tem que criar essa autorização (para contribuir). Agora, as entidades têm que cumprir requisitos. Quais? Transparência. O direito de toda a categoria participar e votar, e não só os associados. Se o acordo vale para todos, todos têm o direito de participar. Aprovar os benefícios e junto aprovar a sua eventual contribuição, se assim a assembleia decidir. Porque a assembleia pode rejeitar. Então, é criar de fato a liberdade. Tem que ter mandato, de no máximo quatro anos. Tem sindicato aí que a transição é hereditária, de pai para filho. Não pode. Tem que ter eleição.

Qual é o problema do FAT?

O ministro Paulo Guedes fez uma emenda constitucional dizendo que o FAT também tem a tarefa de financiar despesas da Previdência. Então, quando há deficit previdenciário, o Fundo transfere ao Tesouro Nacional recursos para ajudar a cumprir as obrigações. Isso acontece desde 2021. Foram R$ 11 bilhões em 2021; R$ 18,6 bilhões em 2022; R$ 22,7 bilhões em 2023. A previsão de 2024 vai ser menor, de R$ 18,4 bilhões. Estamos propondo que o Tesouro deve devolver esses recursos até 2032. Na reforma tributária, devem inserir lá que essa transição ocorrerá até 2032, parcelado para manter a política futura. Isso é um equívoco.

O senhor considera isso um equívoco?

Equívoco? Isso é um crime. O FAT existe para preservar, cuidar do desespero, da capacitação profissional, da formação profissional, para garantir o seguro desemprego e de catástrofe, como agora no Rio Grande do Sul e na Amazônia. Você não pode enfraquecer isso, desviar da finalidade, como foi feito pelo governo anterior. O Jair Bolsonaro queimou R$ 300 bilhões só no processo eleitoral. Se não fosse a PEC da Transição, o Brasil estava parado, dado o desarranjo que os caras fizeram nas finanças públicas. A tarefa de tapar esse buraco é imensa.

De onde vem sua facilidade com números?

Eu quase fiz economia. Quando eu negociava na presidência do sindicato, fui tesoureiro, secretário geral, vice-presidente, tinha muito empresário que achava que eu era economista. Mas, na época, nem curso universitário eu tinha. Fui fazer direito, tardiamente. Concluí em 2004, um ano depois do Vicentinho. Estudei de 2000 a 2004. Fiz o básico em economia. E, durante o período, o MEC do governo FHC checava com o diretor da faculdade a frequência. Nem para disfarçar, não pedia a ficha dos outros alunos.

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