Aliar a produção agrícola sustentável ao combate à fome e a insegurança alimentar é uma pauta global com grande capacidade de desenvolvimento no Brasil. Em entrevista ao Correio, Álvaro Lario, presidente do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida) da Organização das Nações Unidas (ONU), detalha os planos para um investimento de US$ 900 milhões destinado ao país por meio do projeto Semeando Resiliência Climática em Comunidades Rurais do Nordeste. "O que estamos vendo globalmente, é que não deveríamos escolher exatamente entre mudança climática e agricultura. Países não deveriam ficar entre investimentos em saúde ou educação, por exemplo, e investimentos em desenvolvimento e o clima", afirma.
O novo portfólio da agência da ONU é destinado a agricultores familiares e grupos vulneráveis, como comunidades indígenas e remanescentes quilombolas, além de assentados da reforma agrária, mulheres e jovens. Com cofinanciamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Fundo Verde para o Clima, e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a iniciativa prevê capacitar 600 mil famílias, contribuindo para o aumento da produtividade, a segurança alimentar, práticas agrícolas sustentáveis e a resiliência climática — contra longos períodos de estiagem.
"Precisamos transformar os sistemas alimentares, ou seja, como os alimentos são produzidos, como são armazenados, como são distribuídos e como são comercializados. Isso deve ser feito apoiando aqueles que têm menos oportunidades, neste caso, aqueles em áreas rurais onde a maior parte da pobreza está localizada", afirma.
O projeto tem oito eixos de investimentos voltados ao combate das desigualdades rurais e ao fortalecimento da agricultura familiar nordestina. "Agricultura que pode ser produtiva. Não estamos falando apenas de agricultura de subsistência, estamos falando de agricultura familiar, de dar às famílias a oportunidade de ter de fato uma forma de gerar renda", disse o presidente do Fida.
Segundo Lario, a expectativa do Fundo é mais do que dobrar o número de famílias rurais beneficiadas na próxima década, impactando cerca de 2,1 milhões de pessoas no Brasil. Ele destaca a importância dos investimentos a longo prazo e o papel da agricultura familiar no combate à pobreza. "Ainda vemos um grande foco na assistência humanitária e apenas no fornecimento de alimentos. Isso não tira as pessoas da pobreza, obviamente, salva vidas. Mas precisamos ter certeza de que os investimentos, como os que estamos discutindo aqui no Brasil." Confira a entrevista:
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Como foram as reuniões com governadores e ministros em Brasília? Que novas parcerias devem buscar o desenvolvimento rural sustentável e inclusivo no país?
Debatemos muitas ideias colocadas nos orçamentos, mas anunciamos essa parceria com o BNDES para a região Nordeste. Mais especificamente, para um programa relacionado à resiliência climática, de mais de US$ 200 milhões, que vai impactar mais de 250 mil famílias e 1 milhão de pessoas. O investimento será destinado para a capacitação dos pequenos produtores para torná-los mais resistentes à seca e às mudanças climáticas que estamos vendo na região. Além disso, também temos discutido com os ministros uma carteira de mais US$ 900 milhões, no próximo ano, com financiamento de outras instituições, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o BNDES e os governos locais. Todos esses investimentos impactarão principalmente o Nordeste, mas também outras áreas. São políticas focadas na inclusão social e na transformação do meio rural, do ponto de vista socioeconômico e climático.
O senhor esteve em Cabaceiras, no interior da Paraíba, vendo de perto os impactos das iniciativas apoiadas pelo Fundo. Por que o Nordeste brasileiro tem um papel de destaque nessa pauta?
Assim como o governo, acreditamos que devemos oferecer oportunidades aos que ficaram para trás e aos mais necessitados. Então, a maior parte da pobreza no Brasil está concentrada no Nordeste e é onde podemos ser mais impactantes. O Brasil é um grande exportador de alimentos em nível mundial, mas isso acontece principalmente no Centro-Oeste e no Sudeste, onde estão localizadas a maioria das empresas do agronegócio. Nosso foco é principalmente em mulheres, povos indígenas e quilombolas, também aqueles que foram para novos assentamentos e não têm oportunidades econômicas e produtivas para torná-los parte desse ecossistema. Agricultura que pode ser produtiva. Não estamos falando apenas de agricultura de subsistência, estamos falando de agricultura familiar, de dar às famílias a oportunidade de ter, de fato, uma forma de gerar renda.
Quais os recortes do programa?
Estamos falando sobre os vários tipos de categorias de renda, mas elas estão sempre entre pessoas que estão em extrema pobreza ou em situação de pobreza e no caso dos programas do Fida. Já conseguimos que 60% dos participantes de nossos programas superassem a pobreza extrema e 47% saíssem da pobreza. O que estamos tentando é dar a eles a capacitação em termos de formação empresarial, tudo para garantir que possam atender a mercados que proporcionem ter rentabilidade. Uma atividade geradora de renda, muitas vezes, também está relacionada a reuni-los por meio de cooperativas e aumentar sua capacidade de comprar insumos ou vender no mercados. A cooperativa que visitei na Paraíba conta, atualmente, com mais de 400 cooperados. Eles conseguiram, assim, aumentar sua produção de 80 litros para 5 mil litros de leite por dia. A maioria das compras estava sendo feita pelo setor público, o que eles queriam fazer agora para diversificar e poder também vender para o mercado privado.
De que forma a iniciativa propõe uma mudança de paradigma ao construir projetos econômicos para elevar a renda dos pequenos produtores?
