A crise envolvendo a empresa 123 Milhas, agência virtual de venda de passagens e pacotes turísticos, jogou luz sobre um mercado que move cifras bilionárias, com milhões de usuários, mas que funciona sem qualquer regulação e que deixa os consumidores desprotegidos. O prejuízo da empresa gira em torno de R$ 490 milhões, segundo os sócios.
O caso da 123 Milhas foi parar na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Pirâmides Financeiras, instalada na Câmara dos Deputados. A razão foram as perdas dadas pela empresa a um número estimado de 700 mil clientes, que não conseguiram voar e perderam dinheiro que juntaram ao longo de um tempo para realizarem o sonho de visitar um parente distante, de fazer uma viagem de lua de mel ou qualquer outro projeto, que acabou desmoronando.
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Os deputados da comissão reforçaram essa mensagem aos donos da empresa, que, antes de se explicarem, pediram desculpas às pessoas atingidas e garantiram estarem fazendo todos os esforços para devolver o dinheiro desses consumidores.
A audiência pública na CPI durou cerca de 14 horas e foi acompanhada integralmente pelo Correio. Os números e as cifras são grandiosos. O faturamento da 123 Milhas é na casa do bilhão de reais. O que gastaram ao longo dos últimos anos em marketing e publicidade é na casa de centenas de milhões de reais e que foi reduzindo gradualmente nos últimos períodos, mas mantidos valores elevados.
Também chamou a atenção o fato de a 123 Milhas ser uma empresa familiar, composta basicamente por três irmãos, o pai e uma cunhada, afirmaram os deputados. A empresa negocia ou intermedia, como preferem dizer seus executivos, milhas acumuladas por usuários que viajam de avião e não usufruem os pontos acumulados, preferindo negociá-los.
Na CPI, Cristiane Soares Madureira de Nascimento, irmã dos dois donos da empresa, afirmou que o faturamento da empresa, em 2022, foi "em torno de R$ 6 bilhões". Ela é a diretora responsável pela área de reembolso, pelos suprimentos e pelo setor de melhoria contínua. Cristiane disse que já foi sócia da empresa e que agora é contratada como diretora. Os irmãos Ramiro e Augusto Julio Soares Madureira também foram ouvidos na CPI, e foram os principais interrogados pelos parlamentares.
Somente no primeiro semestre de 2022, a empresa gastou R$ 377 milhões em marketing. Esses valores foram contados na CPI por Augusto. Segundo ele, a quantia diminuiu por conta do prejuízo causado pelo produto Promo, causador dos problemas com os clientes. Esse produto oferecia normalmente valores abaixo da média do mercado, com preços promocionais pesquisados, e em datas que estão fora das altas temporadas. No segundo semestre, esse investimento em marketing foi de R$ 190 milhões.
O deficit da empresa seria, hoje, de R$ 490 milhões, recurso que a companhia diz ter, mas por ter entrado com pedido de recuperação judicial, que ocorre neste momento, não pode dispor desse recurso. Um dos deputados, Caio Vianna (PSD-RJ), questionou Augusto se não poderia ter disponibilizado esse dinheiro para pagar as vítimas da 123 Milhas antes do pedido de recuperação judicial. "Seria favorecimento de credores", respondeu o empresário.
Mercado incerto
O governo tem interesse em regular esse mercado de venda de passagens futuras e transações com milhagens. O Ministério da Justiça tem acompanhado de perto esse debate. O coordenador de Estudos de Mercado da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), Vitor Hugo Ferreira, ligado ao ministério, disse que o modelo de negócio usado pela 123 Milhas não é ilegal, mas precisa ser regulado. Ele fez essa afirmação num debate no Congresso sobre o assunto.
O caso da 123 Milhas ligou o alerta da pasta comandada pelo ministro Flavio Dino sobre o comportamento de todas as empresas que vendem passagens por meio de plataformas digitais, que foram notificadas pela Senacon, que pediu esclarecimentos. O ministro do Turismo, Celso Sabino, mostrou interesse em regular esse mercado e frisou estar estudando o caso da 123 Milhas.
"Nós vamos entregar um relatório que vai dizer se o modelo é seguro ou não. Ou se só será seguro se for feito isso e aquilo. E aí o Congresso Nacional, em parceria com o governo, vai buscar uma regulamentação dessa nova atividade com base nesse evento que aconteceu", afirmou Sabino.
Operação agressiva
Especialistas ouvidos pelo Correio comentaram o caso da 123 Milhas. Coordenador do Instituto de Finanças da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecaap), Ahmed El Khatib avaliou que, enquanto o mercado e o turismo sofriam uma queda na demanda provocada pela covid-19, a 123 Milhas oferecia pacotes "atraentes" de viagens, seja com preços muitíssimos baixos, seja com facilidade para marcar a data.
"Esse modelo de compra de passagens aéreas e pacotes flexíveis foi uma operação bastante agressiva, baseada na combinação de preços baixos e no alto investimento em marketing. No entanto, a imprevisibilidade e a volatilidade do setor afetaram o cumprimento das promessas nos pacotes. Esse modelo de negócio é uma espécie de venda a descoberto, isto é, quando as empresas comercializam pacotes com muita antecedência da viagem, acima de um ano, o que faz com que o cliente não receba de imediato a confirmação e os bilhetes aéreos. Companhias aéreas, por exemplo, não vendem passagens com mais de 11 meses de antecedência", explicou.
Segundo o advogado Luan Dantas, especialista em direito do consumidor, o método nada mais é do que um "sistema de recompensa onde passageiros acumulam milhas ao voar com companhias aéreas". Para ele, o consumidor deve aproveitar ao máximo as milhas acumuladas.
"É importante ressaltar que essas milhas têm prazo de validade e além disso alguns consumidores compram e vendem as milhas. O consumidor ainda precisa ficar atento às políticas de cada programa e assim aproveitar ao máximo as milhas acumuladas."
Luciano Bravo, CEO da Inteligência Comercial, destacou que o programa de milhagem funciona como um "cashback" (expressão que significa o dinheiro de volta) e que o usuário deve usufruir da forma que lhe convier. "É como se fosse um cashback. A pessoa pega, utiliza o mesmo, acumula pontos. Ela pode utilizar esses pontos em voos, em outro serviço ou até mesmo vender as milhas, porque tem sites que as compram. Então, isso é muito bom, pois possibilita que o consumidor seja ser recompensado por isso", disse.
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