Precisamos transformar os sistemas alimentares, ou seja, como os alimentos são produzidos, como são armazenados, como são distribuídos e como são comercializados. Isso deve ser feito apoiando aqueles que têm menos oportunidades, neste caso, aqueles em áreas rurais onde a maior parte da pobreza está localizada, no caso do Nordeste brasileiro, garantindo que recebam um salário decente e que possam levar suas vidas. É transformar a comunidade e no caso das escolas, programar para ter crianças que tenham acesso à nutrição e alimentação saudável. São duas questões: cidadãos do mundo inteiro e inclusive aqui no Brasil que passam fome e outros que não têm acesso a alimentos saudáveis. Alguns desses produtores, em muitos casos, não podem nem se dar ao luxo de comer uma dieta saudável, isso é alarmante para todos nós.
Quantas famílias devem ser impactadas com o aporte?
No caso do programa total, são US$ 900 milhões, estamos falando de 600 mil famílias, o que pode significar entre 1,5 milhão e 2 milhões de pessoas sobre esse programa de investimento em termos do que já conseguimos. Eu compartilhei algumas porcentagens em termos de pobreza extrema e pobreza, mas também é importante que 67% em nossos programas tenham melhorado a produtividade agrícola, mais de 50% tenham melhor acesso ao mercado e 33% também obtendo a capacidade de gerar mais renda, esses números são muito relevantes. Quero dizer, eles estão transformando e mudando vidas de pessoas, geralmente mulheres e homens rurais, que não têm essas oportunidades.
E como equacionar a produção agrícola com a adaptação aos efeitos das mudanças climáticas?
O que estamos vendo globalmente, como você disse, é que não deveríamos escolher exatamente entre mudança climática e agricultura. Países não deveriam ficar entre investimentos em saúde ou educação, por exemplo, e investimentos em desenvolvimento e clima. Encontramos na região problemas relacionados à degradação do solo para o acesso à água e, muitos deles, estão relacionados a eventos climáticos extremos, como estamos vendo em todos os lugares em termos de secas e altas temperaturas. Portanto, é muito claro que muitos desses pequenos agricultores trabalham com a natureza e a natureza e sua terra são seu principal patrimônio. Precisamos garantir que eles também tenham acesso ao financiamento e à água. Sem água não existe agronegócio ou a lavoura não pode se tornar um negócio. Precisamos ter certeza de que, quando estamos falando sobre como os alimentos são produzidos, eles também sejam distribuídos. Estamos discutindo como isso pode ser feito de forma resiliente e sustentável. Isso significa que, se você degradar sua terra e seu solo não for bom o suficiente no futuro, você não será capaz de produzir. O mesmo acontece com a água, você precisa de água suficiente para manter os sistemas alimentares. A forma com que os alimentos são produzidos e distribuídos precisa ser sustentável, mas precisa ser resiliente para que com o tempo possa ser mantido, isso é um processo de inclusão.
Quais os principais desafios para o projeto, sobretudo para as famílias que vivem no semiárido, onde menos chove no Brasil?
Precisamos garantir a segurança hídrica para tornar as produções sólidas para a presença dessas famílias no semiárido. Estamos falando de sistemas de irrigação, pequenas barragens e grandes tanques para dar capacidade aos agricultores familiares armazenarem água, tanto para a produção agrícola quanto para o próprio consumo. Garantir recursos hídricos é essencial para poder enfrentar as adversidades climáticas e aumentar a renda com práticas sustentáveis.
Em uma escala global, como o senhor avalia o papel da agricultura familiar no combate à pobreza?
O que estamos vendo, se você falar sobre a África e a Ásia, é que, na verdade, a agricultura de pequena escala produz 70% dos alimentos nestas regiões. Sabemos também que os pequenos agricultores globais produzem 1/3 das calorias do mundo e ocupam apenas 11% das terras agrícolas. Isso significa que eles são muito produtivos, mas têm muitos desafios, os mesmos desafios que estamos vendo aqui no Brasil, de acesso ao crédito, acesso ao financiamento, ao seguro à terra, à tecnologia, à água, à distribuição e ao armazenamento. Em nosso estudo mais recente do Relatório de Insegurança Alimentar, apontamos que é preciso haver uma mudança de valor global. Estamos vendo cada vez mais cidadãos morando nas cidades, ao mesmo tempo em que as áreas rurais essenciais, especialmente para os pequenos produtores, são uma oportunidade de fornecer uma alimentação de maior valor e mais saudável para muitos que estão em grandes centros urbanos. Nas cidades vemos, hoje, cada vez menos dietas saudáveis, mais pessoas comendo alimentos processados, maior consumo de sal e açúcar. Portanto, há uma oportunidade de realmente conectar políticas públicas para conectar a população urbana com muitos desses pequenos produtores, que estão na pobreza.
A principal mensagem é que ainda vemos um grande foco na assistência humanitária e apenas no fornecimento de alimentos. Isso não tira as pessoas da pobreza, obviamente salva vidas, mas precisamos ter certeza de que os investimentos, como os que estamos discutindo aqui no Brasil, foram para o acesso ao financiamento, à terra, à água, à distribuição e ao armazenamento. Muitas comunidades, mesmo que produzindo alimentos, às vezes, estão passando fome. É preciso que os governos e a comunidade internacional apoiem essas pessoas, se realmente queremos tirá-las da pobreza e erradicar a fome. Caso contrário, estaremos apenas controlando a fome, mas não a erradicando. Precisamos equilibrar as coisas entre a ajuda humanitária e o investimento no desenvolvimento. Essa mensagem é muito importante.